GORA, a lua nasce tarde. Muito tarde. Por isso a tabanca está dispersa no
negrume opaco da noite e as palhotas são sombras que se adivinham.
De quando em quando um bovino muge sabe-se lá que dor oculta e rompe o silêncio
que aperta os homens e as coisas.
Então, qualquer
cão invisível rosna ao longe, para os lados da paliçada. A aragem branda, que
sobe do rio lamacento, agita os caules tenros do arroz e semeia mosquitos pela
povoação dormente.
Nenhuma voz
humana atravessa o barro, seco por muitos sóis, que reveste as casas. Porque
vozes algumas há para o atravessar. Os homens atiraram os arados para um canto,
ao cair da noite, e tombaram sobre as esteiras como mortos.
Anda no ar,
envolto no cheiro a esterco e a barro húmido, o odor acre do fumo que se filtra
pelo colmo das coberturas. Porque, em todas as casas, em todos os quartos, o
lume arde junto das esteiras iluminando os corpos nus que repousam. É uma
fumarada negra, lacrimogénia, que se eleva em novelos densos e escoa
lentamente, muito lentamente, pelas raras frinchas.
Também Naála Bari
sofre o horror do fumo. Ao canto do quarto, junto ao pote repleto de arroz,
quatro achas em chamas avolumam as sombras e traçam, na parede nua, riscos de
fumo.
Em casa de
Naála não há qualquer lanterna. Cuma Naté, o marido, é rico. Tem «bolanhas» extensas
e gado sem conta. Mas gasta, durante o «seco»,
todo o dinheiro em «cana».
Ela viu, uma
vez, Cuma receber muito dinheiro. Mas, desde logo, o «branco» da loja trouxe a aguardente
e disse coisas. Disse que Cuma
Naté não era macho. E levou-o, entre risos e muita conversa, para lá
do balcão. O dinheiro ficou todo, todo, que Cuma precisava mostrar que bebia
teso como verdadeiro macho.
Mas não o é. Ela já o viu tremer, como um garoto,
quando Madja Bagi o mediu com o olhar em fogo. Foi uma vergonha. O chefe
Infanda, encostado ao velho poilão, sorria de gozo e coçava a barba toda
branca, pontiaguda e revolta. Parecia um bode. Aquele bode preto que CIodjê
roubou aos mandingas da outra banda do rio. Foi uma vergonha.
Naála Bari sofre o horror do fumo e da maldição.
Talvez que o medo de Cuma criasse raiva no «lrã». Ou talvez Madja, que fala fula,
trouxesse deles os «mezinhos» maus que originam trabalhos.
O certo é que sobre ela tombou a maldição. Uma
maldição tão grande, tão grande, que a tolhe toda. Ela bem vê, no olhar de ódio
que a «jambacosse» lhe atira, a grandeza do seu pecado. Terá que dar-lhe muito
arroz para que se cale. Para que não conte nas tabancas vizinhas o castigo que
Cuma sofreu.
A medo, arriscou a mão pela largura da esteira.
Os gémeos recém-nados, mergulhados num torpor morno, enovelavam-se, unidos,
como se aguardassem ainda a saída para o mundo.
Agachada junto do fogo, a «jambacosse» cozinha o
arroz para levar, logo que o dia chegue, a estranhas divindades. Cuma Naté dirá
depois qual o porco a sacrificar. Depois ...
Mas agora, para já, antes que a Lua venha, urge
levar longe, para tão longe que não cause dano, aquela coisa que nasceu com o
filho de Cuma.
De súbito, uma dor funda obriga-a a sentar-se,
com um esgar: E se a velha se enganasse? Se expulsasse o filho de Cuma e
deixasse em casa aquele outro que ela pariu depois?
Mas não. Cumba Nantofá não se engana nunca. Está
na posse de todos os segredos e diz ao «Irã» palavras esquisitas.
E se lhe perguntasse?
Quando a velha, ao ouvir rumor, se voltou, apenas
viu um rosto torcido de dor, apavorado. Com um gesto seco obrigou-a a deitar e
atirou-lhe com o pano que Cuma usava quando ia ao Posto.
O carinho, por inusitado, enterneceu-a. Procurou
acomodar-se melhor e fechou os olhos. Um peso abrupto caiu-lhe sobre as
pálpebras. No ventre e coxas uma dor aguda e persistente. Vagamente, sentiu
que lhe sugavarn os seios. As cócegas obrigaram-na a erguer as mãos. Encontrou
duas cabeças quentes e peganhentas que lhe causaram repulsa. Mas não as
retirou. Ficou, inconscientemente, a afagá-las de manso ...
'"
* *
Tinha O corpo inundado em suor e uma secura na
boca, quando acordou. A dor que a prostrara, atenuara-se. Agora, apenas no
peito, sob o seio esquerdo, sofria uma picada mal definida, mas opressiva, que
cortava a respiração e punha tremuras nas pernas robustas.
