O capitão Alves chamou os alferes para uma reunião. Eu, o Rodolfo e o Salvado, que regressara de Binta.
- O nosso general mandou vir o pelotão de Binta e ainda bem. Foi bom porque, assim, estamos mais à vontade. Quando tínhamos só dois, podia apenas sair um, o outro tinha de ficar na segurança aqui. Agora ficamos mais à vontade para coordenar a nossa acção.
Tive de apoiar.
- Viva o nosso general!
- Tá bem, ó Aiveca. Mas temos também de ver a ordem que ele nos deu de organizar os pelotões por etnias. A maior parte são balantas e fulas. Depois há também uns manjacos, papéis, e outros. Vou dizer ao primeiro-sargento para formar um pelotão com os balantas, outro com os fulas e um terceiro com as restantes etnias. Qual é que cada um de vocês quer? Ficámos calados. Apercebi-me que para os outros estavam indesisos. Mas eu já tinha optado quando o capitão voltou a falar.
- Você, Aiveca, que é o mais antigo, diga lá primeiro qual é que quer.
- Fico com os balantas.
Os outros alferes olharam-me espantados, mas o Rodolfo aproveitou-se logo.
- Então eu fico com os fulas.
Eu não, gostava mais dos balantas. Eram pão pão, queijo queijo. Se gostavam gostavam, se não gostavam mostravam bem que não gostavam. Os fulas, está bem, estavam abertamente do nosso lado, mas as suas falinhas mansas e de submissão deixavam-me muitas interrogações sobre o que estaria no interior. Desconfianças minhas, talvez, mas era facto que gostava mais da natural frontalidade dos balantas. No pelotão anterior tinha uns e outros e ficara com essa sensação.
O Rodolfo ainda falava.
- O Bletche Intéte vai agora para o teu pelotão. Ele era o meu guarda-costas e pode também ser o teu.
- Não, não quero esse gajo como meu guarda-costas.
- Então, porquê? Ele até é muito porreiro…
- Porreiro o caraças. Outro dia à noite fui dar uma volta pelos postos das sentinelas e encontrei vazio o lugar onde ele devia estar.
O capitão olhou-me reprovadoramente.
- Então e você não disse nada, não participou?
- Não, meu capitão, mas resolvi o problema.
- Resolveu? Mas como? Tinha de haver uma participação dessa situação.
- Disseram-me onde ele devia estar e fui ter com ele. Estava na tabanca com uma gaja.
- Porra, pá. Não pode ser. Tinha de levar uma porrada.
- Já levou.
Olharam-me todos interrogativamente.
- Agarrei nele e perguntei-lhe se preferia um murro nos cornos ou uma participação. Ficou enrascado mas disse-me que preferia o murro. Dei-lhe um murro no focinho e ele foi logo a correr para o posto.
Os alferes partiram-se a rir. Mas o capitão não.
- Isso não pode ser assim, nosso alferes. Depois quero falar consigo sobre isso.
Era treta. Eu já o conhecia, e ele também a mim. Sabia que eu tinha as minhas regras próprias e resolvia os problemas à minha maneira, e resolvia mesmo. Aquilo era para inglês ouvir. Continuei calmamente.
- Já agora, meu capitão, o meu guarda-costas é o cabo Otcha e eu queria que ele viesse para o meu novo pelotão.
Vi que estava a ser demais para ele. Desbragou.
- Foda-se, Aiveca. Você quer-me arranjar um problema? O homem é fula e acha que quer ir para um pelotão de balantas? E acha que os balantas vão aceitar bem um fula entre eles?
Vi que os meus camaradas concordavam silenciosamente, também espantados com a minha proposta.
- Ele é um homem sério e muito certinho, um bom operacional. Além disso eu tenho plena confiança nele e sei que ele confia em mim. Tem-me sido muito útil.
