A planície de água amarelenta estendia-se até onde a neblina deixava ver e o ar quente que dela se desprendeu penetrou-me na pele e nos pulmões. 0s olhos não conseguiam ir mais além nesta paisagem fechada. Um sufoco na voz e um suor pelo corpo todo não me deixaram dizer nada quando alguém perto de mim comentou que era o rio Geba, fora atingido pelo espanto e pelo receio que vinham do incógnito, ricocheteando pela água e pelo nevoeiro. Onde é que eu vim parar!...
Lera muitos condores, cavaleiros andantes, mundos de aventuras… mas as perspectivas juvenis que tivera de aventura e emoção diluíram-se naquele ambiente mortiço, apenas apossando-se de mim o sentimento da chegada ao inevitável. Fiquei apreensivo com o que estaria para mais além. Ao pé ninguém se riu, ninguém cantou, ninguém agitou os braços de contentamento, o futuro era aquilo para todos, amarelo e nebuloso. Quedei-me com o olhar perdido, tentando adivinhar o concreto ainda invisível, apenas com o vislumbre que me fora dado em Mafra na especialidade de atirador, e que era para vir matar ou para vir ser morto.
Não mato nem uma mosca nem um mosquito, só os enxoto para não me incomodarem, as abelhas e vespas deixo-as voltear à vontade, esperando que não vejam nada em mim que lhes interesse e sintam que não lhes quero mal, aos gatos e cães só faço festas e atiro comida, até já fui arranhado e mordido mas nunca lhes bati, apenas bato com o pé para ver as lagartixas correrem velozes por entre as ervas, pego no rabo das osgas que vejo nas paredes da minha casa e amando-as pela janela fora. É verdade que atirei um martelo à cabeça do Jaime, o meu amigo cabo-verdiano, porque nos chateámos e ele me chamou um nome que eu não gostei, mas fiquei contente por não lhe ter acertado e continuámos amigos, e também dei um murro num colega cadete que me empurrou quando estávamos numa formatura em Mafra. Mas nunca me passou pela cabeça matar alguém, nem agora. E morrer, morrer foi um desejo quando seminarista amargurado com os recalcamentos da minha natureza e por causa da pressão da instituição que me amarrava, mas depois disso quero é viver a vida que sonhei, não quero já morrer. É mau matar, e morrer também. Que vou fazer?
A questão do mal menor, evidência da situação imposta, o menos mau quando não há remédio, o dilema de quem não consegue matar uma mosca face aos que vêm do mato a gritar mata, mata, como me disseram? Não tive tempo de cimentar qualquer ideia, porque veio o capitão e disse que chegava uma vedeta que o ia levar a Bissau, para ir ao QG receber ordens, que os alferes podiam ir com ele, mas que tinha de ficar um em troca com o que estava de Oficial de Dia. Ofereci-me.
“Fico eu, não estou com disposição para andar mais de barco”.
Agora não estava nada para isso, não imaginando, é claro, para o que estava destinado no dia seguinte. A vedeta levou o capitão e os outros alferes, fiquei com todos no “transatlântico” que nos trouxe durante sete dias, um navio cargueiro que largou do cais de Alcântara em direcção à Guiné.
Ao fim de sete longos e incómodos dias e noites tenebrosas em que se viu só mar, sem gaivotas nem terra à vista, o cargueiro chegou à foz do chamado rio Geba. Eram cinco da tarde e já começava a escurecer. Viam-se ao longe já algumas luzes que, foi dito a todos, era a cidade Bissau. Já nos tinham falado que iríamos parar à Guiné, mas isto do rio e da cidade eram nomes novos. Acabava por ser a visão directa do que tinha sido o vago conhecimento quando me mostravam os mapas na escola e me diziam que era o Império Colonial Português, a que começaram a chamar, mais recentemente, Províncias Ultramarinas. Ali estava a Guiné, uma delas, ficámos todos a saber que tinha uma capital chamada Bissau no estuário do rio Geba. Eram aquelas luzes ao longe.
Fiquei esticado no meu beliche.
Já dormitava quando abriram a porta de rompante, vinham excitados.
