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5 de abril de 2012

441-Pidjiguiti

«A situação das equipagens das lanchas e outras embarca­ções das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da em­barcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de «civilizado». Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer rega­lias.
O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por to­nelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma deter­minada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para ma/é, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.
Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam­-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.
Encorajados com o descontentamento crescente dos traba­lhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam deci­didos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concerta- das quanto à sua acção, continuaram a ser promessas sem quais­quer garantias.
A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.
A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné e seguia os prepa­rativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.
Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.
A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarca­ções que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente ar­rumadas nas cercanias do velho cais de Pidjiguiti. Os homens de­sembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certa­mente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrifica­das teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproxi­mava. Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os. tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.
Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens esta­vam estacionados no recinto do cais de Pidjiguiti, Nos seus espíri­tos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das auto­ridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de conti­nuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindi­cações.
Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regres­savam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em ter­ra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens co­mo os que se encontravam ali, no Pidjiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de con­tinuar a luta.
As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco ho­mogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer: mais pão, mais justiça.'
No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os diri­gentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos cri­minosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreen­dida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.
A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.
Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a ver­gar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem voltaram de novo a recom­por-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Ti­nham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor, ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.
A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os aconte­cimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia, até ao momento em que as forças militares e paramilitares avan­çaram para o porto.
Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pidjiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se de­fenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos, com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas autornáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.
Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosa­mente contra os grevistas, que, a princípio, ainda tentaram de­fender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companhei­ros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solu­ção era procurar fugir do cais, para escapar à morte.
À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros pro­curavam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atra­vessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.
À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pidjiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conse­guiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se ti­nham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só mili­tares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Tam­bém se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pes­soais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça sel­vagem aos homens do 3 de Agosto.
Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia fi­cavam perto do cais de Pidjiguiti e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso es­pectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalháva­mos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empur­rando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.
Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer na­quele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.
Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacífi­cos que mais não queriam que viver um pouco melhor.
Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me en­contrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos sol­teiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pelos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.
Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides e o Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, có­pias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os aconte­cimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bis­sau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Co­nakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e di­fundiram a noticia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro rela­tório ao Amílcar que se encontrava nesse momento em Angola.
No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.
Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversa­ções telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lis­boa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.
Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notí­cias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamen­te alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a diri­gir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encon­trar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pu­desse atribuir tal responsabilidade?
O director-geral da PIDE insistiu para que o seu represen­tante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para re­colherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia. no próprio mo­mento da confrontação das autoridades com os grevistas: era afri­cano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo -disse o director-geral- e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»
Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africa­nos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!
O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela polícia.
Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi pri­meiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dr.s Sofia Pomba Guerra.
A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá­lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria trata­do de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.
Tornava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o ho­mem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão T oi, que tinha uma motorizada, saí­mos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho. Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tem­po para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também por­que o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.
Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fron­teira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem.
Terminados os preparativos para a sua saída imediata, pre­cisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos es­tabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.
Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava rela­cionada com a prisão do Carlos.
Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em-direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do imper­meável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.
Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse' bem, mas não ficou estabelecido onde.
O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe. logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a policia li­gar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.
Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupa­do, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o imper­meável, abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia pas­sar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.
Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele an­dou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era mui­to natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.
O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas pergun­tas. Recorri à dr.s Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calman­te que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE ...
À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Bar­ro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noi­te toda.
Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para di­zer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contac­taram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediata­mente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desapareci­do sem deixar rastos.
O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir ... Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Piji­guiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e de­finir o caminho a seguir
"Crónica da Libertação", Luís Cabral 

De notar que François Mendy, lider da FLING, apoiado pelo Senegal, fala francês e não crioulo ou português.


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