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14 de outubro de 2010

5-Operação "Jigajoga"




OP."JIGAJOGA"  24JUN67



SITUAÇÃO PARTICULAR: 
O IN tem-se revelado em operações realizadas no regulado de MANSOMINE, ataques a tabancas a aquartelamentos e outras flagelações. Deve existir algum acampamento que lhe sirva de base para a execução de acções sobre as NT e populações que nos são fieis.

MISSÃO: 
Assegura a ocupação do Sector, tendo em atenção os regulados da faixa OESTE e as linhas de infiltração que conduzam ao interior. Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

FORCA EXECUTANTE
a) CMDT: Cap. Art.ª Manuel Carlos Guimarães
b) MEIOS: 01 GR.COMB. da CART1690 ref. com 01 PEL. MIL/C. MIL. 3 01 PEL do EREC 1578

DESENROLAR DA ACÇÃO
O PEL REC/EREC 1578 saiu de BAFATÂ pelas 05H00 tendo-se-lhe reunido em SARE GEBA os GR. COMB. da CART1690 e em SARE GANA o PEL. MIL. Entretanto o Dest. da C.MIL.3 em SARE MADINA efectuava a picagem do itinerário SARE MADINA Ponte R. GAMBIEL. Em SUCUTA (MADINA FALI) o Dest. A iniciou a progressão apeada em direcção a SINCHÃ JOBEL e o Dest. B o patrulhamento do itinerário CHEUEL - Ponte R. GAMBIEL. Depois de atravessar a bolanha de SUCUTA o Dest. A detectou pegadas bastantes recentes, deduzindo que se tratasse de una sentinela IN. Junto a SINCHÃ JOBEL as NT foran emboscadas por um GR. IN. numeroso com mort. 82, LGF, MP e Amas Aut. tendo sofrido um ferido grave e 5 feridos ligeiros. Da reacção das NT o IN sofreu 3 mortos confirmados e 3 prováveis.
En consequência do pequeno efectivo das NT, da manobra efectuada com peque nos grupos, do grande potencial de fogo IN e da mata bastante densa desa pareceu o Cmdt. do Dest. A, Alferes Lopes, que havia saído de um grupo de manobra para ir a outro trazer um L.G.F.. Como o grupo já não se encontrasse no local previsto pelo Cmdt do Dest A este viu-se sozinho e a ser alvejado pelo fogo IN pelo que se internou na mata. Pelo que em cada grupo se pensava que o Cmdt. estava no outro, não foi dado grande importância ao facto. Só depois de reunidos todos os grupos se verificou a falta do Cmdt. O furriel agora Cmdt. do grupo de combate, resolveu, porque sendo o seu efectivo reduzido, para o potencial de fogo IN porque tendo 6 feridos, um dos quais grave e tendo ainda LGF avariado, regressar a SUCUTA para pedir reforços. Em SUCUTA onde já se encontrava o Dest. B ao corrente do sucedido por via rádio, foi resolvido pelo Cmdt. da CART1690 pedir reforços ao Comando do BCAÇ. 1877.
Comunicado ao Comando do BCAÇ. 1877 saiu imediatamente um GR. COMB./CCS constituído pelo PEL. REC. Inf. e pelo PEL. Sap. que juntamente com forças da CART1690 efectuou uma batida na área de SINCHÃ JOBEL até cerca das 21H30 sem resultado e sem contacto com o IN. As forças empenhadas na batida e o PEL. EREC., que estava a fazer a segurança às viaturas e o patrulhamento do itinerário CHEUEL-Ponte R. GAMBIEL regressaram a GEBA e BAFATÁ cerca das 23H30.
Pelas 09H30 do dia 25 saiu o GR. COMB./CCS/BCAÇ.1877 que juntamente com as forças da CART1690 iriam novamente bater a zona de SINCHÃ JOBEL. Ao chegar a SARE GEBA foi-lhes comunicado que o Alferes Lopes já tinha aparecido, tendo o GR. COMB/CCS regressado a BAFATA.

RESULTADOS OBTIDOS
-A detecção de um grupo IN numeroso e bem amado na região,
-A morte confirmada de 3 elementos IN e 3 mortos e alguns feridos prováveis.

