CONSULTAS

Para consultas, além da "Caixa de pesquisa" em cima à esquerda podem procurar em "Etiquetas", em baixo do lado direito, ou ver em PÁGINAS, mais abaixo ainda do lado direito, o "Mapa do Blogue"

Este blogue pode ser visto também em

13 de maio de 2012

479-A escola de Samba Culo


Região do Oio>Mata do Oio> Zona de Tambicó - Samba Culo
Este Banquinho da Nova Escola de Samba Culo, trazido em 29-03-2010 por Carlos Silva – ex-combatente, representa e simboliza a Escola de outrora existente algures na zona onde se deu a batalha aqui narrada e onde morreram vários combatentes, incluindo a Professora, guerrilheira do PAIGC
Foto Carlos Silva

 Fui mandado e disseram-me antes: Que é assim, vais ter que matar e até podes morrer, pode suceder, depende de ti.
Não me convenci disso, porque nunca na minha vida tinha querido matar alguém e nunca quis morrer, sempre desejei viver.
E, já lá na guerra, fui vendo alguns morrerem sem que quisessem, só porque tinham sido enviados para aquela operação, só porque os colocaram naquele posto ou naquela viatura, não dependeu deles.
Eu, como quase todos, disparei muito a G3 em operações e emboscadas, mas nunca soube se ficou alguém morto por mim no meio daquela mata ou atrás daquelas árvores. A maior parte das vezes nem os víamos.
Mas, naquelas operações “Inquietar” para tomar a base que o PAIGC tinha em Samba Culo [o comandante era Braima Bangura, que foi fuzilado por Nino Viera depois do golpe de 1980], verifiquei, infelizmente, que era assim como me tinham dito.
Foram duas companhias de intervenção e o meu pelotão, da companhia de quadrícula, foi-lhes agregado.


Região do Oio>Mata do Oio> Zona de Tambicó - Samba Culo, 29-03-2010
A nova Escola construída com o apoio do Padre Carlo Andolfi da Missão Católica de Farim
Foto Carlos Silva

 A “Inquietar I”, de 9 a 13 de Junho de 1967, não correu bem.

As primeiras emboscadas fizeram-na à companhia da frente. Dei indicação ao meu pelotão, que estava a meio, que entrasse pela mata para fazer um envolvimento.
Fui á frente e, a certa altura, disse-me o Lamine, meu guarda-costas, “estão ali turras”. E estavam lá. Apontei, sempre fui bom atirador, mas, horror em matar, apontei baixo e acertei na perna dum deles. Corremos, mas eles fugiram arrastando o ferido.
Complicada aquela mata. Foram três dias de marchas entre árvores e várias emboscadas. No terceiro dia encostaram-nos ao rio Canjambari. Dizendo-me o capitão comandante da operação:
Ó Lopes, tenho aqui os meus homens organizados, vá você ver se fura o cerco.
Lá fui, vi um e disparei, ouvi-o gritar “o cú” [não o matei pensei], mas levei porrada e voltei para trás.
Passado tempo disse-me para ir tentar novamente. Fui e de novo levei porrada, com a agravante de um soldado meu ter levado um tiro nas costas, dos do capitão, que também começaram a disparar.
Disse-lhe não vou mais, é melhor chamar os T6.
Vieram, despejaram umas bujardas à volta e lá nos safámos. 

A seguir, a “Inquietar II”, de 4 a 7 de Julho, com os mesmos.


