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28 de fevereiro de 2011

72-Choro, ataque, a mulher do capitão e o Quecuta zangado


   Aquela barulheira estava a dar cabo de mim. Bombolons, danças e gritos associados eram demais para os meus tímpanos frágeis. Manga[1] de grogu[2] e bit-bit[3] possuíam aquelas gajas e os panelões de bianda[4] e carne davam-lhes força para aquelas danças loucas, para o flutuar dos braços e o agitar frenético das pernas, para o balanço ritmado das mamas. Disso estava a gostar, e era o que me mantinha ali no meio daquela chinfrineira de altos decibéis. Conventuário forçado pelo deus das armas, aquelas pernas e coxas e aqueles seios fugidios eram o meu horizonte do desejo de mulheres belas. Era um choro[5] dos balantas da tabanca[6].
Eles e mandingas eram os seus habitantes, sendo o chefe da tabanca um mandinga, o Quecuta Seidi. Não havia grandes problemas entre eles como houvera antes da guerra, quando havia régulo que era um balanta mané[7], mas os mandingas maioritários não gostavam. Agora só havia chefe de tabanca.
A mulher do capitão tinha chegado numa DO para estar uns dias com ele.
- “Tínhamo-nos casado há pouco tempo quando eu fui destacado. Quis vir da Metrópole porque estava com saudades…e eu também, é claro”, confidenciou-me a sorrir.
Entendi-o. A D. Eugénia, era assim que começámos a tratá-la, respeitosamente, embora nos perturbasse os olhares, ela era morena e tinha uns olhos parecidos com a minha florista, e eu também sentia saudades da Júlia. Procurava às vezes a ajuda do Bailo, e do Quecuta também, para matá-las, mas não era a mesma coisa evidentemente. Ia suprindo.
- “É um bocado perigoso. Isto não é um local para ela”, observei-lhe.
- “É pá, mas há quanto tempo é que não há um ataque?”.
- “Sim, é verdade. Mas não sei, não somos nós que decidimos quando há...”
Nesse dia não houver saídas para o mato. O Alves falou à mulher que havia um choro. Intrigou-se com o nome mas ele explicou-lhe o que era e ela mostrou-se interessada em ver. E fomos desafiados para os acompanhar.
- “Mas é só para ver, não é? É que eu não me meto no meto no meio dessa confusão”, avisei logo.
Quando já lá estávamos, a certa altura houve um palerma qualquer de gorro
vermelho[8] que me veio desafiar para entrar. O gajo sabia que eu era o alferes dos
balantas, claro…


Tive de lhe dar uma desculpa.
-  “Yantey, bi tuli ma agulu[9].
- “Bii ta  oom[10], e riu-se.
- “Vai à merda, pá”. Olhei atrapalhado para a D. Eugénia.
- “Desculpe, D. Eugénia.”
- “Não dei por nada. Sou casada com um militar, era bonito se eu fosse ligar a tudo o
que vocês dizem… mas ouvi-o falar com aquele homem. O senhor alferes Aiveca… é
Aiveca que se chama, não é? Nome estranho”.
Fazia um esforço para a ouvir. Detestava diálogos no meio de barulhos, parte do que
me diziam muitas vezes não conseguia entender e para responder tinha de falar alto,
era o raio dos ouvidos. Além do mais estava mais interessado no alvo dos olhares
gulosos do Salvado, eram as  mamas e aos cus das bailarinas, e isso não era preciso

