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4 de fevereiro de 2012

379-História da Guiné


HISTÓRIA DA GUINÉ.
PORTUGUESES E AFRICANOS NA SENEGÂMBIA (1841-1936)
de René Pélissier

Imprensa Universitária n.º 75, Edito­rial Estampa, 2 volumes, Lisboa, 1989.
Tradução: Franco Sousa.
Tttulo original: Naissance de la Guiné. Portugais et Africains en Senégambie (1841-1936).

Daniel A. PEREIRA

Com prefácio de Léopold Sédar Senghor, a leitura na horizontal desta obra em 2 volumes de René Pélissier não me cativou de forma muito particular. Apesar de uma grande expectativa criada em mim desde o anúncio da publicação da versão portuguesa em 1989 e que foi financia­da pelo Programa Nacional de Edições Comemorativas dos Descobri­mentos Portugueses.
Desde logo. uma primeira contrariedade de que o autor não é certa­mente culpado: o título português traiu, em meu entender, o original e não corresponde, ainda a meu ver, ao conteúdo. Aliás, diga-se de passagem que o título original francês também não corresponde cabalmente à temática desenvolvida e talvez fosse mais consequente se referenciasse expressamente o sucedâneo de conflitos que pontuou, ao longo dos séculos, o processo da colonização da Guiné, dita portuguesa. Ademais, até o título parece inspirar-se na obra de António Carreira «Os Portugue­ses nos Rios de Guiné (1500-1900)», Lisboa, 1984.
Em segundo lugar, o trabalho de Pélissier padece de uma excessiva compartimentação esquemática quando, na maioria dos casos, tal opção a não justificava pela absoluta insuficiência de desenvotvimento dos  subtítulos apresentados. Se a intenção era tomar a leitura mais agradável e atractiva, o grande prejudicado acabou por ser o conjunto de os resultados obtidos não satisfizeram um dos objectivos preconizados pelo autor, que consistia «em tentar preencher um vazio no conhecimento da África Ocidental pelos francófonos»  (Vol. I, p. 24). Se tal pode não ter sucedido em relação aos leitores francófonos, mormente terá conseguido «trazer aos Portugueses, aos cidadãos destas três nações lusófonas (pelo menos no que concerne à Guiné-Bissau) e, eventualmente, a alguns leitores periféricos,  elementos para que compreendam de onde vêm ...» (Vol.I, p. 26). Iria mais longe e diria até que terá sido a pressa em ocupar este espaço que contribuiu para desvirtuar esse fim de grande mérito, se fosse efectivamente atingido.
Seja como for, a obra enveredou por um caminho que hoje quase não se usa na historiografia contemporânea: a petite histoire, com manifes­to prejuízo para a intelegibilidade do todo, além de cair em algumas contradições e incompreensões, de que o autor não se dá conta, panicu­lannente no que toca a certos maus entendidos no que se refere ao relacionamento histórico caboverdiano-guineense, que abordaremos com algum pormenor mais adiante.
Com efeito, num espaço de tempo de praticamente um sécuto (1841-1936), penado relativamente longo, não discernimos os grandes mo­mentos da história desta zona geográfica, eleita por Pélissier como campo da sua actividade pesquisadora, pese embora a realidade de se tratar de um mosaico ou de um puzzle cujas peças são de difícil colocação. Sem embargo, as grandes oscilações económicas não aparecem e as movimen­tações sociais não surgem. Quedou-se pela história politica e, mesmo essa, restringiu-a às lutas intestinas inter-tribais ou às reacções, por parte da diversa população, às tentativas, esporádicas ou não, de ocupação levadas a cabo pelos portugueses ou seus agentes. E se Pélissier tivesse analisado mais detidamente todo o período anterior, a partir dos meados do século XV, ter-se-ia dado conta, facilmente, que a soberania portugue­sa nos «Rios de Guiné» sempre foi um mito, porque periclitante e instável, dependendo essencialmente do jogo de interesses económicos em presença, no qual os autóctones detinham a supremacia e ditavam as regras. Assim, o período compreendido entre 1841 e 1936 não constitui copiosos extractos dos arquivos publicados entre 1899 e 1913 nos Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné pelo pertinaz oficial de marinha caboverdiano Christiano José de Senna Barcelos, e utiliza igualmente uma compilação de documentos do AHU já publicada. No entanto, não nada que substitua a pesquisa directa no AHU. Muita informação importante sobre as relações comerciais e as ligações familiares dos portugueses e particularmente dos luso-africanos com grupos africanos pode ser extraída das petições, testamentos, declarações e listas de habitantes das comunidades comerciais. Estes e outros documentos teriam contribuído significativamente para uma compreensão das causas dos conflitos e das suas soluções, muitas das quais Pélissier reconhece serem inexplicáveis a partir das fontes por ele consultadas.
