
Região do Oio>Mata do Oio> Zona
de Tambicó - Samba Culo
Este Banquinho da Nova Escola de Samba
Culo, trazido em 29-03-2010 por Carlos Silva – ex-combatente, representa e
simboliza a Escola de outrora existente algures na zona onde se deu a batalha
aqui narrada e onde morreram vários combatentes, incluindo a Professora,
guerrilheira do PAIGC
Foto Carlos Silva
Não
me convenci disso, porque nunca na minha vida tinha querido matar alguém e
nunca quis morrer, sempre desejei viver.
E,
já lá na guerra, fui vendo alguns morrerem sem que quisessem, só porque tinham
sido enviados para aquela operação, só porque os colocaram naquele posto ou
naquela viatura, não dependeu deles.
Eu,
como quase todos, disparei muito a G3 em operações e emboscadas, mas nunca
soube se ficou alguém morto por mim no meio daquela mata ou atrás daquelas
árvores. A maior parte das vezes nem os víamos.
Mas,
naquelas operações “Inquietar” para tomar a base que o PAIGC tinha em Samba Culo [o comandante era Braima Bangura, que foi fuzilado por Nino
Viera depois do golpe de 1980], verifiquei, infelizmente, que era assim como me
tinham dito.
Foram
duas companhias de intervenção e o meu pelotão, da companhia de quadrícula,
foi-lhes agregado.
A nova Escola construída com o apoio do
Padre Carlo Andolfi da Missão Católica de Farim
Foto Carlos Silva
As
primeiras emboscadas fizeram-na à companhia da frente. Dei
indicação ao meu pelotão, que estava a meio, que entrasse pela mata para fazer
um envolvimento.
Fui
á frente e, a certa altura, disse-me o Lamine, meu guarda-costas, “estão ali
turras”. E estavam lá. Apontei,
sempre fui bom atirador, mas, horror em matar, apontei baixo e acertei na perna
dum deles. Corremos, mas eles fugiram arrastando o ferido.
Complicada
aquela mata. Foram três dias de marchas entre árvores e várias emboscadas. No
terceiro dia encostaram-nos ao rio Canjambari. Dizendo-me
o capitão comandante da operação:
Ó
Lopes, tenho aqui os meus homens organizados, vá você ver se fura o cerco.
Lá
fui, vi um e disparei, ouvi-o gritar “o cú” [não o matei pensei], mas levei
porrada e voltei para trás.
Passado
tempo disse-me para ir tentar novamente. Fui e de novo levei porrada, com a
agravante de um soldado meu ter levado um tiro nas costas, dos do capitão, que
também começaram a disparar.
Disse-lhe
não vou mais, é melhor chamar os T6.
Vieram,
despejaram umas bujardas à volta e lá nos safámos.
A seguir, a “Inquietar
II”, de 4 a 7 de Julho,
com os mesmos.
Região do Oio> Zona de Tambicó-Samba
Culo>Uma sala da Nova Escola, cujo equipamento utilizado é o que está à
vista , 29-04-2009 Foto Carlos Silva
O
Comandante, ao terceiro dia, optou por nova táctica: deixar uma companhia a
levar porrada a sul da base e, à socapa, a mata era cerrada, foi com a dele
mais o meu pelotão para oeste, virando para norte e atacando pelo lado do rio
Canjambari.
Entrámos
de repente, o grosso deles estava entretido com a outra Companhia, havia lá
três ou quatro que tentaram reagir mas foram abatidos pela Companhia, o meu
pelotão entrou por uma barraca coberta de colmo.
Estava lá uma rapariga
que agarrou numa kalashnikov.
Gritei-lhe
“tá quieta, firma lá!”. Mas
ela apontou-me a arma. Despejei-lhe
uma rajada na barriga, caiu no chão.
Fiquei
primeiro estático a olhar para ela, era bonita.
Virei-me,
mandei a G3 para o chão e gritei furioso “Merda!”. Os meus soldados olharam
para mim espantados. Um
furriel disse-me: “Olhe que ela matava-o”
Havia
várias carteiras, à minha frente um quadro preto com um desenho a giz branco de
um vaso de flores. Por
baixo tinha escrito, também a giz branco, “Um vaso de flores”.
Dei
depois com o 1º cabo P… em cima da rapariga agonizante e a levantar-lhe o
vestido.
Ainda
a tremer fui-me a ele, dei-lhe um murro e uns pontapés:
“Eu
dou cabo de ti, grande cabrão!” [coitado, o Gazela matou-o, mais tarde, em
Sinchã Jobel].
