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30 de outubro de 2011

289-O Choro de Mosongo

 ENQUILlM - pequeno tambor feito em madeira da terra - em ritmo convencional, ouvia-se à distância, a transmitir aconteci­mento raro.
A notícia, veloz como o vento, ultrapassara matas e campa das, rios e bolanhas e chegar-a a lugarejos recônditos de palhotas anichadas entre matas exuberantes, a anunciar a morte de Monsongo.
Balantas folgazões, entretidos com as lavras, ora cantando, ora soltando gargalhadas trocistas, misturadas de pilhérias maliciosas, acusam-se mutuamente de estranhas aventuras - furtos de mulheres e de vacas - façanhas cheias de riscos por estarem sujeitos a serem apanhados de surpresa.
 distância, para as bandas do palmar, situa-se a «lagoa grande~, éden de caça plumosa, refúgio dos mais variados espécimes, onde centenas ou talvez milhares da patos marrecos, patos ferrões, águias pesqueiras, corvos marinhos e pica-peixes malhados vivem entre alismas amarelejadas. Era local seguro, desde que intrépidos caçadores, como o Barbosa da Imprensa ou o cabo Machado, não se lembrassem de entrar na bolanha, por vezes em manhãs de céu plúmbeo, chuvosas e frias, com água pelo peito! Nessas manhãs era o fim. Sempre que a lala silenciosa, ao romper da alva, acordasse em sobressaltos, na «lagoa grande: matança extraordinária era facto consumado. Quatro tiros apenas ... e a caçada - a grande caçada daquele domingo - redundara em pleno êxito. Horas depois. em Jabadá, o Pires do Jamíl, homem alegre e bom porque era justo, recebia sorridente a remessa dos saborosos palmípedes, carne excelente para a famosa «cafrialada», pitéu ainda hoje preferido pelo branco que vive no mato.
Lavradores balantas, com arados primitivos, continuavam a reta­lhar a terra ensopada da bolanha imensa, que se estendia até à barreira amarela esverdeada de mangais e de tarrafe, que ao longe definia o limite das águas na preia-mar, Os balantas trabalhavam com ânimo, porque anteviam aquelas terras esplêndidas num futuro próximo apinha­das de gramíneas dobradas com o precioso arroz jambarã, o mais produtivo da região. Mais além, outro grupo de balantas, de troncos luzidios de suor que, afoitamente, lavravam a terra, abandonaram os arados e regressaram a Bicílão, onde há momentos se dera o passamento do lavrador mais respeitável daquele chão de balantas.
Por seu turno, parentes e amigos do finado, entretidos com traba­lhos agrícolas, ao ouvirem o enquilim transmitir a notícia, deixaram os campos, e, quase em ar festivo, regressaram às moranças, prepa­rando-se para o grande choro que durante dias iria alterar a vida monótona daquela gente aborígene tão simples como feliz.
Mulheres novas, até uma ou outra seresma, enquanto se adere­çavam com colares, búzios, mandilhas e panos coloridos, não ocultavam o júbilo que as dominava por irem assistir a um choro grande, talvez o mais famoso de todos os tempos daquela região, devido à importância da pessoa do falecido. :É: que, em cerimónias idênticas, jamais faltara a presença de jovens circuncidados e, desta vez, em maior número, porque a morte de Monsongo coincidira com o termo das festas do Fanado. O Fanado (circuncisão) sempre fora rito de grande trans­cendência na vida do balanta, porque a partir daí é tido como adulto e, como tal, autorizado a manter relações com mulheres.
Por esse motivo, a presença de mulheres mais ou menos crapulosas da tribo seria maior, até porque constitui gesto de honra o facto de serem possuídas por «homens em primeira mão».
Monsongo era o homem mais velho daquele chão. A sua morte era aguardada de um dia para outro. A atestar a sua longevidade estava a cor amarelecida dos seus cabelos e das barbichas mal cuidadas. Entretanto o simpático ancião possuía uma lucidez perfeita. Retinha na memória vários episódios das lutas do passado e recordava os tempos de quando as tribos se guerreavam sem tréguas, em guerras sanguinolentas, que só terminavam quando as tropas do Governo intervinham. Foi o que sucedeu, vezes sem conta, nos primórdios da ocupação...