ouvir, além de não estar a ver porque é que me vinha com esta coisa no meio daquilo.
Mas dei conversa.
- “Conhece o Alentejo?”, gritei-lhe.
- “Não, nunca lá estive.”
- “Devia ir lá, terra bonita e boa gente. Aiveca é o nome dado a um arado especial
atrelado aos tractores. Não me pergunte coisas técnicas sobre ele que eu não sei. Por
isso, lá na terra, no Penedo Gordo, o meu pai Eduardo, que era tractorista, era o
Eduardo Aiveca. E a mim, ao filho António, todos me chamavam o António Aiveca.”
Os bombolons[11] aceleravam e os gritos delas subiam.
- “Ah…”, e disse mais qualquer coisa.
- “O quê!?”.
Aproximou-se mais de mim.
- “Mas este é o seu nome verdadeiro?”.
- “O verdadeiro é Lopes, é o que consta nos papéis. Mas é muito corriqueiro, e eu
gosto mais de Aiveca…”.
Vi que ia dizer mais qualquer coisa e pus-me atento.
- “Vejo que você fala a língua deles”.
- “Não, não falo, minha senhora. Gostava mas não, é muito complicado. O  que sucede
é que procura apanhar-lhes algumas coisas dá para os entender melhor. Nem
sempre…”.
O Roberto deu-me um encontrão.
- “É pá, há gajos teus ali no meio!”.
Estavam.
- “Admirava-me é se não estivessem.”
O Bletche, o Benhanté e o Nfanda bamboleavam-se da garrafa na mão. Era cana de
certeza. Não lhes dava muito tempo para ficarem esticados no chão.
- “Vai ser bonito, vou ficar feito num oito. É o meu pelotão que vai estar de guarda esta
noite.”
O capitão olhou-me alarmado.
- “Ó Aiveca, então é preciso ter muito cuidado. Você tem de estar em cima deles.”
- “Pois é isso que eu sei. Não vou para o mato mas não vou dormir na mesma. Só vi
aqueles ali, mas é mais que certo que devem andar por lá outros. Vou ter que andar a
ver se os gajos não dormem nos postos.” Não os devia ter deixado ir ao choro. Mas
não me lembrara quando  sou informado do choro que eles que estavam de serviço.
Além disso, pensei melhor, não terá sido bom impedi-los, fazer  isso era pior do que
lhes cortar uma orelha.
Ficámos mais algum tempo a ver o espectáculo, a D. Eugénia fazia comentários
maravilhados. Até que notámos que o sol se começava a pôr.
- “É melhor irmos embora”, disse o capitão. “Daqui a bocado vamos jantar”.
E fomos, passado tempo jantámos, depois fomos ao king na secretaria. A mulher do
Alves divertiu-se também com este prazer de homens limitados de acção. Mas o
capitão não estava, levantou-se depois de alguns jogos.
- “Eugénia, é melhor irmo-nos deitar porque amanhã tenho que me levantar cedo para
ir a Bigene a uma reunião no COP3. O seu pessoal está nos postos, Aiveca?”
- “Vou-me levantar também e dar uma volta para ver. Vou ver se está tudo  nos
conformes”.



A tabanca estava pegada ao quartel, não estava em autodefesa, portanto, não havia
milícias. Tínhamos um pelotão destacado em Camjambari, pelo que tínhamos três
pelotões para as guardas e segurança durante a noite. Com o que tínhamos
montáramos um esquema para isso: à volta da tabanca, dois postos de sentinela no
lado oeste, mais dois do lado sul virado para o Cacheu e outros dois do lado norte em
frente da mata que vinha do Senegal; à volta do quartel, eram três na paliçada note
virada para a pista, três virados para a picada a oeste que ia até ao Cacheu, e dois a sul
virados para o rio. Os postos à volta da tabanca eram uma sobrecarga, mas
achávamos melhor. Pela experiência que tínhamos, eles nunca atacavam a tabanca,
era só o quartel, no entanto havia a precaução de ter ali gente, era onde havia pontos
de infiltração.
Fui ter com o meu furrriel Fernandes, que era o sargento de dia.
- “Então, Fernandes, os homens estão nos postos?”
- “Estão, são os da minha secção mais uns da do Sousa”.
- “Vamos dar uma volta por aí, pra ver.”
Na tabanca estava tudo bem. Até me admirei que estivessem todos despertos. E não
tinham cantis com cana. 
Ai deles, sabiam já que eu não tolerava isso, tinha-os avisado.


