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25 de maio de 2012

491-O rito foi quebrado


A
 GORA, a lua nasce tarde. Muito tarde. Por isso a tabanca está dispersa no negrume opaco da noite e as palhotas são sombras que se adivinham. De quando em quando um bovino muge sabe-se lá que dor oculta e rompe o silêncio que aperta os homens e as coisas.
Então, qualquer cão invisível rosna ao longe, para os lados da pali­çada. A aragem branda, que sobe do rio lamacento, agita os caules tenros do arroz e semeia mosquitos pela povoação dormente.
Nenhuma voz humana atravessa o barro, seco por muitos sóis, que reveste as casas. Porque vozes algumas há para o atravessar. Os homens atiraram os arados para um canto, ao cair da noite, e tombaram sobre as esteiras como mortos.
Anda no ar, envolto no cheiro a esterco e a barro húmido, o odor acre do fumo que se filtra pelo colmo das coberturas. Porque, em todas as casas, em todos os quartos, o lume arde junto das esteiras iluminando os corpos nus que repousam. É uma fumarada negra, lacrimogénia, que se eleva em novelos densos e escoa lentamente, muito lentamente, pelas raras frinchas.
Também Naála Bari sofre o horror do fumo. Ao canto do quarto, junto ao pote repleto de arroz, quatro achas em chamas avolumam as sombras e traçam, na parede nua, riscos de fumo.
Em casa de Naála não há qualquer lanterna. Cuma Naté, o marido, é rico. Tem «bolanhas» extensas e gado sem conta. Mas gasta, durante o «seco», todo o dinheiro em «cana».
Ela viu, uma vez, Cuma receber muito dinheiro. Mas, desde logo, o «branco» da loja trouxe a aguardente e disse coisas. Disse que Cuma
Naté não era macho. E levou-o, entre risos e muita conversa, para lá do balcão. O dinheiro ficou todo, todo, que Cuma precisava mostrar que bebia teso como verdadeiro macho.
Mas não o é. Ela já o viu tremer, como um garoto, quando Madja Bagi o mediu com o olhar em fogo. Foi uma vergonha. O chefe Infanda, encostado ao velho poilão, sorria de gozo e coçava a barba toda branca, pontiaguda e revolta. Parecia um bode. Aquele bode preto que CIodjê roubou aos mandingas da outra banda do rio. Foi uma vergonha.
Naála Bari sofre o horror do fumo e da maldição.
Talvez que o medo de Cuma criasse raiva no «lrã». Ou talvez Madja, que fala fula, trouxesse deles os «mezinhos» maus que originam trabalhos.
O certo é que sobre ela tombou a maldição. Uma maldição tão grande, tão grande, que a tolhe toda. Ela bem vê, no olhar de ódio que a «jam­bacosse» lhe atira, a grandeza do seu pecado. Terá que dar-lhe muito arroz para que se cale. Para que não conte nas tabancas vizinhas o cas­tigo que Cuma sofreu.
A medo, arriscou a mão pela largura da esteira. Os gémeos recém­-nados, mergulhados num torpor morno, enovelavam-se, unidos, como se aguardassem ainda a saída para o mundo.
Agachada junto do fogo, a «jambacosse» cozinha o arroz para levar, logo que o dia chegue, a estranhas divindades. Cuma Naté dirá depois qual o porco a sacrificar. Depois ...
Mas agora, para já, antes que a Lua venha, urge levar longe, para tão longe que não cause dano, aquela coisa que nasceu com o filho de Cuma.
De súbito, uma dor funda obriga-a a sentar-se, com um esgar: E se a velha se enganasse? Se expulsasse o filho de Cuma e deixasse em casa aquele outro que ela pariu depois?
Mas não. Cumba Nantofá não se engana nunca. Está na posse de todos os segredos e diz ao «Irã» palavras esquisitas.
E se lhe perguntasse?
Quando a velha, ao ouvir rumor, se voltou, apenas viu um rosto torcido de dor, apavorado. Com um gesto seco obrigou-a a deitar e atirou­-lhe com o pano que Cuma usava quando ia ao Posto.
O carinho, por inusitado, enterneceu-a. Procurou acomodar-se melhor e fechou os olhos. Um peso abrupto caiu-lhe sobre as pálpebras. No ven­tre e coxas uma dor aguda e persistente. Vagamente, sentiu que lhe sugavarn os seios. As cócegas obrigaram-na a erguer as mãos. Encontrou duas cabeças quentes e peganhentas que lhe causaram repulsa. Mas não as retirou. Ficou, inconscientemente, a afagá-las de manso ...
'"
                                                                    *                *