Este foi o relatório feito pelo capitão Guimarães, comandante da CART1690, mas não foi bem assim. Mas eu vou agora contar como foi de facto, desde o princípio, como nunca tenho feito (já o fiz para outros blogues mas não tão completamente):
Na véspera, dia 23, fui chamado a Bafatá para estar no Agrupamento 1980. O, então, TCor Hélio Felgas (que substituía o Cor Assa Castel-Branco que tinha ido à Metrópole tratar-se, parece) foi quem falou comigo. Que era uma operação de rotina, que não havia problemas, que a companhia anterior já lá tinha ido, que era melhor levar uma corda pois era preciso atravessar um rio profundo, blá, blá, blá... Nem de leve aflorou a hipótese de poder haver lá uma base do PAIGC. No entanto, como se vê pela "Situação Particular", já suspeitavam ou sabiam mesmo pelos informadores. Surpresa só para mim. Mais tarde, já depois disto tudo se ter passado, deu-me para ir ver o que queria dizer "Jigajoga". E vi o que estava no dicionário: "Jiga-joga,s.m. Antigo jogo de cartas. Jogo da cabra-cega. Fig. Coisa pouco firme; engenhoca. Ludibrio." E vi que foi dada à operação o nome adequado: para o Agrupamento, admito, era uma coisa pouco firme, mas para mim foi um jogo de cabra cega e um ludibrio.
Mas avante. No dia seguinte lá parti com o meu grupo de combate, acompanhado por aquela gente toda como "Força Executante". No entanto, só eu e os meus homens é que atravessámos o tal rio profundo, acompanhados por um guia. Era o rio Gambiel, com cerca de trinta metros de largura e o guia disse-me que "a ponte" eram dois troncos de palmeira que estavam submersos (já tinham começado as chuvas). A corda afinal valeu-nos. Todos agarrados a ela, adivinhando cuidadosamente onde estavam os trocos de palmeira, chegámos à outra margem. Aí vi uma pegada de sandália. É pegada de turra, disse-me o guia.

Sentinela. É uma fotografia do PAIGC. O rio era como este e eram estas sandálias que deixavam marcas.


Vamos embora, ordenei, e avançámos pelo que parecia um carreiro estreito no meio do matagal. Do solo, da vegetação luxuriante desprende-se um vapor que paira e envolve o ambiente. É o calor acumulado durante o período seco. Há quem lhe chame cacimba e quem diga que é prejudicial à boa saúde das vias respiratórias... mas, aos 20 anos, não há cacimba que impeça de andar. A bicha de pirilau, ao longo de quase trezentos metros, pondo em relevo, na paisagem verde, todas as sinuosidades do antigo carreiro já quase totalmente coberto, movia-se como um réptil enorme, segmentado e escamoso. O silêncio profundo e agradavelmente sombrio da mata era apenas cortado pelo roçar das botas de lona e dos camuflados pelas ervas e folhagens que acompanhavam o carreiro. Ambiente para piqueniques e amor. Na hora em que o intenso sol tropical só conseguiu ainda afastar e diluir a luminosidade doentia libertada durante a noite por aquela vegetação farta de clorofila, mantinha-se o meio termo da frescura agradável que faz da Guiné um dos locais mais belos e repousantes às sete horas da manhã...
Eu ia à frente, uma parte de mim divagava poesia mas a outra estava atenta e dava indicações de marcha. E, algum tempo depois, deparámos com uma clareira larga, tinha alguns indícios de que tinha havido ali uma tabanca (aldeia), poucos e pequenos restos de moranças (casas), tinha muita vegetação curta, pelo facto mesmo de ter sido abandonada. Estava cercada por mata, do lado direito havia várias bananeiras. Juntámo-nos e eu disse a dois furriéis: vocês ficam aqui, não atravessam, eu e a secção do Ribeiro vamos atravessar a clareira. Um sexto sentido? Talvez. Levei também o apontador de morteiro 60 e o radiotelegrafista.
Avançámos. A meio da clareira, quando chegámos ao pé das bananeiras, saltou de lá um gajo com uma PPSH (pistola metralhadora de fabrico soviético) e desatou a correr. Não disparem, disse eu, agarrarem-no. Dois soldados correram atrás dele, mas ele tinha asas nos pés. Foi então que começou o fogachal, metralhadoras ligeiras e pesadas jorraram fogo do outro lado da clareira. Acoitámo-nos por trás de um grande morro de baga-baga que estava perto. A baga-baga é uma formiga que constrói isto:



Ali ficámos, o tiroteio continuava, nós respondíamos, mas já caíam também morteiradas. Disse ao homem do nosso morteiro para disparar também, mas, logo à primeira, o morteiro enterrou-se no chão. Não leváramos o prato base, nunca levávamos porque era muito pesado e um martírio para transportar naquelas matas e debaixo do calor, e as chuvas já tinham amolecido o chão. O baga-baga era um bom abrigo, as balas e os estilhaços das morteiradas chispavam nele, mas não podíamos continuar assim. Disse ao Ribeiro para ligar ao Marcelo com o Sharp (pequeno transmissor para comunicação entre secções) e dizer para mandarem bazucadas para o outro lado da clareira. Tentou e disse-me que não dava. Esta merda é sempre assim, barafustei, quando é preciso nunca funciona. Dá cá isso que eu vou ver se dá noutro lado. Saí do baga-baga e rastejei mais para o meio da clareira por entre umas ervas altas. Fiz várias tentativas, as balas e as morteiradas continuavam a chover. Mas continuou a não dar nada, e rastejei novamente para o baga-baga. Não me vi, mas devo ter ficado branco e de boca aberta: já não estava lá ninguém. Estava sozinho no meio da tormenta, que continuava.
Ali, deitado sobre a terra, desejoso de nela me afundar, como quem dorme com mulher, deixei a minha condição humana. Ali fiquei, alapado como um coelho que segue os passos do caçador à espera do momento oportuno para fugir. Levantei a cabeça e espreitei por cima do capim alto que rodeava o baga-baga. Tendo abandonado as suas posições de combate, os guerrilheiros avançavam em linha ao longo da clareira, lançando rajadas curtas de costureirinhas (nome por nós dado às PPSH, por o seu disparo parecer o trabalhar de uma máquina de costura) e kalashs (espingarda metralhadora AK-47 ou Kalashnikov, de fabrico soviético). Estou a vê-los, numa imagem de ocasião, sem saber ainda se é real se imaginária: fortes, atléticos mesmo, em passadas decididas, senhores da vitória. Despertou em mim o animal cujas reacções são comandadas pelo instinto de sobrevivência e, ao mesmo tempo, o animal especial que eu era: o animal domesticado que eu era para reagir a determinados sinais e estímulos. Mais do que um naturalista, estou agora apto a compreender todo o mecanismo de comportamento do animal encurralado por numerosos caçadores. Não há computador electrónico, por mais perfeito e programado, que consiga dar a solução tão acertada e rapidamente como o maquinismo instintivo da sobrevivência, aliado ao treino para reagir às mais variadas situações. Decidi rastejar até à orla da clareira. Mas, antes, lixado com a maçariquice de andar com eles, enterrei os galões camuflados que usava (nunca mais os usei). Achei que não me servia ali a Convenção de Genebra, que o meu futuro de prisioneiro seria melhor se não soubessem o meu posto... Estranho, agora, como é que fui assaltado por essa estúpida ideia de avaliar nesses termos a enrascada em que me encontrava.
E fui rastejando, mas, coisa que nunca imaginei que fosse possível, nem nunca acreditei que fosse mesmo quando o via nos filmes, ouvi um silvo agudo no ar, levantei a cabeça e vi uma granada de morteiro em direcção a mim, nem pensei, dei três voltas para o lado a rebolar, ela enfiou-se na terra mole do sítio onde eu tinha estado, vi de esguelha o rebentamento. Cabeça entre os braços, fiquei agarrado ao chão, continuei sem pensar durante instantes.

