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1 de setembro de 2011

245-O Gonçalves

             (...)
Às vezes encontrávamo-nos com os da Filosofia. Havia um dos filósofos, como lhes chamávamos, que eu achava simpático. Era o Gonçalves, um tipo aberto e que nunca me vinha com aquelas coisas passadas a papel químico, conversa decorada, como era hábito dos noviços meus colegas. Quando nos encontrámos, um dia, desabafei:
“Estou a ficar baralhado com o que o Padre Mestre diz, um bocado”, porque, apesar de gostar dele, tive receio de lhe dizer que eram muitas as minhas dúvidas.
“Aguenta, pá. Eu sei como é porque também por lá passei. O papel dele é esse, para que saiam dali como ele quer. Mas na Filosofia vai ser melhor, estudamos umas coisas porreiras, eu até gosto. Abre-nos a mente e não é tão massacrante”.
“Tá bem, mas é difícil”.
“Deixa andar. O futuro ainda vem aí, não é já agora. Muita coisa pode acontecer, sabes lá tu”.
E contou-me a história de um seminarista que, desgostoso com a sua vida de clausura, despiu a sotaina, pendurou-a numa figueira e fugiu, saltando o muro do seminário. Não deu para trocar comentários, porque apareceu ao pé de nós um padre.
“Que grande conversa, hei. Estão a filosofar?”
Era o hábito. Nunca deixavam que dois estivessem muito tempo a falar sozinhos. Fiquei chateado e radicalizei. Deu-me vontade de deixar aquela porcaria. Gostava de encontrar uma figueira, para pendurar todos os meus complexos, todas as minhas frustrações, todas as cadeias que me rodeavam dia a dia e nas quais eu me ia deixando enlear. Fui-me embora.
Nessa noite fez uma trovoada medonha. Foi como eu estava, grandes tormentas e mim. Saí da cama e fui para a janela ver os raios e o ribombar dos trovões. 
No dia seguinte fui chamado ao Director Espiritual. Era assim, de vez em quando éramos chamados. Pregavam que quem não compreende a direcção espiritual está em perigo de fracassar, que ela faz parte da autoridade que Jesus deu à sua Igreja, que Jesus quer que nos sujeitemos aos seus representantes. Até me consideraram tolo quando citaram S. Bernardo: “Quem se faz mestre de si mesmo põe-se sob a guia de um tolo”.
Mas fui lá e manifestei-lhe o meu desagrado pela cena do dia anterior.
“Eu sei que vocês são amigos. Mas olha que a amizade é uma coisa muito delicada e que facilmente se estraga.”
“Mas eu dou-me bem com ele, é com quem eu mais gosto de falar”.
“Percebo. Mas tem cuidado. Porque este apego pode impedir de servir bem a Deus. ”.
 Ainda falou sobre outras tretas. Mas a que me ficou foi a táctica pedagógica das insinuações. Que merda! O que é que isto tinha a ver com eu gostar de falar com o Gonçalves?
          (...)
           Mas entrei na Filosofia.
Lá encontrei o Gonçalves, que me deu as boas vindas e me reafirmou que aquilo não era mau, até tinha interesse. E era verdade. Gostei das novas matérias, eram outra coisa, ajudavam-me a reflectir. Lógica, Filosofia-Cosmologia, Análise Literária, Literatura Portuguesa. Excelentes. Empenhei-me. Havia também outras: Português, Latim e Grego, claro, e Geografia,  Matemática e Desenho. Não tão motivadoras, mas empenhei-me também. No entanto, fui verificando que havia muito individualismo e falta de camaradagem. Cada um cuidava da sua capelinha. A não ser com um ou outro, e o Gonçalves é claro, que me pareciam de espírito menos pesado, nunca me dei com mais ninguém. E continuava a haver a maçada das missas diárias, e a dobrar ao domingo, e mais os terços e as pregações. A certa altura comecei a ter dúvidas se me aguentaria.
Um dia, houve uma festa qualquer, e foram convidados familiares dos filósofos. Veio a minha irmã e o meu irmão. Gostei de estar com eles e, às tantas, juntou-se-nos o Gonçalves e a irmã dele, que também tinha vindo. Convivemos e eu fiquei encantado com ela. Era linda e simpática, achei que ela também tinha simpatizado comigo. Era uma coisa nova no meu tão pequeno universo. Quando aquilo acabou e nos despedimos, foram as palavras de circunstância mas na minha cabeça disse-lhe adeus, amor, ficarás no mais fundo do meu coração, és aquela estranha sensação que sinto no fim dum sonho lindo. Fazes-me lembrar o sonho mais belo que tive até agora.
A situação passou e voltei ao pessimismo depois. A vida é uma comédia. Às vezes, pensamos ser os protagonistas. Só no fim é que descobrimos que fomos o histrião. Voltei a esforçar-me por matar em mim o sentimento. Cada vez me convencia mais que a insensibilidade era o estado da verdadeira felicidade. Só me sentia bem quando estava longe dos outros. Amei a solidão, longe dos homens e de tudo o que me perturbava. Só, comigo, era o melhor. Não havia maior estupidez do que recordar o passado, principalmente se foi um passado feliz.
Houve uma altura que fiquei doente, já nem sei porquê.. Olhei para as paredes do quarto e lá estava Deus de um lado e a sua mãe do outro. Ele numa cruz e a mãe dele calada. Há quanto tempo aí estais?, pensei. Tudo calado, tudo morto. Estive até muito tarde sem comer. Fui visitar o vizinho do lado que também estava doente. A minha vontade era ficar fechado dentro do meu casulo. Venceu-me o sentimento... não passou de sentimento. Mas queria ter um coração de pedra, insensível e duro. Gostava de consegui-lo.