Tinha O corpo inundado em suor e uma secura na boca, quando acordou. A dor que a prostrara, atenuara-se. Agora, apenas no peito, sob o seio esquerdo, sofria uma picada mal definida, mas opressiva, que cortava a respiração e punha tremuras nas pernas robustas.
De pé, bem junto da esteira, a velha Nantofá fitava-a indiferente, com o olhar parado e baço de gazela focada. Sem ódio. Sem simpatia. Apenas aquela impassível serenidade de corpo sem alma que a ame­drontava.
Com um gesto tímido, Naála Bari gemeu por água. A «jambacosse» trouxe-lhe a caneca de folha oxidada que mergulhara no pote. Enquanto sorvia a água a longos goles, recordou a tarde longínqua em que, depois de farta colheita, Cuma aparecera fumando aqueles cigarros de «branco». Ele despejara todos no seu bolso e dera-lhe a lata que, nesse tempo, era brilhante e tinha um barco de muitas velas pintado a cores.
A velha atirou a caneca para um canto. Depois, com um leve aceno, fitou-a nos olhos, fê-Ia erguer-se.
Naála sentiu, de novo, aquela dor teimosa invadir-lhe o ventre escal­dante. Cambaleou, gemendo, e foi amparar-se pesadamente ao grande pote do arroz.
Quando ergueu os olhos doridos, encontrou O ricto mau que contraía as feições da Cumba. E logo qualquer coisa fria, e demorada, se lhe fincou na nuca e espalhou pela espinha. Sentiu, apavorada, que lhe fugiam as forças. Que forças algumas há a opor à velha «jarnbacosse» inexorá­vel como um destino.
Pensou no marido. Mas Cuma Naté, àquela hora, estaria talvez bebendo com os «grandes», festejando o nascimento do filho. Só de manhã receberia pública e oficialmente a feliz nova. E o tambor, sincopa­damente, rasgará o espaço até comunicar a notícia.
Mas o momento presente, este instante doloroso que parece eterni­zar-se, é um duro transe. E a velha Cumba, seca e má, impondo sua presença, imperturbavelmente...
Cá está ela, de novo. Põe-lhe nos braços um pequeno embrulho quente. Quente e palpitante.
Sente, bem junto ao seu peito, nos braços musculosos, em todo o corpo, a agitação daquele ser rabugento e choroso. E nas costas, dura e incómoda, a pressão insistente dos dedos da Cumba que, sem ruído, abriu a minúscula porta.
Um bafo frio, e húmido, esbofeteou Naála Bari. A escuridão arre­batou-a. E levou-a consigo, através da povoação, vestindo-a de humidade.
Apenas o instinto a guia pelos trilhos tantas vezes pisados e que a noite escondeu. Por inúteis, leva os olhos semicerrados - que o peso sobre eles é imenso. E o fardo que transporta, mudo e quedo depois de o haver aconchegado a si, é, agora, apenas uma pequena máquina que trabalha com imperceptíveis vibrações regulares.
O capim, alto e húmido, vergasta-lhe o rosto, com pequenas pan­cadas frias. Das «bolanhas» vêm os gritos hílares dos sapos. Dir-se-ia que milhões de chocalhos estão sendo agitados, freneticamente, em toda a parte. Nos campos em volta, ao perto e ao longe, nos seus ouvidos e no seu cérebro. Em toda a parte. Pela primeira vez nota esse barulho enorme, que enche a noite, torturante até à loucura.
Lá em baixo, à sua esquerda, logo após a vedação da «morança» dos Nantofás, a vereda corta quase em ângulo recto. Depois é o mato. inóspito e fechado como um abismo. Ou uma maldição...
. ..Madja Bagi é forte e audaz. Não teme o mato nem as moitas sem luz. E uma vez, em sua honra, foi longe, longe, roubar a vaca malhada que todos cobiçavam. E ela, ela foi para Cuma Naté, o homem que tremeu. O homem que, depois das colheitas, ouve conversa de «branco» de lojas. Madja fala fula. Trouxe deles, decerto, o segredo de fazer des­graça. Ou solicitou deles, talvez, o uso da maldição...
Naála Bari sabe que pouco andou ainda. A vereda que conduz ao porto, para a direita, não foi atingida. Para lá, muito para lá, acaba a tabanca. E depois, o mato.
A humidade que escorre, refrescando o seu corpo em fogo, dá-lhe um alento que não supôs possível. Mas nos pés, invisíveis grilhetas. pesadas como a noite, arrastam-lhe os passos. E luzes de febre, irisadas
e imóveis, dançam em volta incendiando-lhe as pálpebras. O pequeno fardo - pulsa que pulsa - é um chumbo que derreia. E quebra os braços.
Por isso, Naála não pensa - sofre. Um mal estranho, indefinido e frio, dá-lhe uma sonolência de anestesia.
Passos, passos. Luzes, ruídos, dores. Febre, muita sede. Passos...


Fernando R. Barregão


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