Mas tive de pensar e continuei a rastejar até à orla. Aí, fiquei sentado ao pé de uma palmeira jovem, ainda baixinha, tapado pelas ramadas que tocavam o chão.

E vi, depois, que eles tinham chegado ao sítio onde tínhamos estado. Manga de ronco (grande festa), desenterraram o nosso morteiro, agitavam uma pistola, pensei logo que devia ser a do radiotelegrafista, que a terá largado antes de fugir, e gritavam alegremente "alferes Lopes, alferes Lopes" passando um cinturão de mão em mão. Fiquei banzado e levei as mãos à cintura. Vi que era o meu cinturão, que tinha o meu nome escrito, e que se me soltara quando eu rastejava. Fiquei raivoso por isso, vi que tinha três carregadores de G3 (a nossa espingarda metralhadora) e passou-me pela cabeça começar a disparar sobre eles, mas ponderei que eram muitos, mais que os dez que eu vira antes avançar do outro lado da clareira, e achei por bem ficar quieto. Seria abatido com certeza, mesmo que levasse alguns à frente.
Assim fiquei alguns minutos. Quando vi que o grupo deles dispersava e que começavam a bater o terreno, decidi sair dali, com receio que me encontrassem, rastejei por entre algumas árvores que estavam perto, fui dar a uma bolanha (pântano) e entrei por ela. Tinha capim alto e a água dava-me pelos joelhos. Sentei-me a meio, tapado pelo capim. Eram umas dez horas da manhã.
Estive ali de molho todo o dia. Ouvi várias vezes ruídos e falares crioulos. Não eram os meus, nunca mais os ouvi, e julguei melhor não me levantar e caminhar pela bolanha, muito menos pela mata, seria visto, pois sabia que eles andavam por ali. Mas tive tempo de estudar o mapa da zona que tinha trazido comigo e decidir quando sairia dali, por onde ir e para onde.
Fiquei lá toda a noite também. Longa noite que começou cerca das seis horas da tarde. Fui-me distraindo com os mosquitos... Ouvi uns ruídos também durante esse tempo de escuridão. Pensei que seriam eles. Mas, se calhar, não. Disseram-me mais tarde que os nossos tinham ido lá a minha procura durante a noite. Sobre isso, um meu amigo furriel da companhia deu-me um texto que escreveu:

«O resgate falhado do Alferes Lopes
ou
O outro lado da mesma noite, a inesquecível 24.06.67.
Celebra-se, todos os anos, nesse dia e mês, na minha terra, num recanto Alentejano, o Feriado Municipal, dia de S. João, com os manjares gastronómicos e as folias próprias desse evento e que, em 1967, por ironia do destino, para além de tudo, não me deram tempo para recordar ou ter saudades. (perdoem-me a simbiose).