Contraditório com o meu pensamento anterior sobre fulas e balantas. Mas aquilo tinha sido só para mim e eles, portanto, não me confrontaram com isso. De qualquer modo, nunca pensei em generalizar. Sabia que não era tudo e todos assim. O Otcha não entrava ali. De seu nome étnico Amadu Djaló, era conhecido desde pequenino por Otcha porque a mãe, ele contou-me, teve muito receio que ele não nascesse ou nascesse morto e, quando ele nasceu bem e sãozinho, deu-lhe o nome de “Otcha”, que quer dizer em fula “surgiu”, “vingou”. Era o nome por que era mais conhecido.
Depois da explicação da minha pretensão, o Alves, que até era um tipo cordato, e sobretudo porque, sempre enfiado no arame farpado, sabia que tinha de ter as boas graças dos alferes que andavam no duro a garantir a missão operacional da companhia, não zurziu mais argumentos, mas pôs condições.
- Então, está visto, o Salvado fica com os outros. Vou dar ordens ao primeiro-sargento para elaborar rapidamente a lista dos pelotões com os novos nomes, mando-o formar a companhia assim que estiverem prontas e vocês e os vossos furriéis a seguir tomam logo conta deles. Quando estiverem todos formados, eu vou perguntar ao Otcha se quer ir para o pelotão dos balantas e você, Aiveca, pergunta aos balantas se querem lá o Otcha.
Dissemos ao capitão está bem, sim senhor, e fomos beber umas cervejas.
Bebemos algumas, até vir o cabo escriturário a dizer-nos que a companhia estava já em formatura.
Cada um de nós e seus furriéis à frente do respectivo pelotão, o capitão à frente de todos.
- Esta é a nova composição dos pelotões por ordem do nosso general…
“Então o Caco veio aqui só para fazer isto?” Era o furriel Sousa que rosnava. Virei a cara para ele. “Tá calado, pá”.
- …mas vocês já se conhecem, portanto não há problema nenhum.
Virou-se para o pelotão dos fulas.
- Há aqui um ajustamento que o alferes Aiveca pediu. Otcha, queres ir para o novo pelotão dele?
O Otcha hesitou uns segundos mas acabou por falar.
- Se o nosso alferes Aiveca quer eu vou.
- Então sai e vai.
Saiu e veio para o pé de mim. Virei-me para trás.
- O Otcha vem para o nosso pelotão. Tá bem?
Riram-se e alguns fizeram que sim com a cabeça. Empurrei-o para o pelotão. Os que o conheciam do anterior deram-lhe palmadas nas costas.
Os outros destroçaram, mas disse aos meus para ficarem. Já tinha magicado umas coisas. Havia um ou outro mais maduro mas a maioria era muito jovem, tinha que lhes incutir motivação.
- Eu quero que vocês sejam o melhor pelotão da companhia. Que todos vos admirem e respeitem. Vou mandar fazer uma boina camuflada e um lenço preto para cada um. Será o vosso distintivo.
Deu resultado, eu já sabia. Ficaram contentes e cochicharam entre eles manga de ronco (porreiro, bonito). Os furriéis olharam para mim. Sabiam que teria de explicar ao capitão Alves esta alteração ao fardamento da ordem. Mas não interessava, logo se veria.
Estavam satisfeitos e avancei com outra.
- Além disso o nosso grupo de combate tem de ter um nome para que todos nos conheçam bem, mesmo os turras no mato quando nós aparecermos. Quem dá uma ideia?
Fiquei a olhá-los por momentos.
- Jagudis (abutres).
Era o Falcão, um dos mais maduros, já era o apontador de metralhadora do meu pelotão anterior. Andava sempre de botas de borracha, mas nunca o chateei por isso. Era um tipo duro e implacável, não me admirei que avançasse com este nome. Pessoalmente até o achei interessante e adequado, sobretudo à caça que fazíamos aos carregadores do PAIGC que entravam vindos do Senegal. Falaram entre eles e vi sinais de assentimento.
- Ficamos com este nome, é?
Ficámos. Assim nasceram os Jagudis.
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