Região do Oio> Zona de Tambicó-Samba Culo>Uma sala da Nova Escola, cujo equipamento utilizado é o que está à vista , 29-04-2009 Foto Carlos Silva

 Não foi diferente quanto às andanças na mata e às várias emboscadas, mas houve alguns feridos nossos desta vez.
O Comandante, ao terceiro dia, optou por nova táctica: deixar uma companhia a levar porrada a sul da base e, à socapa, a mata era cerrada, foi com a dele mais o meu pelotão para oeste, virando para norte e atacando pelo lado do rio Canjambari.
Entrámos de repente, o grosso deles estava entretido com a outra Companhia, havia lá três ou quatro que tentaram reagir mas foram abatidos pela Companhia, o meu pelotão entrou por uma barraca coberta de colmo.
Estava lá uma rapariga que agarrou numa kalashnikov.
Gritei-lhe “tá quieta, firma lá!”. Mas ela apontou-me a arma. Despejei-lhe uma rajada na barriga, caiu no chão.
Fiquei primeiro estático a olhar para ela, era bonita.
Virei-me, mandei a G3 para o chão e gritei furioso “Merda!”. Os meus soldados olharam para mim espantados. Um furriel disse-me: “Olhe que ela matava-o”
Havia várias carteiras, à minha frente um quadro preto com um desenho a giz branco de um vaso de flores. Por baixo tinha escrito, também a giz branco, “Um vaso de flores”.
Dei depois com o 1º cabo P… em cima da rapariga agonizante e a levantar-lhe o vestido.
Ainda a tremer fui-me a ele, dei-lhe um murro e uns pontapés:
“Eu dou cabo de ti, grande cabrão!” [coitado, o Gazela matou-o, mais tarde, em Sinchã Jobel].
Veio o Capitão, olhou para tudo, disse que era preciso ir fazer uma revista àquilo tudo, que os gajos tinham largado a outra Companhia, tinham-se pirado.
Vi o guia ao pé dele e perguntei-lhe se sabia quem era aquela rapariga que jazia ali no chão.
É a professora, Abess, disse-me ele.
Encontrámos muita coisa. Ao sairmos pegámos fogo a um armazém de munições, que esteve a rebentar durante vários minutos enquanto nos afastámos.
Aquela morte que sei, não me tem saído da cabeça……

 
Região Oio>Mata do Oio> Zona de Tambicó - Samba Culo, 29-03-2010. Foto Carlos Silva

 [Romagem do Autor em ficção ao trágico local] 

Ali estava ela, jovem e bela como a conheci há trinta anos, mas agora com um olhar calmo e um sorriso nos lábios, vi-a na expectativa do meu abraço. E abracei-a... e chorei.
Professora, este jovem é o Cinco, que me trouxe de jeep até aqui, e este é o Blétch Intéte, filho da siguê[1] dos balantas de Barro.
O outro teu patrício, homem-grande[2], é o Cacuto Seidi, chefe da tabanca[3] de Barro. Foi ele que me disse que o Blétch Intéte tem irã[4] e que só ele podia fazer com que eu te encontrasse.
A minha chegada aqui, há trinta anos, [1967] foi muito diferente, como deves calcular, e não me refiro, evidentemente, às razões de cada uma das viagens.
Desta vez, assim que pisei o aeroporto Osvaldo Vieira[5], tive de levar as mãos ao peito para que o coração não me abandonasse.
Por mais esforços, por mais conversas apaziguadoras, durante as quatro horas que durou a viagem, não consegui acalmá-lo nem convencê-lo de que era preciso dominar a ansiedade e moderar os desejos de ti.


Região do Oio>Mata do Oio> Zona de Tambicó-Samba Culo>Escola de Samba Culo, 18-03-2009
Eram assim, ou pior ainda, as escolas e casas de mato onde os guerrilheiros se acoitavam, nos anos 60/70 – Na Foto: Carlos Silva; Prof Calabus Ferreta e o Ussumane Seik, Comando DFA

Perdido, cego de alegria e paixão, chegara a hora da realização do sonho de vários anos, depois de desvanecidos todos os fantasmas, é claro, porque, quando saí daqui a primeira vez, evacuado para o hospital, este coração estava enraivecido com vocês todos, que me tinham ferido e matado amigos meus.
Passados nove meses, aqui voltei, para continuar na guerra, é verdade, ainda confuso mas já sem ódio e desejoso de entender o que se passava.