“É pá, não sabes o que perdeste. A cidade é pequena e não vale nada, só se vêem pretos e tropa por todo o lado, mas tem uns bares porreiros, há marisco e cerveja ao preço da chuva. Não quiseste vir, agora estás feito, o Braga disse que amanhã logo de manhã vamos numa LDM pelo rio acima até ao nosso destino.”
“Feito já eu estou há muito tempo. Sei lá o que é uma LDM… E, já agora, qual vai ser o nosso destino?.”
“É pá, é uma lancha onde nos vão meter a todos, é uma lancha de desembarque, chamam-lhe menor… quanto ao sítio para onde vamos o capitão disse que é sigiloso.”
“Tá bem, caguei, tanto me faz, deve ser a mesma merda em todo o lado.”
Assim foi. Mas só depois do almoço, pois disseram que só podia ser com a maré a encher, é que a tal LDM encostou à bochecha do barco. Com ordens e reparos das tripulações de cima e de baixo, a escada de portaló foi baixada e presa na lancha, após o que todos fomos descendo, ajoujados de sacos, malas e outras bagagens, os soldados e sargentos para o convés e os oficiais no alto, perto da cabine. Largou pelo rio acima, com águas tão claras como as do mar, nada que se parecesse com as que estavam quando tínhamos chegado. Do lado direito uma ilha verdejante, à esquerda a cidade de Bissau, casas pequenas amareladas, várias embarcações no porto pequeno, montes de pretos a ver passar. Seguiu ronronando os motores.
Parecia um cruzeiro turístico, todos procurando, dum lado e doutro, encontrar pontos altos para ver a paisagem, nós, os alferes, e o capitão víamos melhor porque estávamos lá alto ao pé da cabine. Rio largo, maravilha, lembrava-me das travessias do Tejo debaixo do sol escaldante do verão. Mas não, não havia Cacilhas à vista, nem os guindastes gigantes da Lisnave ou, mais longe, as chaminés fumegantes da CUF no Barreiro. Não ia apanhar a camioneta para a Costa da Caparica nem ia atravessar o Sado para Tróia e ir ter com a Natércia. Que raio de lembrança agora, do meu primeiro amor! Juro que não vou pensar mais nela.
Mas não, eu sou o morto a cavalo de Henri Ghéon. É melhor não jurar. Mas não tenho a certeza de nada. O homem, todo o homem deveria ser como Norberto: consciente da sua incerteza, condenado a ser um joguete das circunstâncias. Gergório, o chefe, e os que juraram, faltaram a esse juramento, por motivos que eles julgaram justos. E eram justos, humanos, dignos de consideração. Mas faltaram, e pecaram por isso. Ninguém jura falso impunemente. Bem fez Norberto que não jurou. Julgou-se como realmente era, inconstante, sujeito às circunstâncias, teve medo de não cumprir o jurado. Qualquer juramento é forçado. Força-se o homem a jurar aquilo que ele não está seguro de poder fazer. O homem é forçado a cumprir um juramento. Quando o cumpre não pratica uma boa acção. Que esta deve vir do fundo, com gosto. Quem jura vai contra a sua própria natureza inconstante, contra o seu próprio destino. Coloca o homem em situações angustiosas ou, então, faz com que ele falte levianamente. Porque será necessário ao homem jurar, às vezes? Para se enganar a si mesmo, ou, melhor, para calar aquela voz contínua que lhe diz que “todo o homem é mentiroso”, que é incerto o dia de amanhã, que tudo pode acontecer na vida.
Cortaram-me os pensamentos. Gerou-se grande agitação ao pé da cabine. O rio estreitara muito, com densa floresta nas margens, com curvas e contracurvas sempre a aparecerem, o marinheiro agarrado à metralhadora pesada dizia que na próxima curva costumavam ser atacados, provocando grande apreensão nos rostos de todos. O alferes Castro, o ranger, de olhos esbugalhados, gritava:
“Onde estão as nossas armas?”
Mas o capitão dizia:
“Quando chegarmos ao destino é que as temos”.