Monsonqo, de quando em quando, rememorava feitos e passagens distantes, com a rara habilidade que sempre caracterizara os grandes das tribos da Guiné, apalermando, com relativa facilidade, novos e velhos que o escutavam boquiabertos.
duas luas, talvez nem tanto, debaixo da figueira brava, ao fundo do terreiro, em noite morna e luarenta, conseguira prender, durante horas, numeroso auditório, com várias narrativas de guerras do passado. Entre elas. não se cansava de enaltecer a figura de um bravo militar, preclaro, que veio de Lisboa submeter os que se haviam rebelado contra o Governo, só porque era possuidor das mezinhas e guardas de corpo mais raras e poderosas de todo o imenso chão afrí­cano. «Se o quereis conhecer - dizia Monsongo - olhai para as notas do banco onde o seu rosto se mantém, como aviso permanente tanto para os que têm muito dinheiro como para os que têm pouco».
O respeitável ancião contara outra história verídica, relacionada com a maneira como se havia tornado o mais abastado lavrador da região.
- Certo dia - contava Monsongo - aportara em Bolama um barco de guerra que trazia a bordo vários deportados. Entre outros, destaca­vam-se dois homens de tipo estranho. Tinham os olhos em forma de amêndoa e os rostos lívidos, como se viessem acometidos da malária. Falavam, porém, a língua do branco. Um deles, o mais velho, chama­va-se Alassane. O nome do outro fugira-me da memória. Vieram dos lados donde o Sol nasce, do outro lado do mar, das terras de Macau. Não teriam feito acção digna, para serem deportados para tão longe.
Para o Balanta, tão destemido, que prima em desafiar o perigo, seria morte certa. O Balanta, na realidade, é destemido e valente; morre no entanto como um passarinho, quando arrancado ao seu chão, e sabe que jamais voltará.
Entretanto - prosseguira Monsongo - em boa hora os dois infelizes vieram para o Tombali. O crime que praticaram ninguém o soube ao certo. Para nós, foram humanos, justos e atê generosos. Com todo o carinho ensinaram-nos a cultivar o arroz, dado que as nossas bolanhas eram pouco produtivas. Depois da sua vinda, a produção redobrou, e foi ainda Alassane que nos ensinou a cultivar bolanhas profundas. Se hoje sou o maior lavrador das terras de Títe, como oiço dizer, devo-o incontestavelmente aos dois coitados que, mau grado seu, vieram aqui encontrar a morte, roídos de saudades das gentes e das terras longínquas, vítimas da fatídica malária.
Nos últimos dias. o chefe balanta sentira-se alquebrado e triste. Tristeza diferente. Talvez a mais lúgubre de toda a sua vida. As forças desapareciam-lhe dia após dia. E enquanto, durante a noite, o corpo se lhe cobria de suor gelado, o peito arquejante abrasava. Por fim, ficara acusmático. Das muitas vozes imaginárias que pela noite fora ouvia, as que mais o atemorizavam era a voz do Irã, ali a dois passos da palhota. Mesmo assim, nunca se arrabujara. Sabia sofrer com resignação.
Certo dia, à tardinha, olhara o Sol toldado por nuvens de fumo que, em forma de grande bola de cristal cor-de-rosa alaranjada, mer­gulhara, quase de repente, na floresta densa. Sentira estranho alívio percorrer-lhe o corpo com a brisa vinda do mar, agitando suavemente as folhas das mangueiras. Animado pelo inesperado sopro de vida, empunhara o inseparável bordão, levando na outra mão trémula uma garrafa com aguardente de cana, segura por um cordel. Ia consultar o Irã, oculto entre poílões e calabaceiras.
