Do livro "De Campo em Campo, Conversas com o Comandante Bobo Keita", de Norberto Tavares de Carvalho:
Capítulo 2. A base do 'Gazela' é flagelada por bombardeiros do exército português
Fiquei ali até 1969. Ainda em 1968 fomos fazer uma operação na zona de Cantacunda. Naquela operação fui juntamente com o Braima Bangura(18), comandante de destacamento. Apanhámos naquele dia onze Tugas. Foram todos evacuados para Conacri. [ Foi o ataque feito ao destacamento de Cantacunda da CART1690, na noite de 10/11 de Abril de 1968. Ver aqui ] Da segunda vez que fomos à mesma zona, apanhei um tiro, um estilhaço de morteiro, aqui debaixo do ventre, que saiu pelas nádegas, mas mesmo assim consegui andar nove quilómetros a pé, a perder sangue, naquela noite. Não podia dizer aos camaradas que tinha sido ferido para não os desanimar.
Aconteceu quando o camarada que estava à minha frente com uma bazooka nos ombros, caiu numa mina e eu fui atingido pe los estilhaços da mina. O camarada perdeu um pé e aquilo doía-lhe muito. Pediu-me que lhe desse um tiro para poupar o seu sofrimento.
Eu estava armado com a minha faca militar. Disse-lhe que não, que ele não podia morrer ali. Peguei no meu punhal cortei-lhe o pé ferido que enterrei na mata. Cortei a palha duma bananeira, lavei-a com a água do cantil e com uma ligadura improvisada bandei-Ihe o pé. Fiz-lhe dois torniquettes na perna para parar a hemorragia. Pusemo-lo numa maca e levámo-lo para lugar seguro. Foi aí que um camarada percebeu que eu também sangrava. Fez-me ver que havia sangue no meu camuflado. Eu disse-lhe que era sangue do camarada ferido e que eu não tinha sofrido nada.
Só quando chegámos à base, e depois do médico ter dado os primeiros socorros ao camarada ferido, é que resolvi ir ter com ele. Disse-lhe então que estava ferido. Despi as calças e mostrei-lhe o lugar do impacto do estilhaço. O médico não acreditou. Era um cubano. Depois de me observar concluíu que eu tinha apanhado um tiro na bexiga. Eu disse-lhe que queria ter a certeza de que era de facto isso que me tinha acontecido, pois a dor que eu sentia não indicava um ferimento assim tão grave. Aquilo aconteceu no dia 9 de Junho de 1968. Foi a segunda vez que os Tugas acertaram em mim.
Fui fazer chichi e não senti nenhuma dor ou qualquer outra reacção que me impedisse de deslocar. O cubano fez-me um tratamento local e fiquei mais calmo. Afinal não era assim tão grave, disse para com os meus botões...
Naquela manhã preparámo-nos para evacuar todos os feridos para a fronteira através do rio Farim. O Gazela e o Hilário estavam no lado do N'Djobel (Sinchã Jobel) Fui até lá para os avisar de que deviam abandonar o local sobretudo porque, a meu ver, não tinham tomado as devidas precauções. Para se deslocarem abriam caminhos como se fossem estradas para carros. Vendo aquilo, pensei logo que poderia haver perigo em caso de ataque do inimigo.
Mais a mais que, o batedor, que fazia o reconhecimento do grupo, regressava sempre e dizia que tudo estava normal. Reuni-me com eles e disse-lhes que deviam abandonar o local. O Gazela, que era um dos chefes militares presentes na região, tentou convencer-me de que não havia perigo nenhum naquela zona. Por volta das quatro horas da manhã, depois de ver que não conseguia convencê-los, saí com os meus homens e arrancámos.
A meio caminho andado, perto de Inchalé, ouvimos o ruído de aviões. Eram aviões de caça, bombardeiros. Disse aos meus homens: «Dirigem-se para a base do Gazela!» Dito e feito, os jactos atravessaram os ares e as bombas caíram sobre os nossos camaradas. A primeira vítima foi o Comissário político, o Hilário.
O Hilário morreu logo aí. Enviei quatro camaradas para irem ver o que tinha acontecido na base. De regresso, disseram-me que tinha sido um ataque relâmpago dos portugueses, que haviam bombardeado a zona com aviões fazendo mortos e feridos. Resolvi mandar buscá-los para que se juntassem a nós, que também contávamos feridos que deviam seguir para a fronteira...
[ Quando estive em Sinchã Jobel em 2006 - conto aqui essa visita - , vi isto
[ Quando estive em Sinchã Jobel em 2006 - conto aqui essa visita - , vi isto
...e isto]
Fizemos uma só caravana, os que tinham sofrido os bombardeamentos e nós. Eu tinha uma bengala na mão e deslocava-me com cuidado, visto a minha ferida. Chegámos ao rio Farim, verificámos se não havia nenhum barco nas redondezas. Às vezes os barcos portugueses rebocavam botes e as tropas que iam nos botes escondiam-se debaixo da sombra dos tarrafes e os barcos afastavam-se. Se não se prestar atenção, mal se apercebe de um movimento de homens e os Tugas escondidos nos tarrafes, saem do escondirijo e começam a fazer fogo sobre a malta.
(18) O Braima Bangura foi executado após a independência, acusado da suposta tentativa de golpe de estado alegadamente dirigida pelo Coronel Paulo Correia, conhecido como "O caso 1 7 de Outubro".
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