“Estão a gozar com os periquitos”, rosnava o Zé Pedro, de riso céptico. O Aprígio, o mais novo e sempre calado normalmente, olhava sem dizer nada. Eu, sacado abruptamente dos meus pensamentos, fiquei receoso, enquanto o Braga dizia para a tropa no convés que se baixasse.
“Já começam a foder-nos. Não sei se são eles ou são os nossos. Ou uns e outros…”, deu-me para comentar.
Mas não houve nada, seguíamos por aquele rio que parecia serpentear por entre árvores descomunais, palmeiras e outra vegetação densa e intrincada de nomes ainda desconhecidos. Após uma curva mais apertada vimos ao longe uma clareira à beira rio, parecia uma praia, estava com gente, cheia de camuflados. Chegámos. Alívio de todos. A lancha chegou-se à frente, abriu a porta da proa, o capitão foi o primeiro a saltar para a água baixa, atrás foi a tropa fandanga com os seus haveres, ordenada pelos alferes. Amontoaram-se em terra seca, sacudindo os pés molhados, enquanto o Braga conversava com outro capitão que se encontrava entre aqueles camuflados todos que olhavam risonhos para os recém-chegados. Chegou-se depois o capitão a nós:
“A lancha vai regressar a Bissau, antes que a maré comece a descer. A companhia vai dormir aqui e amanhã seguirá em coluna auto para o seu destino.”
“Então isto ainda não acabou?”, grunhiu o Zé Pedro.
“Está a começar”, e ri-me.
“Uma caminha fazia-me jeito agora”, largou o ranger enquanto se espreguiçava.
“Mas não vai haver camas”, disse o capitão. “O comandante daqui disse-me que as camas estão todas ocupadas pela companhia dele, só arranja uma para mim. Ali mais à frente há um terreno, levem os homens para lá, abanquem por pelotões, ficarão ali durante a noite”.
O Zé Pedro baixou a cabeça, apertou os dedos e exclamou:
“Que foda do caralho.”
O Aprígio disse que merda, baixinho. Eu encolhi os ombros e abri os braços de resignação, o ranger Castro desvairou-se perguntando onde estavam as G3.
"Já disse que amanhã, só quando chegarmos onde ficaremos definitivamente é que teremos as armas da companhia que vamos render! O capitão daqui garantiu-me que não haverá problemas!"
"Meu capitão, mas isto assim não pode ser, não é seguro", segredava-lhe o ranger, de olhos esbugalhados.
"Ó nosso alferes, garantiram-me que estarão em segurança, vamos lá para o sítio onde ficarão esta noite!”
"Já disse que amanhã, só quando chegarmos onde ficaremos definitivamente é que teremos as armas da companhia que vamos render! O capitão daqui garantiu-me que não haverá problemas!"
"Meu capitão, mas isto assim não pode ser, não é seguro", segredava-lhe o ranger, de olhos esbugalhados.
"Ó nosso alferes, garantiram-me que estarão em segurança, vamos lá para o sítio onde ficarão esta noite!”
“Já começo a ver quem é que nos está a lixar”, disse eu baixinho.
Já passava muito das cinco horas e o sol já estava longínquo, quase adormecido, acenando rente às matas que estava para se ir deitar. Um céu de laranja suja permitiu-lhes ainda ver que era um terreno com alguns arbustos pequenos e ervas rasteiras em frente do aquartelamento.
“Instalem-se como puderem”, ordenaram os alferes, “amanhã vamos largar cedíssimo.”
O capitão já tinha basado para ir comer com o outro lá do sítio. Passado uns tempos apareceram uns soldados da companhia local com um grande caldeirão de sopa e umas malgas de lata, distribuíram também o conduto: rações de combate. Todos comeram a sopinha e, a seguir, as conservas de feijão com chouriço e de sardinhas, os biscoitos secos e adoçaram a boca com frutas cristalizadas. Vários protestaram com a ementa, mas a maior parte achou que, já que não havia outro remédio para a fome que tinham, tinha de ser. O Zé Pedro refilou:
“Estamos feitos”, e mandou as latas por abrir para longe.