A demora fora curta. De regresso parecia feliz. Sim, porque o Irã, senhor absoluto do destino das gentes, havia ditado a última sentença. Monsongo sabia que, no dia seguinte, ao cair da tarde, ia morrer. Sabia-o perfeitamente. Não tinha a menor dúvida!
Com enorme sacrifício conseguira chegar à palhota. Deitara-se mas não dormira. O cachorro malhado, que dava pelo nome de anquinanquê, nome que em balanta significa «se soubesse não vinha cá», ganiu baixinho e enrolou-se pegado ao canapé. Ao romper da aurora, Mon­songo quis erguer-se, mas não teve forças. Sentira arrepios de frio. Um frio horrível. Ainda assim, num esforço supremo, conseguira arras­tar-se até à porta da palhota e lançou o último olhar pelas mangueiras floridas, que, há décadas, havia plantado com mil cuidados na sua campada.
Sentara-se em tronco corroído. Mandara reunir a família (onze mulheres, trinta e seis filhos de ambos os sexos e uma infinidade de netos, que jamais soubera distinguir). O filho dilecto era Irmna, por ter herdado de Monsongo os dotes que em novo, ainda blufo, o haviam feito famoso: ladrão valente, lutador invicto e folgazão como não havia nas redondezas. Além disso, Irmna tinha servido durante três anos, como soldado atirador, na Guarnição Militar de Bolama. Fora impedido do Comandante da Companhia e no Quartel aprendera a falar, a ler e a escrever razoavelmente. Ao regressar à tabanca, Irmna não sentia muita atracção pela vida do mato. Tinha saudades do Quartel, da Instrução de ginástica e na luta corpo a corpo, em que se tornara famoso. O velho lavrador não se fartava de o mimar. Revia-o constan­temente de alto a baixo. Monsongo admirava os brancos do Quartel que lhe haviam modificado o filho.
Das mulheres, a mais jovem e mais prendada era Enramne. Viera de Encheia, mas havia sido criada em casa de chefe de Posto. Primeiro em Binar e depois em Encheia. O Chefe de Posto com a família regressara a Lisboa. Enramne regressou a Enquida. O Chefe de Posto quisera levá-Ia, mas o pai não autorizou. Enramne quis fugir, mas fora ameaçada com o Irã. Enramne não podia ir para Lisboa, porque havia sido prometida ao cipaio da Administração de Mansoa, Pigna Cul, o qual, pouco depois, encontrara a morte numa desordem em Olossato. Em seguida, fora cedida a Monsongo por preço exorbí­tante em dinheiro, cana e vacas. Enramne era realmente linda. Não tinha dentes limados. Em princípio, na tabanca, vestia como menina branca, mas as colegas troçavam dela. Nos primeiros tempos, em Enquída, levara uma vida degradante por não se conformar com a sua desdita. Chorou muito. As lágrimas haviam levado do seu rosto meigo e alegre os últimos sinais de beleza. De quando em quando, sonhara com Lisboa. Lisboa era terra de sonhos, assim dizia a Senhora do Chefe de Posto, e Enramne sonhara com Lisboa, mas uma Lisboa diferente. O Irã implacável tolhera-lhe o caminho! Enramne bem sabia que não tinha sido o Irã que a impedira de ir a Lisboa. Mas de igual modo sabia que o Balanta e o Irã caminham lado a lado. O Balanta sem Irã deixaria de existir por não ter quem lhe guiasse os passos.
