«A situação das equipagens das lanchas e outras
embarcações das empresas coloniais era, em 1959,
bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o
capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em
geral sabia ler e gozava do estatuto de «civilizado». Os restantes membros da
tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.
O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que
garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada
transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante
recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para ma/é, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao
molho para o arroz.
Havia já muitos meses que os marinheiros vinham
pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes
promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não
viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.
Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas,
cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às
empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações
não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concerta- das
quanto à sua acção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.
A situação política no meio dos trabalhadores
africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do
Partido tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das
docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.
A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o
fenómeno novo da independência da República da Guiné e seguia os preparativos para a independência
do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do
Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais
digna.
Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os
trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à
conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta
corajosa contra as empresas exploradoras.
A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as
embarcações que
chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do
velho cais de Pidjiguiti. Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e
nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas
sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. Os
capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer
que os. tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.
Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens
estavam
estacionados no recinto do cais de Pidjiguiti, Nos seus espíritos decididos, a
interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam
opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas
as suas reivindicações.
Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia,
mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de
trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como
os que se encontravam ali, no Pidjiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a
um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar
a luta.
As autoridades estavam atónitas diante da maneira
como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e
ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às
ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas
palavras tinham para dizer: mais pão, mais justiça.'
No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os
dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se
tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e
teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.
A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o
trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza,
para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia
convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a
ceder à subversão.
Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a
vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem voltaram de
novo a recompor-se para apelar à luta
contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com
mais força e vigor, ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do
nosso Partido.
A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os
acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia, até ao
momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.
Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pidjiguiti,
apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como
defender-se com remos, com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia
armas autornáticas modernas e estava
disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto
ainda não sabiam.
Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros
tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do
portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os
grevistas, que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois
de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel
realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.
À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros
procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que
parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita
passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam
ancoradas.
À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta
do cais iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para
alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos
alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pidjiguiti. Fazendo dali
calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os
que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares,
ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a
eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da
sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.
Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa
Gouveia ficavam perto do cais de Pidjiguiti
e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às
portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande
edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée
Turpin e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente,
estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as
pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as
reacções que se seguiam.
Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos
Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente
para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima.
Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair
dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa
desencadeada no porto de Bissau.
Da varanda do meu apartamento, que estava situado
frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao
homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a
atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de
Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os
marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.
Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de
me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde
encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava
escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial
numa perna e teria certamente sido apanhado pelos agentes se não o tivessem
escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde
voltar para a sua casa.
Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides
e o Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido
meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado
elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais
emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio
Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a
noticia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente,
foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar que se encontrava nesse
momento em Angola.
No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da
Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se
tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à
polícia e o Carlos foi posto em liberdade.
Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado
pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações
telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de
um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas
pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.
Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau,
falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não
acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros,
quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e
experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente
indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no
meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse
atribuir tal responsabilidade?
O director-geral da PIDE insistiu para que o seu
representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança
Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as.
informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de
Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia. no
próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano,
filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na
Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo
-disse o director-geral- e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»
Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios
da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que
sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!
O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos,
que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo
apanhado pela polícia.
Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha
casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no
fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente,
saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha
casa; procurou-me em seguida em casa da dr.s Sofia Pomba Guerra.
A noite acabava de cair bruscamente quando
finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo
assim saí à rua para falarmos longe de
possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me
pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e
que só se mostrasse quando eu mandasse chamálo. Pedi-lhe o seu impermeável, e
confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda
naquela noite.
Tornava-se indispensável encontrar o Elysée
Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a
ajuda do meu irmão T oi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o
homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho.
Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de
conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único
indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente
pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo
para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando
abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações
existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita
simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade
moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.
Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para
a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem.
Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava
encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava
muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no
Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro
se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão
perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas
pernas, quando parou.
Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe
militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada
com a prisão do Carlos.
Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em-direcção à Central Eléctrica. Confesso
que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de
borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.
Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão
que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse' bem, mas não
ficou estabelecido onde.
O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido
o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada,
iria juntar-se-lhe. logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria
tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao
trabalho, não fosse a policia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de
serviço.
Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava
preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável,
abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da
noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava
doente.
Foi só depois da partida do Carlos, quando
regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me
apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros
lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã
seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a
famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria
como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.
O meu estado de excitação era, pois, bastante grande
no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia
formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dr.s
Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar.
Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu
precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE ...
À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às
7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro,
continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira
senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.
Antes das oito horas, já o irmão do Carlos
aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na
Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a
direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua
mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.
O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir ... Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir.»
O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir ... Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir.»
"Crónica da Libertação", Luís Cabral
De notar que François Mendy, lider da FLING, apoiado pelo Senegal, fala francês e não crioulo ou português.
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