(...) Bebia-se, como se em cada cerveja um
dia passasse, uma hora ao menos. E amava-se muito, sexo contra sexo, a alegria
breve de consumir o tempo. Falavam da guerra como de um deus distante, a alma mergulhada
num copo imensurável de bagaço lírico. Na mornaça dos dias, chegavam a
desejá-Ia toda mulher, possuí-Ia com o cio cantado dos animais, a mesma
ferocidade, o mesmo orgasmo selvagem, inexaurível. Corre o Cacheu, as águas
lodosas, todo ele aborrecido, variando o sentido da corrente, jogador paciente
sem parceiro, baralhando e dando as cartas como se rezasse o terço. Para lá do
rio, a imensa mata do Ohio, assumida em tumor de fogo e de quem esperavam
viesse a morteirada, a granada. Apesar do ranço lúdico em que viviam, eles
sabiam que a mata poderia vomitar, a qualquer momento, toneladas e toneladas de
destruição logo que o paroxismo da digestão parada ebulisse em metralha.
Olhavam para a mata do Ohio como para a bruxa má da infância. Se ela vomitasse
fogo, poderiam, enfim demonstrar a si próprios que ainda estavam vivos. Era
isto pecado de presunção, necessidade biológica de perigos, de sentir a morte
para espicaçar a vida. Porém, vadiava-se. O cansaço horizontalizava-os, a
satisfeita lassidão duma masturbação colectiva.
Sacudido daquele estupor pelo grito da mãe, João
começa a regressar da Guiné do seu caderno-diário. Limpou as lágrimas com as
costas da mão e, menino apanhado a roubar a maçã, sorriu com o receio da desculpa.
Ela correu-lhe para os braços, apertou-o muito, a voz apagada e aflita, "O
que foi que te fizeram, meu filho?!" João desprendeu-a devagar, fechou o
caderno diário com solenidade soberba, disse, "Nada, mãe!" Empurrado
mansamente pela sua última força, foi à cozinha, olhou para o fogo que cozia a
ceia e atirou com o caderno-diário. As chamas, lânguidas e sensuais, lamberam
gulosamente a capa. De súbito, animaram-se de impulsivo apetite e devoraram
todas as folhas. Entre as brasas de cedro, as suas cinzas confundiram-se para
sempre. João assistiu a este ritual de fogo com o mesmo gozo sádico de quem se
permite acompanhar o seu próprio funeral, a alma condenada à errância perpétua
ou ao sossego dos desaparecidos definitivos. Os fios que o atavam ao passado
estavam quebrados. Tudo se lhe afastou da memória, avião que descola e vai céu
acima, pássaro, insecto, nada. No ponto zero, ficavam os nomes, os lugares, os
factos. O presente tacteia sobre as patas breves do futuro. Fechou os olhos.
"Pronto!" Atrás de si, restava um cemitério de silêncio, invisível e
incontável, deserto, vazio, sumiço.
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