      Enramne fora finalmente para Bicilão. Era mulher de Monsongo. Ele com oitenta anos. e ela com dezoito! Monsongo recebera-a com alegria. Mais uma peça de trabalho... E desta vez valiosa, porque Enramne era nova e saudável. Enramne, em Bícílão, passara os dias mais tristes da sua existência. Chorara dias seguidos. Desconhecia, porém, que, na tabanca, havia alguém que sofria imenso ao vê-la sofrer. Sofria em silêncio, mas pouco a pouco fora-se abeirando da infeliz. Irmna falava-lhe sempre em «crioulo» a Incutír-lhe ânimo e esperança. Os balantas de Bícílão não compreendiam «crioulo», pelo que de nada se aperceberam. Os dias foram passando e os diálogos entre Irmna e Enramne tornaram-se mais amistosos e íntimos. Irmna falara-lhe muitas vezes do quartel de Bolama, e Enramne da casa do Chefe de Posto, onde a Senhora branca a ensinara a fazer trabalhos domésticos «muíto giros». Assim, entre a bolanha e a floresta, Enramne deixara de chorar enquanto a alegria e a beleza iam retomando lugar no seu rosto meigo e bronzeado. O jovem par compreendera então que o longo convívio com os brancos lhes mudara o destino. Não era o mato o seu lugar, porque um mundo novo os chamava. Não sabiam ainda definir bem esse mundo, mas devia relacionar-se com uma palavra mágica que retinham na memória, a qual haviam aprendido, ele no Quartel e ela em Encheia: Civilização!
Monsongo tinha enorme vaidade na mulher e no filho. Por vezes confundia-os. A amizade que tinha por Enramne era bem diferente da que tivera pelas outras mulheres. Realmente Monsongo gostava imenso de Enramne, mas ... ele tinha oitenta anos e ela dezoito!
Irmna vivia preocupado. Sabia que havia procedido mal e tinha remorsos. Não devia ter praticado aquele acto indigno, porque o pai era seu amigo. Mas Monsongo fora o único culpado em ter desposado uma jovem encantadora com dezoito anos de idade. Irmna tinha vinte e um. Entretanto, enquanto os dias se passavam monótonos e iguals, Enramne mais se deixara prender de amores por Irmna. E, neste comenos, Enramne estava grávida. Monsongo não o duvidara. Sabia até quem tinha sido o autor daquele acto menos digno, mas preferira o silêncio. Pelo sim e pelo não, um dia, quando Enramne vinha da fonte, chamou-a a sós e suplicou-lhe comovido:
- Enramne, quando parires, se o teu filho for «macho», gostaria que tivesse o nome de Irmna, por ser o nome do meu filho mais novo. E porque não o nome do pai do meu último filho?! - concluiu irado.
Monsongo, quando se viu rodeado pelos que o haviam ajudado a vencer na vida, fora dominado por forte emoção. Levaram-no para o canapé no interior da palhota. Pouco depois, mais calmo, com um sorriso indefinido a acentuar-se-lhe nos lábios gretados pela febre, aguardava sereno que se quebrasse o ténue fio que o prendia à vida. Ainda assim, conseguira sorrir por instantes. Sorrira, ao notar a pre sença de um raíozínho de sol que, furtivamente, penetrara por abertura do capim que cobria a palhota, como se enviado dos céus para lhe iluminar o rosto sereno, nos últimos alentos de uma vida despreocupada e feliz.
Monsongo deixara de sorrir. Fizera sinal com a mão para que se aproximassem. Com visível dificuldade, entre convulsões e soluços, conseguira balbuciar de modo impressionante:
- Dentro de instantes serei cadáver. Não quero lágrimas nem lamentações. Uma coisa, porém, vos peço. É a minha última vontade. Pretendo um choro como jamais se vira neste chão. As trinta e duas vacas da laia do Enxudé são para abater. No cerco da tagarra grande temos arroz limpo que chega para mais de cem pessoas durante uma semana. Debaixo do cerco da mancarra tenho escondidos dez tambores com aguardente de cana, com duzentos litros cada. Se não chegar, adiante, pa... ra os la... dos. .. do ... vídum...
não terminou a frase! Deixara cair bruscamente o braço, que erguera com dificuldade para indicar algo de importante. Os dedos esqueléticos crisparam-se num repente, para se distenderem lentamente, muito lentamente mesmo! O raiozinho de sol incidia agora sobre garrafa de vidro cheia de mezinha da terra, dependurada na parede, um pouco acima do rosto de Monsongo. Cintilava na penumbra do quarto mortuário como estrela resplandecente que iria acompanhar ao mundo dos justos a alma do velho e honrado lavrador. Monsongo estava morto!