Fomos depois ver os do quartel. 
Tínhamos entrado quando vi o Benhanté e o Nfanda a manusear a bazuca.
- “O que é que aqueles cabrões estão a fazer?”.
- "Oh, estão bonitos, estão. Estive quase para os mandar embora pois vi que estavam
pedrados, mas não o fiz porque ia baralhar a escala…"
Apressámos o passo em direcção a eles. Quando vi o Nfanda enfiar uma granada no
cu da bazuca desatei a correr. Mas já não fui a tempo.
De repente um bô! e um  clarão. Pouco depois uma explosão na mata do outro lado da
pista.
Corri para eles a gritar.
- “Seus filhos da puta! Vou-vos partir os…”.
Parei e não acabei de dizer o que lhes ia partir porque ouvi um silvo  agudo e um
rebentamento. 
Olhei e vi que tinha sido no lado direito das traseiras da secretaria, onde ficava a porta
do quarto dos alferes. Havia lá fumo e luz de fogo. Começou a seguir um fogachal 
intenso, do quartel para a mata e desta para o quartel. Mais silvos a granadas de 
morteiro a estoirar. Corri para o edifício, alarmado.
Mas o Rolando e o Salvado saíam apressados da porta da frente quando lá cheguei.
Atrás vinha o capitão só de calças e a mulher… em cuecas. Mas não liguei.
- “Olha se a gente não ficava a beber umas cervejas em vez de ir para a cama…”, disse
o Rodolfo apressado.
- “Vou foder os gajos!”, gritou o Salvado.
Enfiaram-se na valeta. Fui atrás deles. O pessoal da caserna corria por lá também para
os postos de combate. O capitão metera a mulher no abrigo da secretaria e também ia.
Foram cerca de quinze minutos, o normal em situações idênticas. Morteiros, G3,
kalashs, PPSH, degtyarevs, RPGs, bazucas… tudo à mistura. 
Toma lá, dá cá. Ora agora atiro eu, ora agora amandas tu. E, no meio disto tudo, a 
grande explosão do fornilho que o Salvado montara do outro lado da pista. Só uma 
vez nos tinham presenteado com uma coisa que não tínhamos:um canhão sem recuo 
que nem se deram ao trabalho de o tirar do Senegal. As bujardas chegavam vindas de 
lá, do lado de Sano.
A certa altura começámos a sentir que éramos só nós a disparar. O capitão saiu da
vala.
- “Cessar fogo!”, gritou. “Os gajos já se foram embora”.
Eu e o Salvado fomos para o pé dele.
- “Deixem ficar a malta ainda um bocado nos postos. Mas um de vocês vá fazer uma
batida na mata ao pé da pista”.
- “Vou eu. Quero ver o que é que deu o fornilho”, ofereceu-se o Salvado.
- “Temos alguma baixa?”, perguntou o Alves.
- “Morreu um soldado meu”, disse o Rodolfo, que entretanto se
 aproximara também. “Foi o Bacar Baldé. Levou com um estilhaço de
morteiro na cabeça. O furriel enfermeiro está lá com ele.”
Não disse nada, mas vi que ficou desolado.
-“Mal”, cara fechada. “Vou ali ao abrigo buscar a minha mulher”.
Afastou-se, vimo-lo depois chamar a D. Eugénia à boca do buraco. Ela saiu, na pose
em que entrara, em cuecas. Atrás dela saíram o 1ºsargento Mota e o escriturário
Armindo.
- “Oh! Aqueles é que estiveram ao ataque”, chasqueou o Salvado.
Não achei piada.
- “Não sejas parvo, pá. Vai mas é fazer a batida.”
Fiquei com o Rodolfo a falar da morte do Bacar. Às tantas vi que se aproximava uma
bicicleta. Era o Quecuta.
- “Corpo di bo?”[12]
- “Tá bom, nossalfero[13].”
- “O que é que há, Quecuta?”
- “Da quesa di tropa”[14].
- “O quê?!”
- “Tropa kiri mal, kiri asasina”[15].
- “Parbisa, a bo bu parbu dimas”[16].
- “Ka parbu. Tropa lansa granada bomborda morança[17] Quecuta”[18].
- “O quê?!” O Rodolfo estava de boca aberta. “É dos turras, pá, só pode ser”.
Tinha de acabar com aquilo.
- “Anos va jubi la”[19].
Fomos ver o caso da morança do Quecuta, acompanhados pelo seu pedalar de
perneta. Lá chegados mostrou-nos. Estava de facto uma granada por deflagrar
enterrada à porta de casa, só com um pouco à mostra. E era das nossas,´era verdade,
do morteiro 80. Tinha de arranjar desculpa.
- “Kil bomborda as bes disvia”[20].
- “ Mau família falsi. Balantas disgosta Quecuta. Alfero disiplina.”[21]
Só me faltava era este gajo estar a dar-me lições.
- “Deixa-te de tretas. Kin ki odja a bo meresi kastigu[22]. O turra de Limane fugiu. Kin
fusinti el? Bo mandinga, el mandinga…[23]”. Tramei-o.
- “Ka  sibi.”[24] Ficou de monco caído.
- “Vamos embora. Há-de vir o furriel sapador para tirar a granada. Ka kiskisi.[25]
Fomos.
O Salvado tinha regressado da batida, apenas vira sangue ao pé do buraco do
fornilho. Um ou mais tinham sido feridos aí, mas tinham-nos levado. 
Se calhar por isso é que o ataque só durara quinze minutos.
O capitão ainda nessa noite pediu uma DO para a mulher, obviamente com
fundamentos, e ela partiu para Bissau no dia seguinte. Com pena minha por não lhe
poder ouvir as sensações vividas, sobretudo durante o ataque.