Infelizmente Pélissier não fez pesquisa na Guiné. Nos últimos anos o pessoal do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa tem recolhido documentos coloniais de todas as regiões do país. Os arquivos paroquiais contêm informação sobre nascimentos, mortes e casamentos, do mesmo modo que as inscrições tumulares dos cemitérios.
De grande utilidade potencial para a investigação do período que Pélissier abrange no seu estudo é o crescente corpo de tradições orais re­colhidas pelos historiadores guineenses desde a independência. Esta pesquisa está agora a ser publicada, nomeadamente na revista Soronda, fundada pelo lNEP em 1986.
O livro de Pélissier estimulará novas contribuições e promoverá a pesquisa de terreno ao longo de linhas de investigação novas ou inade­quadamente exploradas. Seguramente muita mais informação sobre a perspectiva dos africanos pode ser recolhida junto dos filhos e netos daqueles que participaram nas últimas campanhas militares que Pélissier descreve.
Os materiais auxiliares do livro são assinaláveis. Existem seis mapas bem concebidos, e Pélissier vê-se aflito para explicar na sua nota introdutória que, apesar dos seus esforços, a localização de alguns lugares é problemática. Numerosos quadros organizam os dados disponíveis. Existe um útil glossário de 4 páginas, e a lista de fontes publicadas e documentos de arquivos (24 páginas) contém breves anotações. Também o indíce (18 pp.) se encontra elaborado com profissionalismo, incluindo símbolos-chave que fomecem informações sobre indivíduos. Para os estudiosos da Guiné-Bissau e das áreas vizinhas, Naissance de la Guinée constitui uma obra de referência indispensável para os investigadores especializados noutras áreas de África que possam eventualmente ficar desmobilizados pelo tamanho do livro de Pélissier.
Finalmente, debrucemo-nos sobre certas contradições, incompreen­sões e maus entendidos àcerca do relacionamento histórico caboverdia­no-guineense a que, no meu entendimento, o autor não soube ou não quis dar o devido tratamento.
Antes de mais, a utilização da terminologia «colónia» ou «coloniza­ção» (Vol. I, pp. 41 e seguintes), com tudo o que isso implica «no plano da gestão administrativa, das prioridades nos investimentos, do próprio povoamento ... », ocupação efectiva, etc., antes de se operar a partilha colonial ém 1886, é conceptualmente incorrecta. Quanto muito, poder­-se-ía falar de feitorias (Bissau, Cacheu, etc., etc.). Mas isso não é relevante para as minhas apreciações. Portante adiante.
Em primeito lugar, «a sufocante hegemonia de Cabo Verde sobre os seus confett! guineenses ... " (Vol. I, p. 104), que Pélissier pretende provar, ao longo de largas páginas da sua obra, ao ponto de falar da «colónia de uma colónia» (Vol. I, p. 41), não me parece corresponder inteiramente à verdade dos factos. Na realidade, se bem que houvesse desde sempre relações de dependência institucionais das autoridades de Cacheu face ao governador e capitão-geral de Cabo Verde, diz Carreira que tal situação não tinha efeitos práticos, tanto mais que «eram os próprios Regimentos que contrariavam a subordinação. Desde o ano de 1615 até 1664 (e outros), todos estabeleciam sucessivamente: "porém o dito governador vos não poderá, nem suspender de nenhum dos cargos de que vos encarrego". Proclamava-se a subordinação, e ao mesmo tempo concedia-se um princípio de independência ou não sujeição (Documentos para a História das Ilhas de Cabo Verde e "Rios de Guiné" (Séculos XVII e XVIll, p. 15).
Por outro lado, as condições de permanência dos portugueses (leia-se cabo-verdíanos) eram determinadas em função do pagamento de tributos aos «reis» locais e, no dizer de A. Carreira, «quem paga tributo não é soberano, é dependente» (idem, p. 28).
Além disso, Pélissier pretende assacar responsabilidades a Cabo Verde, às autoridades cabo-verdianas e aos maiorais do arquipélago pelo estado das coisas na Guiné, face à sua dependência administrativa, política e militar.
No entanto, é ele mesmo quem se contradiz quando afirma que «em treze anos. a metrópole e os seus militares demonstraram que, com efectivos duplos, quase mesmo triplos, em relação a 1878, (data a partir da qual se consuma a autonomia da Guiné relativamente a Cabo Verde) eram tão impotentes quanto Cabo Verde em se tornarem senhores da Guiné». Mais adiante: «neste ponto, não há, portanto, grande coisa de diferente em relação ao período "cabo-verdiano" tão criticado» (Vol. I, p.277).
lndependentemente disso, René Pélissier parece não considerar as razões históricas que estão no cerne do facto de as ilhas de Cabo Verde se terem tornado na cabeça da administração dos «rios de Guiné».
Efectivamente, a resistência demonstrada por parte dos africanos do continente desde os primórdios, levou a que o tipo de relações estabelecidas tivesse por base, ao longo do tempo, uma certa desconfiança e muita insegurança dos mercadores portugueses, sediados em algumas poucas localidades da costa ou fluviais, o que mostra o grau de instabilidade em que viviam e a precariedade da sua permanência.