(...)
No fim desse mesmo mês de Fevereiro, o Director chamou-me novamente e disse-me que eu ia para o Porto, para dar aulas num colégio que lá têm de miúdos pobres e abandonados.
“É para pensares”, disse-me ele.
“Já estou farto de pensar! Mas está bem, vou continuar a pensar.”
 Nem o segundo ano da Filosofia me deixaram acabar. Tive pena, mas era bom mudar daquilo tudo, deixar aquela gente que detestava na sua maioria.
(...)
Um dia o Omero, que era o gestor das coisas correntes do colégio, entregou-me uma carta. Era do meu amigo Gonçalves. Dizia-me ele:
“Inesquecível amigo. Encontrei-me há meses com o Padre Zé Maria. Já estava muito mal. Sei que morreu (só os filhos da mãe é que não morrem...). Rememorando tempos e sucessos passados, falámos também em ti. É a vida. A difícil vida sem lenitivos. Sem nada. Quase insípida. Mas a que temos de achar sabor. O ambiente aqui na Faculdade é primário. Leve. Um conjunto de diletantes. Pouca profundeza. Nenhuma mentalidade. Uma Universidade sem ideologia. Os professores despejam a bocejar coisas, ideias, doutrinas, sem nada de vivencial, sem nada de colectivamente equilibrado. O equilíbrio é para eles um pressuposto da nossa parte. Tenho-me lembrado bastante de ti. Previa já esse desfecho. São coisas aborrecidas. Azedas como absinto. A vida talvez venha a ser um arroto de absinto de Deus. Gostava muito que me escrevesses. Talvez te possa ser útil a minha ajuda em qualquer sector.
Teria muito gosto em te escrever uma carta imensa, mas não me é possível. Que Deus, o pai dos fracassos, das topadas, das incompreensões, dos suicídios lentos, das câmaras de gás e dos campos de concentração, o fazedor de tudo o que na vida sabe a absinto, a fel e a vómito te proteja. Sem Ele, nada. Esgotados os recursos dos homens há sempre uma apelação: Ele. Adeus. Cumprimentos do Gonçalves.
Era o estilo dele, irónico. E deu-me a morada na Rua Almirante Barroso, em Lisboa. Como o invejei por ter encontrado a figueira... Não lhe respondi porque não estava com disposição na altura, e também com receio que alguém lesse o que eu tinha vontade de dizer-lhe sobre os meus desejos de mudança. Pensei no apertado controlo que havia no Noviciado e na Filosofia e não sabia se o não fariam ali também.
(...)
Quando fui para o RI1, na Amadora, ia chateado porque tinha acabado de cumprir os 9 dias de detenção que o comandante da EPI me tinha dado, mesmo no dia em que acabou o Curso de Oficiais Milicianos. Mas tive uma surpresa. Encontrei lá o Gonçalves. Feitas as apresentações da praxe, fui ter com ele, como combináramos, a uma mesa lá ao canto do bar de oficiais, no primeiro andar.
"Então, senhor Aspirante, como é que vieste aqui parar?", perguntou-me ele.
"Olha, mandaram-me. E tu, o que é que fazes aqui?"
"Estou aí numa companhia que está prestes a embarcar para Moçambique. E tu, o que é que vieste fazer?"
"Oh, o que é que achas?... É evidente que é até me arranjarem também uma companhia que vá para a guerra. É a vida".
"É a vida o caraças. Tens de pensar", e abaixou a voz, "que nós, sobretudo, é que decidimos da nossa vida".
"Tá bem, mas há coisas que são inevitáveis, e esta é uma delas".
"Não é nada, pá, não é nada. Tu podes mudar..." Calou-se porque se sentaram na mesa ao lado dois outros aspirantes. Vi que conheciam o Gonçalves.
"São dois gajos da minha companhia".
Ficámos um momento em silêncio.
"Ouve lá, lembrei-me agora. Naquela carta que me enviaste quando eu estava no Porto disseste que andavas na Universidade. Onde é que andaste?"
"Na Faculdade de Letras de Lisboa, em História".
Fiquei espantado.
"É pá, porra, não pode ser. Eu também andei lá, em Românicas, e nunca te vi...".
"Pois, não me deves ter visto, não. É que eu estive um ano dentro, em Caxias, por participar nas lutas estudantis. Não te preocupes", disse-me quando olhei receoso para a mesa do lado, "toda a malta da companhia sabe disto. Quando foste para lá já eu não estava, certamente. Depois de sair da pildra mandaram-me para a tropa".
Olhámo-nos os dois.
"Mas estiveste em Mafra, claro, e também não te vi lá..."
"Devo ter estado no curso anterior ao teu... Bem, tenho de me ir embora. Como vês", e apontou-me a braçadeira no braço, "estou de serviço".
"Hás-de-me contar como é que foi isso".
Levantou-se. apertou-me a mão e segredou-me ao ouvido:
"Adeus. Hás-de ter notícias minhas".
Nunca mais o vi. No dia seguinte, antes do render da guarda, procurei-o mas não o encontrei. Perguntei ao sargento de dia:
"Onde é que está o aspirante Gonçalves?"
Ficou atrapalhado e baixou os olhos. Levantou-os e olhou para o lado. Acabou por me fitar calmamente.
"Não sei onde está, ninguém sabe, desapareceu". Fez uma pausa e baixou novamente os olhos. "E a FBP que tinha de serviço também ninguém sabe dela".
Foi assim a deserção do Gonçalves.
Um ano depois, quando estava no HMP, por ter sido ferido na Guiné, contei isto ao Norberto (ver isto), que também lá estava. Disse-me que tinha conhecido o Gonçalves e que, infelizmente, ele tinha morrido num desastre de automóvel em França.
Foi mesmo "um arroto de absinto de Deus", pensei.

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