Região do Oio> Zona de Tambicó-Samba Culo>Local da ex-Escola de Samba Culo, 29-04-2010

Foi nessa minha fase, Professora, que nos conhecemos, quando dei contigo na tua escola de Samba Culo, naquela manhã de 7 de Julho.
Da segunda vez que abandonei a Guiné e deixei a guerra, a minha vontade e empenho foi esquecê-la, varrer-vos a todos da minha memória, lavar as marcas do sangue dos meus amigos, do meu próprio, e também do vosso, banir o medo e o cansaço que se me entranhara na alma ao percorrer as matas deste chão que, agora, vê lá!, reguei com lágrimas de alegria e de saudade consolada.
Para aqui chegar, frequentei bares e prostitutas, acumulei sessões contínuas no Olímpia[6], fui estudante mas nunca acabei cursos, percorri a Europa, estive em Paris, no Quartier Latin das minhas leituras, Londres, vi a Royal Guard e a rainha, Roma, não vi o Papa porque estava de férias em Castelgandolfo, e vê lá que me atrevi a passar a cortina de ferro, em Praga, Moscovo, onde namorei uma soviética na Praça Vermelha, a tchetchena Aniuska, Leninegrado e Kiev, fui activista sindical e militante político, participei em primeiros de Maio, fiz trabalhos clandestinos e levei porrada da polícia, dormi em esquadras, casei-me, fiz filhos e apanhei bebedeiras, bati nos filhos e descasei-me, conheci muitas mulheres, fiz amor por todo o lado, levei muitas negas e passei noites de solidão, dormi em bancos de jardim e debaixo de árvores, mas nunca te esqueci, não houve prazer-anfetamina que cauterizasse esta memória em carne viva nem bebida que a afogasse, cansei-me da vida, como me cansara antes para não morrer, e pensei em matar-me. Mas, olha, não consegui, não por causa de Deus, pois nesse período nunca fui à missa e nunca me confessei. Não o fiz porque tinha começado a amar-te e não queria morrer sem voltar a ver-te, sem deixar de to dizer.
Está a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau.
Cinc, prépare le jeep, nous en allons tout de suite.
Sabes, professora, porque é que o meu condutor se chama Cinco?
Nasceu no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome tão significativo.
Não, não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar.
É que, professora, nasceu há 23 anos, muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3 por te ver empunhar a kalash que tinhas pendurada no quadro da escola.
Ele não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever português, com certeza.
Sei que foste uma boa professora.
Vi que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia.
Vi os livros por onde aprendiam a ler.
vi os cadernos de redacção e de cópias.
Está descansada, não matei nenhum deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país.
Tenho de partir, de voltar a Portugal.
Gostei muito de falar contigo, tinha mesmo necessidade de o fazer, já que, naquele dia em que nos encontrámos pela primeira vez, só eu te disse “firma lá!”[7] e tu não me disseste nada. Percebo que nem me quisesses ouvir...
E nunca mais dormi descansado até agora.
Quero pedir-te uma última coisa, que desculpes aquele meu soldado que tentou violar-te quando estavas agonizante. Conseguiste ver ainda que não o deixei fazer isso. Perdoa-lhe, era bom rapaz, um camponês minhoto que para aqui foi lançado e, sabes, é fácil perder a cabeça numa guerra de inimigos fabricados. Talvez o encontres por aí, o teu camarada Gazela matou-o em Jobel e o corpo dele por cá ficou.Deve andar, como tu, no meio desta floresta do Oio.
Fala com ele agora.



[1] Feiticeira tribal
[2] Homem idoso, respeitável, aceite como autoridade pelos mais novos da povoação.
[3] Povoação.
[4] “Irã”, entre os balantas, que são animistas, é qualquer ser da natureza, árvore ou animal, ou qualquer objecto a que é atribuído poder mágico. «Tem irã» significa ter poder sobrenatural que é preciso respeitar e temer.
[5] Aeroporto de Bissau, a que foi dado o nome de Osvaldo Vieira, herói do PAIGC, morto durante a guerra de libertação.
[6] Cinema popular na Rua dos Condes, em Lisboa.
[7] Está quieta aí!

Sem comentários:

Enviar um comentário