Tal situação levou a que se privilegiasse a ocupação das ilhas donde, com certa dose de segurança para as populações brancas ou mestiças, se pudesse «administrar» económica, política e militarmente determinadas zonas do continente. Foi a estratégia montada para tentar controlar a actividade mercantil dessas mesmas zonas, procurando, simultaneamente, subtraí-Ias à concorrência de outras potências marítimas europeias, com o mfnimo de gastos económico-fínanceíros e pequeno dispêndio dio humano que uma colocação permanente no terreno contrariava, face às constantes investidas das populações autóctones.
Não esquecer, também, que uma das características fundamentais do relacionamento de Portugal com as suas possessões foi o abandono e o ostracismo a que as votou, o que se explica, em parte, pela fraqueza económica e militar portuguesa e a inexistência de uma marinha suficientemente forte para defender os seus interesses. Como dizia Oliveira Martins, «sem marinha, não colónias».
Também não é negligenciável o factor humano, ou seja, o tipo de pessoas que eram enviadas, tanto para a Guiné como para Cabo Verde. Como dirá Pélissier, «nunca se insistiria demasiado quanto ao papel nefasto destes militares recrutados entre os "malfeitores de Portugal e soldados incorregíveis, vadios e ratoneíros da ilha de S. Thiago" porque, por um lado, dão às populações que os rodeiam uma imagem desvalorizada de Portugal e, por outro, dão confirmação, aos governantes de Cabo Verde e da metrópole, à sua convicção de que, decididamente, esta terra de deportação está reservada à escória do Exército e de que só a título excepcional deve acolher soldados europeus normais» (Vol. I, p. 56).
O mesmo ou pior acontecia igualmente em Cabo Verde. A análise lúcida e implacável do governador Joaquim Pereira Marinho, por volta de 1838, não nos pode levar a outra conclusão senão essa. Vejamos: «Cabo Verde tem hoje quarenta e cinco, ou cinquenta e cinco oficiais militares de todos os graus ou espécies. ( ... ) Em geral, esses oficiais, com mui poucas excepções, não são de facto oficiais militares, são dezenas de tratantes, ineptos, intriguistas, bêbados, debochados, rechincheiros, tira­dos de Lisboa de oficiais e aprendizes de sapateiro. alfaiates. que por desmoralizados e, ineptos, não puderam aprender os ofícios a que os seus pais os destinaram. Outros são tirados desta classe de rapazes de Lisboa, e mesmo províncias, que as famílias não podem sofrer pelo seu deboche, e desmoralização, e por não puderem servir para coisa alguma. Em cinco mos de experiência contínua que tive, vi que não eram mais que súcias de tratantes que todas as noites se constituíam réus de polícia, que davam sempre ao Governo muito incómodo, e muita desonra. Nenhum Governo do mundo é capaz de sofrer tal canalha, também não no mundo Governo algum, que seja tão mau, que seja capaz de gastar somas imensas que o Governo Português gasta inutilmente, e para escandaloso e para desonra com tal gente.» (Memória sobre Cabo Verde do governador Joaquim Pereira Marinho. A.H.U .Sala 12. Cx. SS (1831-1838) - Inédíto).
Por tudo o que explanámos se deduz, naturalmente, que Cabo Verde era uma peça da engrenagem do sistema, esse sim, responsável pelos males que sofreram tanto um como outro território, males extensivos a Angola, Moçambique, etc.
Seja como for, ninguém pode negar que, historicamente falando, mal ou bem. a actual Guiné-Bissau, tal qual ela existe, dificilmente seria o que é se não fosse a acção, a persistência e o sacrifício de muitos cabo­-verdíanos anónimos que, no decurso de muitos séculos, se ligaram indelevelmente a este território. Mutis mutandis, o mesmo se aplica a Cabo Verde. E talvez fosse mais próprio falar-se em interdependência e complementaridade, quando se se refere a estas duas entidades tão intimamente ligadas por fortes laços histórico-culturais, do que procurar ver a dependência de um em benefício de outro.
Por fim e muito rapidamente para terminar, podemos dizer que a obra que nos foi dado ensejo de recensear, apesar dos seus aspectos positivos e das suas incursões em terreno tão árido quão difícil, não dispensa, de modo algum, os clássicos como Teixeira da Mota, António Carreira, Fausto Duarte, João Barreto, Cristiano José de Sena Barcelos, entre outros. Tem, por outro lado. uma grande virtude, na medida em que sistematizou um conjunto de informações sobre este período conturbado da Guiné. informações essas que, por esparsas, teriam o seu acesso muito mais dificultado. Nesse aspecto, o esforço do autor valeu bem a pena. Além disso, abre novas pistas de investigação que devem ser aproveita­das pelos potenciais interessados na matéria, particularmente os historia­dores do jovem Estado da Guiné-Bissau. Exige. simultaneamente, um maior aprofundamento do lema em si, alargando a área de actuação, tentando perceber o todo no conjunto social, económico, cultural...


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