Anquinanquê, o cachorro malhado, que havia permanecido aninhado junto do canapé, deu um salto, e lambeu-lhe as mãos e o rosto, e cirandou de um canto para outro, como aturdido com o infausto acon­tecimento. Depois, fugiu para o terreiro e correu sem rumo certo, direito à mata, ganindo e uivando desesperadamente, como se quisera anunciar bem alto a morte do seu melhor amigo.
Todos se retiraram em silêncio. Sem o menor lamento. Todavia no rosto de Irmna via-se agora maior apreensão e o seu olhar era cúmplice. Chorou por se lembrar do que havia feito com Enramne, que era agora sua mulher. De igual modo, só Irmna sabia onde o velho havia escondido o garrafão com as notas do banco. Estavam ali bem perto no vidundji-pêbe (cemitério de balantas), de quando em quando remexido por hienas famintas. Vira-o uma tarde, por entre palmares, quando frechava rolas no mato.
Silêncio de morte. Ouvira-se o matraquear de enquilim, seguido do rufar de tambores a confirmar a morte de Monsongo. Em breves segundos, as terras circundantes souberam da morte do velho chefe de Bícílão.
Ao fundo do terreiro, debaixo das mangueiras, Balantas do seu tempo e outros mais novos quedaram-se, acenando a cabeça, como se resignados com o desenlace. Enquanto o mulherio preparava a água para o primeiro banho do cadáver. Morna Cumba, considerado o mais famoso necrólogo da região, em voz compassada e dolente ia relem­brando diversas passagens da vida do finado desde os recuados tempos em que fora ladrão de vacas, lutador valente e invicto e hábil ferreiro como não houvera outro nas redondezas. Morna Cumba terminara por enaltecer as virtudes de Monsongo nas últimas décadas da sua vida de chefe gentílico, cumpridor, justo e humano, qualidades que o leva­ram à conquista de estima e respeito não só dos Balantas da sua área, mas também das autoridades administrativas. Fora sempre homem prestante, trabalhador e leal e, por isso, agora. iria receber o prémio da sua bondade. Mas isso era com o Irã! ...
Os tambores rufavam! .......... Rufavam continuamente ...
Um touro de pelo fulvo e luzidio, preso a tronco abatido, urrou enraivecido e ajoelhara ao encaixar entre os chifres curtos a lâmina de aço de terçado manejado por destro magarefe. Logo depois, outro e mais outros tiveram a mesma sorte. Todavia, os últimos urros e gemidos eram abafados pelo barulho ensurdecedor dos tambores de peles retesadas.
Balantas das tabancas limítrofes, que chegavam a Bicilão, entravam e saíam, ordeiramente, da palhota mortuária. Todos quiseram prestar a última homenagem ao velho balanta, que em vida tanto os havia ajudado. Todos são parentes, e o Balanta, quando rico, não admite pobreza na sua morança. Era o caso de Monsongo.
O cadáver fora sentado em cadeira de tarrafe; permanecia inerte de rosto sereno; na mão direita, espada ferrugenta que em novo lhe granjeara fama e prestígio; na cabeça, cofió encarnado e, envolto ao pescoço, um lenço branco; vestia fato forrado, sem cor definida, amarrotado, que anos antes lhe havia oferecido um engenheiro que viera de Lisboa e percorrera a área para ver as palmeiras. O seu aspecto era de estátua bronzeada, talhada por hábil escultor.
As exéquias foram dirigidas pelo novo chefe de Bicílão, que. segundo a tradição. seria o filho mais velho de Monsongo. Fora auxiliado pelo Pêbe - coveiro - que na tribo gozava de grande prestígio. O corpo ficara sentado em cova circular voltada para Nascente. Monsongo, além de chefe gentílico, fora ferreiro. E, para o Balanta, homem que saiba dominar o ferro merece prestígio à parte. Fora envolto em esteira de palmeira, nova e limpa, porque a terra não pode tocar o corpo de um ferreiro. Em vista do elevado número de homens e mulheres que barraram a cabeça e o peito com a lama acinzentada da bolanha, adivinha-se o conceito em que era tido o velho chefe dos Balantas.