Eu fiz como ele mas com as latas já vazias, aconselhando que era melhor para as formigas não nos chatearem toda a noite. Depois de terem vindo os mesmos a recolher as malgas vazias, o pessoal começou a ajeitar os leitos, uns faziam dos pés martelo-pilão para alisar a terra, outros colhiam erva para fazer travesseiros, procuravam comodidades. Acabaram por se deitar naquilo, que o corpo estava cansado e pedia descanso. Ninguém esteve para conversas. Só o soldado Pauleta é que gritou:
Eu fiz como ele mas com as latas já vazias, aconselhando que era melhor para as formigas não nos chatearem toda a noite. Depois de terem vindo os mesmos a recolher as malgas vazias, o pessoal começou a ajeitar os leitos, uns faziam dos pés martelo-pilão para alisar a terra, outros colhiam erva para fazer travesseiros, procuravam comodidades. Acabaram por se deitar naquilo, que o corpo estava cansado e pedia descanso. Ninguém esteve para conversas. Só o soldado Pauleta é que gritou:
“ Ó Fonseca, não te peides senão ainda foge tudo pensando que é um ataque.”
“Tinha que ser este gajo”, disse eu, “está calado pá e põe-te mas é a dormir.”
O que me valeu é que esta merda para mim já não era tão novidade assim. Dormi várias noites como agora quando fiz parte do pelotão do inimigo durante a semana de campo na serra do Montejunto, no final do COM em Mafra. Só numa noite estive melhor, foi quando a Teresa Tarouca nos deixou dormir num palheiro da sua quinta. Simpática, ah fadista. De resto foi em chãos como este. Mas aquela foi uma guerra gira, esta não ia ser de certeza. Andávamos de camuflado, éramos os únicos, e as populações, quando descíamos às aldeias, recebiam-nos de braços abertos, coitadinhos vão para a guerra, e davam-nos comida e levavam-nos para as adegas. Muito porreiro. Quando havia jogos lá íamos nós à tasca que tinha televisão e lançávamos very-lights quando Portugal ganhava, foi um delírio com aqueles golos do Eusébio à Coreia. Grande bebedeira apanhámos. Até era uma festa para nós. Só aquele palerma do capitão Casimiro é que ia estragando tudo quando nos apanhou um dia a comer numa adega e disse que estávamos presos. Bem protestámos, que à hora de almoço não podia haver guerra, mas ele não quis saber. Houve porrada com os dele, claro, e tiro de bala simulada, e ele, ridículo, a atirar tiros de pistola para o ar e a dizer ao zé-povinho do sítio vejam lá como são valentes os soldados portugueses. Palerma. Também o lixámos. Ainda me dá vontade de rir, na noite seguinte fomos ao acampamento deles e cortámos as espias das tendas. Grande gozo. Não gostei lá muito foi da última noite quando nos cercaram, estávamos nós a dormir nos regos de um campo de milho, deixei lá o sabre quando fugi, e o comandante da Escola Prática deu-me nove dias de detenção. Mas até foi um gajo porreiro, pois disse que não me dava dez senão eu passava a sargento. Por causa do filho da puta do tenente Galveias, que me apanhou no S. Jorge à civil e fez queixa de mim, já me tinha dado dez antes. Nunca gostei daquele sacana, mau para os nossos cadetes.
E os cabrões dos mosquitos que não me largavam, estava farto, eram aos montes. No Montejunto não havia. Que coisa do caraças… não ia poder dormir com certeza.
E assim foi. A noite foi muito agitada. Já não era só o chão duro que não deixava dormir, era a mosquitada que se banqueteava nas peles finas com o sangue fresco que provocava o desconforto daqueles corpos, com palmadas repetidas, virando-se e revirando-se. Mas chegaram as cinco da manhã, o sol também parecia estar a chegar, quando o Braga apareceu a bater palmas e a gritar:
“Toca a levantar que temos de ir embora, ó nossos alferes ponham o pessoal a mexer.”
Estremunhados, desgrenhados e com as fardas descompostas, foram-se levantando aos poucos, devagar, uns foram mijar longe, alguns cagar, mas outros mijaram mesmo na cama improvisada.
“Vamos lá, toca a andar que as GMC estão ali à espera”, insistia o capitão.
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