O Lopes sempre foi um gajo porreiro. Mas, nessa tarde, chegou-nos a triste notícia que tinha desaparecido em combate e era preciso unir esforços e trazê-lo para junto de nós.
Organizou-se, quase por instinto, um grupo não muito numeroso, já que em Geba, sede da Companhia, também não eramos muitos e assim, alguns de forma voluntária e outros por imposição (os mais desfavorecidos ou sejam o zé soldado e o preto) que, santo Deus, se dirigiu a Sinchã Jobel no final dessa tarde e lá se conservou durante uma parte da noite. Em vão é verdade, mas Ele (não o Deus) merecia o nosso sacrifício e dedicação.
Pensei nesse momento fantasmagórico e hoje, algo distante, confirmo que só os loucos, cegos pela guerra, poderiam ousar tamanha e desmedida aventura.
Aquilo que se passou, na tentativa de o recuperar, foi medonho, horrível, de tal forma que não consigo concentrar-me suficientemente para retratar o vivido na noite que considero a mais longa da minha permanência na Guiné. (tantas de autêntico inferno)
A descrição sentida e fabulosa que o Lopes, através da Net, nos transmitiu sobre a sua sobrevivência, (qual quadro real ?) quase me parece pequena comparada com o terror que se apoderou de mim e daquele grupo esforçado e socorrista.
Confesso que os minutos naquela clareira e as peripécias ali estabelecidas se tornaram do tamanho das horas, dias ou meses, tal a confusão gerada, essencialmente, por negligência do Comando ou o receio persistente de continuarmos vivos, naquele perigo, no mínimo, imaginativo.
Só quem nunca ouvira relatos da realidade de Jobel (mais tarde um dos cemitérios da 1690) e não era o caso, arriscaria perder todas aquelas vidas humanas. O caos era tanto que pediu opinião a um soldado nativo sobre o procedimento a tomar (estavam no local pelo menos 1 Alferes e 3 ou 4 Furriéis). Falo deste Comando porque foi o primeiro morto branco da Companhia, no rebentamento descuidado da mina que também vitimou o Alferes Lopes e que acabou por o trazer para uns meses de recuperação no H.M.L. Por ironia, habituei-me a pensar, a partir desse momento, que me tinha saído a sorte grande e que interiorizei, verdadeiramente, como que, mesmo que me matassem eu não morria, tais as obrigatoriedades operacionais que me impunha. O “senhor da guerra” entendia, entre outras coisas, que os outros militares do serviço de saúde não lhe mereciam confiança e então o Furriel (eu) tinha sempre de avançar. Enfim, contingências daquela guerra que, já na época, não eram compreensíveis ou aceitáveis.
Situando-me no momento, admitia eu que a nossa localização estivesse quase como a carne no assador, mas felizmente (quase um milagre) ninguém deu um tiro, porque em caso contrário, acabávamos por nos matar a nós próprios, já que a noite era de breu, não se vislumbrava um palmo para além dos nossos olhos e ali ninguém se entendia, imperava o desnorte, o medo e a incógnita.
Haverá, hoje, e referente à fase citada, uma multidão enorme, quase do tamanho do mundo, que não entende os perigos que nos envolviam e que do seu resultado dependia, para nós todos, a sobrevivência ou a morte.
Depois e para nosso bem (excluindo o Lopes) iniciámos a caminhada de regresso em silêncio, agarrados uns aos outros, embora com o enleio do emaranhado da mata cerrada, tivessem sido provocadas quedas e despegamentos, qual prolongar da odisseia, pelo que só no fim nos conseguimos juntar todos.
Quase me apetece parar, nesse presente tempo e concluir que afinal, para os bafejados pela sorte ou protegidos por algo, não decifrável, a vida continuaria.
Fomos, nessa noite, efectivamente, uns “sortudos”, mas, não me restam dúvidas, estivemos à beira de engrossar o vasto número dos desaparecidos ou mortos em combate, já que considero que enquanto lá permanecemos, coabitámos, paredes meias, com mortes anunciadas, que para bem de todos os intervenientes, nos foram perdoadas.
P.S.
Apercebo-me que a memória já não me vai confortando com muitos factos ocorridos, há mais de 40 anos e, confesso, isso me debilita em termos de me considerar perdedor de parte do vasto património da minha vivência.
Apesar de, contrastando com essa realidade, reparar com muita nitidez, que se mantêm bem transparentes quase todas as imagens daqueles tempos distantes e pernoitados na Guiné, onde, pura realidade, jamais sabíamos se o sol do dia seguinte ainda tinha algo que nos pertencesse.»