Como sucede entre os grandes da tribo, só no dia seguinte ao falecimento teve lugar a cerimónia do choro.
A mortandade entre novilhos e vacas havia ultrapassado todas as previsões. Blufos, quase exaustos, prosseguiam a faina sanguinolenta, esquartejando dezenas de reses agonizantes. Outros, em azáfama sem precedentes, transportavam balaios de arroz limpo e pedaços de carne tremulante, que atiravam para enormes tambores de gasolina, cortados a meio, assentes sobre enormes fogueiras espalhadas pelo terreiro. A fervura erguera no ar alvos cachões fumegantes que espalhavam odor agradável a aguçar o apetite desmedido de centenas de balantas, que, impacientes, formigavam em volta dos caldeiros, sem se impor­tarem com o cheiro nauseabundo das vísceras, avidamente disputadas por centenas de jagudis.
Entrementes, enquanto continuava a distribuição de cabaços de arroz e nacos de carne, bem regados com óleo de palmeira e aguar­dente de cana, lá ao fundo, à entrada da mata, algo de irregular se passava.
As gentes de Monsongo (mulheres. filhos e netos) gritavam e insultavam-se mutuamente, gesticulando e saltando de modo estranho, até porque a aguardente ainda não tinha tempo de exercer os seus efeitos. Os grandes da tabanca haviam acorrido ao local, procurando acalmar os mais exasperados, com receio de que o choro de Monsongo terminasse em tragédia, como tantas vezes sucede em casos seme­lhantes. Porém, pouco depois, com pasmo dos presentes, aquela família, em litígio tão confuso como estranho, correra para a palhota que fora do velho lavrador. Ali tivera lugar um acto cómico, com balbúrdia invulgar no chão dos Balantas.
A cobertura de palha da casa que fora de Monsongo era desman­telada, malas de madeira despedaçadas, potes de barro feitos em mil pedaços, talhas de arroz voltadas nos corredores, colchões, depois de remexidos, desfeitos em tiras, enquanto as paredes estavam a ser batidas palmo a palmo. Porém, ao fim de busca minuciosa e turbulenta, nada encontraram. Mistério... Verdadeiro mistério!... Ninguém conse­guira encontrar as notas de banco que Monsongo, anualmente, trazia de Bolama ou de Fulacunda, quando vendia a colheita de arroz ou de mancarra. O dinheiro não era só de Monsongo! Pertencia também às mulheres, filhos e netos ...
Serenados os ânimos depois de uma arrumadela à palhota, não se falara mais no caso. Se o Irã assim o quis, nada havia a fazer!
- Vamos para o choro! - acordaram unanimemente.
De cima de enormes poilões e tagarras que envolviam o povoado, o Irã espreitava, dia e noite, os movimentos das «suas gentes». Assim pensavam os balantas idosos.
Na tabanca, os tambores continuavam a rufar, cada vez com mais furor.
Homens e mulheres, velhos e novos, comiam e bebiam desmedida­mente. Outros, em grande número, tem-te-não-caías, dançavam no terreiro com mil gestos símiescos. Ao rufar dos tambores, não havia no povoado nenhum balanta, mesmo cambaleante, que não procurasse acompanhar o ritmo em jeitos de dança, desarticulando-se em gestos difíceis de imitar.
Barulheira infernal. Um balanta, de tronco nu, já idoso, sumira-se na mata próxima, com uma perna de vaca às costas. Talvez receasse que a carne das trinta e seis vacas não chegasse para todos! Aquele balanta sem norte era Pêbe, o coveiro dos balantas, o qual, como era hábito na tribo, levara a sua quota-parte, a melhor perna de vaca.
