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14 de março de 2012

415-Memória de cão


(...) Bebia-se, como se em cada cerveja um dia passasse, uma hora ao menos. E amava­-se muito, sexo contra sexo, a alegria breve de consumir o tempo. Falavam da guerra como de um deus distante, a alma mergulhada num copo imensurável de bagaço lírico. Na mornaça dos dias, chegavam a desejá-Ia toda mulher, possuí-Ia com o cio cantado dos animais, a mesma ferocidade, o mesmo orgasmo selvagem, ine­xaurível. Corre o Cacheu, as águas lodosas, todo ele aborrecido, variando o sentido da corrente, jogador paciente sem parceiro, baralhando e dando as cartas como se rezasse o terço. Para lá do rio, a imensa mata do Ohio, assumida em tumor de fogo e de quem espe­ravam viesse a morteirada, a granada. Apesar do ranço lúdico em que viviam, eles sabiam que a mata poderia vomitar, a qualquer momento, toneladas e toneladas de destruição logo que o paroxismo da digestão parada ebulisse em metralha. Olhavam para a mata do Ohio como para a bruxa má da infância. Se ela vomitasse fogo, poderiam, enfim demonstrar a si próprios que ainda estavam vivos. Era isto pecado de presunção, necessidade biológica de perigos, de sentir a morte para espicaçar a vida. Porém, vadiava-se. O cansaço horizontalizava-os, a satisfeita lassidão duma masturba­ção colectiva.
 (...)
Sacudido daquele estupor pelo grito da mãe, João começa a regressar da Guiné do seu caderno-diário. Limpou as lágrimas com as costas da mão e, menino apanhado a roubar a maçã, sorriu com o receio da des­culpa. Ela correu-lhe para os braços, apertou-o muito, a voz apagada e aflita, "O que foi que te fizeram, meu filho?!" João desprendeu-a devagar, fechou o caderno ­diário com solenidade soberba, disse, "Nada, mãe!" Empurrado mansamente pela sua última força, foi à cozinha, olhou para o fogo que cozia a ceia e atirou com o caderno-diário. As chamas, lânguidas e sensuais, lamberam gulosamente a capa. De súbito, animaram-se de impulsivo apetite e devoraram todas as folhas. Entre as brasas de cedro, as suas cinzas confundiram-se para sempre. João assistiu a este ritual de fogo com o mesmo gozo sádico de quem se permite acompanhar o seu próprio funeral, a alma condenada à errância perpé­tua ou ao sossego dos desaparecidos definitivos. Os fios que o atavam ao passado estavam quebrados. Tudo se lhe afastou da memória, avião que descola e vai céu acima, pássaro, insecto, nada. No ponto zero, ficavam os nomes, os lugares, os factos. O presente tacteia sobre as patas breves do futuro. Fechou os olhos. "Pronto!" Atrás de si, restava um cemitério de silêncio, invisível e incontável, deserto, vazio, sumiço. 

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