Passei toda essa noite a ruminar ideias. Que mais fazer?... Dizem que nessas situações em que a vida nos está ou pode estar a escapar nos viramos para aquela que já está, que já foi, que não se pode apagar. Passa-nos tudo pela mente. Hei-de dizer brevemente sobre esses meus pensamentos.
Às cinco da manhã do dia 25 começou a clarear e decidi fazer o que tinha pensado durante a análise do mapa no dia anterior. Não ir pelo mesmo carreiro por onde tinha vindo porque era mais que certo que tinham montado lá armadilhas. Caminhei pela bolanha porque tinha visto que ia dar ao rio que tinha atravessado na véspera. Naquela neblina matinal, os ruídos dos passos a chapinhar na água da bolanha, os capins a serem esmagados ou a agitarem-se com o andar causavam ruídos que me faziam virar a cabeça amiúde, podia ser algum bicho que habitava aquele meio, sei lá.
Sem bicho nenhum, acabei por chegar ao rio Gambiel e o problema a seguir foi encontrar o local onde estavam as palmeiras submersas, a única hipótese que eu tinha de o atravessar novamente. Vi que não havia ninguém por perto, procurei em vários metros da margem e encontrei. Fui andando devagar por cima dos troncos, num ritmo de equilibrista em corda bamba, a G3 era a vareta, sentindo-me como um pato que qualquer guerrilheiro que aparecesse na margem de onde eu vinha podia caçar com um só tiro. Mas cheguei à outra margem, o bater do coração baixou de ritmo, e iniciei o trajecto que tinha gizado na minha cabeça quando estava de molho na véspera. Andei muito tempo por entre as árvores da mata, passei por Canhagina e Cheuel.
Dei com uma pequena picada em declive que eu já conhecia. Ao fundo uma lagoazita e mulheres a lavar roupa. Aproximei-me delas. Olharam para mim estarrecidas por instantes e fugiram na direcção oposta. Devia estar de tal modo que a minha figura metia medo... Fui atrás delas, pois sabia para onde iam. Cheguei à tabanca de Sare Madina, estavam à entrada as mesmas mulheres em grande algazarra com uns homens grandes (homens mais velhos, respeitados), e os milícias. Eu já os conhecia e eles a mim. Quando me viram sorriram e acolheram-me bem. É evidente que sabiam da situação. Depois de alguma troca de palavras e mantenhas (saudações), o cabo que comandava a milícia local ofereceu-me a sua bicicleta para eu poder chegar a Geba. Aceitei.
Pedalei muito tempo, pareceu-me, por caminhos que me eram familiares, por onde eu tinha vindo aquando do início da operação. Cheguei e o primeiro que encontrei foi o alferes Moreira. Fitou-me de olhos esbugalhados. Lançou-se a mim num abraço e... desmaiou (bom rapaz, é um coração sentimental).
O meu percurso de ida e regresso de Sinchã Jobel.

Já me tinham dado para Bissau como "desaparecido em combate". Depois foi isto:
- os dois furriéis que tinham ficado na orla da clareira disseram-me que estiveram quase a dar porrada no outro que me deixou sozinho; ao capitão disse que tinha sido complicado, que não havia hipótese, que ainda bem que os outros tinham fugido - soube depois que o furriel fugidio tinha levado uma porrada de 17 dias de prisão disciplinar, com mudança de companhia, mas, se houve de facto um processo disciplinar, eu nunca fui ouvido.

O melhor:
Nesse mesmo dia, levaram-me a Bafatá (a 30 quilómetros) para ser ouvido pelo TCor Hélio Felgas. Primeira preocupação dele: Você trouxe a G3? Disse-lhe que sim e fiquei em brasa. Contei-lhe tudo, a sentinela ao pé do rio Gambiel, por onde tinha ido e por onde tinha vindo, inclusive que tinha a certeza que eles tinham em Sinchã Jobel uma base de guerrilha. Também lhe disse que não tinha visto nenhum turra morto (contrariamente ao que disse o relatório do capitão, e também nunca soube que tivesse ficado ferido algum dos nossos...). Maroto, chasqueou: Você tem aqui uma história para escrever um livro... Mas outra coisa: você esteve 24 horas no campo do inimigo e, se calhar, temos de levantar um processo... E a brasa espevitou. Levantei-me da cadeira: Está a brincar e a gozar comigo? É brincadeira, nosso alferes, não se chateie. Fiz a continência e fui-me embora.

2 comentários:

  1. só hoje conheci este teu site...gostei...a noite de S.João foi com atraso de um dia, os festejos costumam ser de 23 para 24...como disse o Felgas,isto dava um livro, ou um filme...pensa nisso
    Abraço
    Paulo Santiago

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  2. Pois então, meu caro Marques Lopes, uma aventura e tanto!
    Como dizes, já quase a conhecia toda, sem o complemento do furriel, ou seja, o relato da mesma noite mas visto por outros elementos, mas assim fica bem mais completa.
    Podia dar um filme, sim senhor.

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