Veio
o Capitão, olhou para tudo, disse que era preciso ir fazer uma revista àquilo
tudo, que os gajos tinham largado a outra Companhia, tinham-se pirado.
Vi
o guia ao pé dele e perguntei-lhe se sabia quem era aquela rapariga que jazia
ali no chão.
É
a professora, Abess, disse-me ele.
Encontrámos
muita coisa. Ao sairmos pegámos fogo a um armazém de munições, que esteve a
rebentar durante vários minutos enquanto nos afastámos.
Aquela
morte que sei, não me tem saído da cabeça……
Região Oio>Mata do Oio> Zona de
Tambicó - Samba Culo, 29-03-2010. Foto Carlos Silva
Ali estava ela, jovem e bela como a
conheci há trinta anos, mas agora com um olhar calmo e um sorriso nos lábios,
vi-a na expectativa do meu abraço. E abracei-a... e chorei.
Professora, este jovem é o Cinco, que me trouxe
de jeep até aqui, e este é o Blétch Intéte, filho da siguê[1]
dos balantas de Barro.
O outro teu patrício, homem-grande[2],
é o Cacuto Seidi, chefe da tabanca[3]
de Barro. Foi ele que me disse que o Blétch Intéte tem irã[4]
e que só ele podia fazer com que eu te encontrasse.
A minha chegada aqui, há trinta anos, [1967]
foi muito diferente, como deves calcular, e não me refiro, evidentemente, às razões
de cada uma das viagens.
Desta vez, assim que pisei o aeroporto
Osvaldo Vieira[5],
tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse.
Por mais esforços, por mais conversas
apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui
acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os
desejos de ti.
Região do Oio>Mata do Oio> Zona
de Tambicó-Samba Culo>Escola de Samba Culo, 18-03-2009
Eram assim, ou pior ainda, as escolas e
casas de mato onde os guerrilheiros se acoitavam, nos anos 60/70 – Na Foto:
Carlos Silva; Prof Calabus Ferreta e o Ussumane Seik, Comando DFA
Perdido, cego de alegria e paixão,
chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos
todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado
para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham
ferido e matado amigos meus.
Passados nove meses, aqui voltei, para
continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de
entender o que se passava.
Região do Oio> Zona de Tambicó-Samba
Culo>Local da ex-Escola de Samba Culo, 29-04-2010
Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando
dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho.
Da segunda vez que abandonei a Guiné e
deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos
da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e
também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao
percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria
e de saudade consolada.
Para aqui chegar, frequentei bares e
prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia[6],
fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no
Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma,
não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi
a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na
Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista
sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos
clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz
filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas
mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de
solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci,
não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem
bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não
morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus,
pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque
tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de
to dizer.
Está
a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau.
Cinc, prépare le
jeep, nous en allons tout de suite.
Sabes,
professora, porque é que o meu
condutor se chama Cinco?
Nasceu
no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome
tão significativo.
Não,
não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo
só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar.
É
que, professora, nasceu há 23 anos,
muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3
por te ver empunhar a kalash que tinhas pendurada no quadro da escola.
Ele
não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever
português, com certeza.
Sei
que foste uma boa professora.
Vi
que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus
alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia.
Vi
os livros por onde aprendiam a ler.
vi
os cadernos de redacção e de cópias.
Está descansada, não matei nenhum
deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país.
Tenho
de partir, de voltar a Portugal.
Gostei
muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia
em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!”[7]
e tu não me disseste nada. Percebo
que nem me quisesses ouvir...
E
nunca mais dormi descansado até agora.
Quero
pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te
quando estavas agonizante. Conseguiste
ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês
minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra
de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela
matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou.Deve
andar, como tu, no meio desta floresta
do Oio.
Fala
com ele agora.
[1] Feiticeira tribal
[2] Homem idoso, respeitável, aceite como autoridade
pelos mais novos da povoação.
[3] Povoação.
[4] “Irã”, entre os balantas, que são animistas, é
qualquer ser da natureza, árvore ou animal, ou qualquer objecto a que é
atribuído poder mágico. «Tem irã» significa ter poder sobrenatural que é
preciso respeitar e temer.
[5] Aeroporto de Bissau, a que foi dado o nome de Osvaldo Vieira, herói do PAIGC,
morto durante a guerra de libertação.
[6] Cinema popular na Rua dos Condes, em Lisboa.
[7] Está quieta aí!
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