De pé, bem
junto da esteira, a velha Nantofá fitava-a indiferente, com o olhar parado e
baço de gazela focada. Sem ódio. Sem simpatia. Apenas aquela impassível
serenidade de corpo sem alma que a amedrontava.
Com um gesto tímido, Naála Bari gemeu por água. A
«jambacosse» trouxe-lhe a caneca de folha oxidada que mergulhara no pote.
Enquanto sorvia a água a longos goles, recordou a tarde longínqua em que,
depois de farta colheita, Cuma aparecera fumando aqueles cigarros de «branco».
Ele despejara todos no seu bolso e dera-lhe a lata que, nesse tempo, era
brilhante e tinha um barco de muitas velas pintado a cores.
A velha atirou a caneca para um canto. Depois,
com um leve aceno, fitou-a nos olhos, fê-Ia erguer-se.
Naála sentiu, de novo, aquela dor teimosa
invadir-lhe o ventre escaldante. Cambaleou,
gemendo, e foi amparar-se pesadamente ao grande pote do arroz.
Quando ergueu os olhos doridos, encontrou O ricto
mau que contraía as feições da Cumba. E logo qualquer coisa fria, e demorada,
se lhe fincou na nuca e espalhou pela espinha. Sentiu, apavorada, que lhe
fugiam as forças. Que forças algumas há a opor à velha «jarnbacosse» inexorável como um destino.
Pensou no marido. Mas Cuma Naté, àquela hora,
estaria talvez bebendo com os «grandes», festejando o nascimento do filho. Só
de manhã receberia pública e oficialmente a feliz nova. E o tambor, sincopadamente, rasgará o espaço até comunicar a
notícia.
Mas o momento presente, este instante doloroso
que parece eternizar-se, é um duro transe. E a velha Cumba, seca e má, impondo
sua presença, imperturbavelmente...
Cá está ela, de novo. Põe-lhe nos braços um
pequeno embrulho quente. Quente e palpitante.
Sente, bem junto ao seu peito, nos braços
musculosos, em todo o corpo, a agitação daquele ser rabugento e choroso. E nas
costas, dura e incómoda, a pressão insistente dos dedos da Cumba que, sem
ruído, abriu a minúscula porta.
Um bafo frio, e húmido, esbofeteou Naála Bari. A
escuridão arrebatou-a. E levou-a consigo, através da povoação, vestindo-a de
humidade.
Apenas o instinto a guia pelos trilhos tantas
vezes pisados e que a noite escondeu. Por inúteis, leva os olhos semicerrados -
que o peso sobre eles é imenso. E o fardo que transporta, mudo e quedo depois
de o haver aconchegado a si, é, agora, apenas uma pequena máquina que trabalha
com imperceptíveis vibrações regulares.
O capim, alto e húmido, vergasta-lhe o rosto, com
pequenas pancadas frias. Das «bolanhas» vêm os gritos hílares dos sapos.
Dir-se-ia que milhões de chocalhos estão sendo agitados, freneticamente, em
toda a parte. Nos campos em volta, ao perto e ao longe, nos seus ouvidos e no
seu cérebro. Em toda a parte. Pela primeira vez nota esse barulho enorme, que
enche a noite, torturante até à loucura.
Lá em baixo, à sua esquerda, logo após a vedação
da «morança» dos Nantofás, a vereda corta quase em ângulo recto. Depois é o
mato. inóspito e fechado como um abismo. Ou uma maldição...
. ..Madja Bagi é
forte e audaz. Não teme o mato nem as moitas sem luz. E uma vez, em sua
honra, foi longe, longe, roubar a vaca malhada que todos cobiçavam. E ela, ela
foi para Cuma Naté, o homem que tremeu. O homem que, depois das colheitas, ouve
conversa de «branco» de lojas. Madja fala fula. Trouxe deles, decerto, o
segredo de fazer desgraça. Ou solicitou deles, talvez, o uso da maldição...
Naála Bari sabe que pouco andou ainda. A vereda
que conduz ao porto, para a direita, não foi atingida. Para lá, muito para lá,
acaba a tabanca. E depois, o mato.
A humidade que escorre, refrescando o seu corpo
em fogo, dá-lhe um alento que não supôs possível. Mas nos pés, invisíveis
grilhetas. pesadas como a noite, arrastam-lhe os passos. E luzes de febre,
irisadas
e imóveis, dançam em volta
incendiando-lhe as pálpebras. O pequeno fardo - pulsa que pulsa - é um chumbo que derreia. E quebra os braços.
Por isso, Naála
não pensa - sofre. Um mal estranho, indefinido e frio, dá-lhe uma sonolência de
anestesia.
Passos, passos. Luzes, ruídos,
dores. Febre, muita sede. Passos...
Fernando R. Barregão
Fernando R. Barregão
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