Homens idosos, aturdidos, de mãos dadas, em pequenos grupos, cuspinhando a cada passo, caíam aqui e além, aninhando-se a seu jeito, sem se preocuparem muito com a dureza do leito...
O alarido redobrara. Os tambores rufavam ainda com mais furor! Mulheres novas, excitadas pelo álcool e pela dança sensual em ritmo de batuque, deixavam-se levar pelos blufos para moitas de capim ali a dois passos, entregando-se-lhes com o à-vontade que caracteriza povos primitivos.
Facto curioso! Entre os Balantas, as mulheres, enquanto novas, são autorizadas pelos maridos a praticar o adultério. Julgam assim praticar o mais sensato acto de justiça, dado que, no seu tempo de homens viris, da mesma forma lhe foram relevadas vezes sem conta faltas no género. Além do mais, é honra para o Balanta ver que as suas mulheres são requestadas por homens estranhos. O comportamento das mulheres, nesse capítulo, é menos interessante. Sempre que uma amiga da tabanca próxima a visite e queira aproveitar o ensejo para dormir com o seu homem, prima em lhe proporcionar o melhor acolhi­mento, circundando-a de atenções e procurando em primeiro lugar arranjar-lhe boa cama. Ela sabe muito bem que, na altura em que lhe for retribuir a visita, pode contar ainda com melhor acolhimento, porque nenhuma gosta de ficar atrás.
As festas prosseguiriam ainda enquanto durassem as provisões de arroz, da cana e de vaca. Ninguém arredava pé. Agora, era a vez de as mulheres de menor atracção tentarem a sua sorte. Mas nada con­seguiam. Os Blufos estavam exaustos da bebedeira e da estroíníce.
A madrugada surgia. O orvalho desprendia-se dos galhos circundantes em gotas de prata. Dispersos pelo terreiro, dezenas de corpos inertes davam aspecto de tragédia. O álcool imobilizara-os! Dezenas de fogueiras mortiças tremulavam ainda à distância. Pelo terreiro, mesmo até junto da mata, cabaços e mais cabaços de arroz e restos de carne sobejavam com abundância. Um bidão de aguardente de cana havia-se esvaziado por incúria durante a noite. O cheiro do álcool na terra ensopada dominava o ambiente. Surgira o dia. Os galos deixa­ram de cantar. Milhares de pardais saíam dos cachos de ninhos que enfeitavam a velha calabaceíra, chilreavam incessantemente a animar o povoado. Bandos enormes de garças brancas, voando em caprichosas formações, seguiam rumo ao poisio distante. Centenas de jagudis, empoleirados nos galhos, aguçavam o bico preparando-se para o último repasto, de quando em quando interrompidas por lutas inúteis. Por fim, à distância, ouvia-se ainda o som vibrante de trombeta impro­visada de chifre de vaca, cujos acordes anunciavam a alvorada na selva!
Calaram-se os tambores. Terminaram finalmente as provisões de arroz, de vaca e de cana e com elas o choro de Monsongo. Um choro famoso, que irá perdurar pela vida fora na lembrança dos Balantas daquela região!
Só decorridos dias, as gentes de Monsongo conseguiram ânimo para retomar o trabalho. Era preciso continuar. A bolanha reclamava a sua presença. De resto tudo continuaria como dantes. Dia após dia, todos regressaram à bolanha. Bessunha dirigia agora as lavras de Monsongo e por isso todos regressaram.
Todos, não!... Faltavam Irmna e Enramne e ainda o cachorro malhado. Durante a euforia do choro ninguém dera pela sua ausência. Ninguém sabia do seu paradeiro. Abandonaram a selva. Talvez tivessem atravessado a raia para chão diferente, para muito longe mesmo, em busca da palavra mágica que um dia os brancos lhe ensinaram: Cívi­hzaçãol
Enramne, Irmna e o cachorro malhado desapareceram misteriosa­mente, e, com eles, as notas de banco do garrafão de vidro que o velho Monsongo, pensando no choro, havia escondido avaramente no velho e infecto vindundji-péba (cemitério de Balantas).

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