                                                        ###########

O Quecuta Seidi, mandinga, era o chefe da tabanca de Barro quando eu lá estive.
Subira uma vez a uma palmeira e fora mordido por uma kakuba verdi[26] e tiveram de
amputar uma perna. Por isso, ele a andar de bicicleta só com uma perna, o seu meio de
deslocação, era um espectáculo. Havia suspeitas de que estava feito com o PAIGC, 
razão por que muitas vezes me sentei a falar com ele à porta da morança, para tentar
tirar-lhe alguma informação. Mas ele “tinha esperto no cabeça”[27] e nunca se
descoseu. Mas ia lá também por outra razão. É que ele tinha quatro mulheres. Três 
delas mais jovens.
- “Es noti bo durmi suma djoto. Alfero ka durmi…”.[28]
 Ria-se e, nesta matéria, era sempre condescendente.
- “Yo, otrizado. Fika. Signi.”[29]
Gostava muito desta, era mais mulher. Às vezes era a Uace, mas era mais catraia e
franzina. Mas não desgostava, claro.


Em 1998 fui à Guiné e passei por Barro. Perguntei pelo chefa da tabanca, de propósito,
para ver como estava aquilo agora. Indicaram-me a morança  do Quecuta. Assim que
me viu ficou admirado e nem me deixou falar.
- “Alfero Aiveca!”
Trinta anos depois! Não me admirei. Foram muitas conversas.
Houve as mantenhas[30] da ordem.
- “O Bailo?”, perguntei-lhe, porque também estava interessado em encontrá-lo. O Bailo
tinha sido o guia principal da CCAÇ3.
Ficou atrapalhado e baixou a cabeça.
- “Gubernu di no tera ilimina el”[31].
- “Ah! Alfero Aiveca tin roson. Gubernu ka ilimina bo. A bo kontinua chefi di
tabanca”[32].Sorriu.
Estive também na Guiné em 2006 e fui novamente a Barro. Perguntei por ele e
indicaram-me o filho. Era o Bala Sani.
- O teu pai onde está?
- O meu pai morreu o ano passado.


Fiquei com pena. Tinha ido lá de propósito para ver o homem. No fundo, eu até
gostava dele, e não era só por aquelas benesses salvadoras da solidão da carne. É
que, guerra à parte, parecia-me um homem bom e honesto. Por isso terá tomado o
partido que era o seu. Além do mais era uma das ligações da minha juventude que se
perdera
_______________
[1] Grande quantidade (crioulo)
[2] Aguardente de cana (crioulo)
[3] Vinho e palma e de caju (crioulo)
[4] Prato á base de arroz (crioulo)
[5] Cerimonia fúnebre, com batucadas, danças e comida desregrada, sempre que alguém importante morre.  
[6] Aldeia (crioulo)
[7] Balanta islamizado.
[8] Símbolo de passagem à idade madura na etnia balanta
[9] Deixa lá, não me sinto bem. (língua balanta)
[10] Não tens coragem. (língua balanta)
[11] Bombolon ou bumbulum é um instrumento de percussão, feito de um tronco grande e escavado, tocado ou batido em cerimónias fúnebres ou para transmitir alguma mensagem.
[12] Cono é que estás? (crioulo)
[13] Nosso alferes
[14] Venho-me queixar da tropa (crioulo)
[15] A tropa não gosta de mim, quer-me matar (crioulo)
[16] Parvoíce, e tu és muito parvo (crioulo)
[17] Casa ou casas de uma família (crioulo)
[18] Não sou parvo. A tropa atirou uma granada de morteiro grande para a casa do Quecuta (crioulo)
[19] Vamos lá ver (crioulo)
[20] Aquele morteiro grande às vezes muda de direcção (crioulo)
[21] É mau a minha família morrer. Os balantas não gostam do Quecuta. Alferes, castiga-os.
[22] Se calhar tu é que mereces castigo (crioulo)
[23] Quem o ajuou a fugir? Tu és mandinga e ele é mandinga… (crioulo)
[24] Não sei (crioulo)
[25] Não mexas na terra, não esgravates (crioulo)
[26] Cobra de palmeira (crioulo)
[27] Era inteligente (expressão comum na Guiné)
[28] Esta noite vais dormir a sono solto. Aqui o alferes não dome… (crioulo)
[29] Sim, estás autorizado. Fica cá. Com a Signi (crioulo)
[30] Cumprimentos (crioulo)
[31] O governo da nossa terra andou matá-lo (crioulo)
[32] O alferes Aiveca tiha razão. O governo não te mandou matar. Continuas chefe de tabanca (crioulo)
[33] Cobra de palmeira (crioulo)
[34] Era inteligente (expressão comum na Guiné)
[35] Esta noite vais dormir a sono solto. Aqui o alferes não dome… (crioulo)
[36] Sim, estás autorizado. Fica cá. Com a Nhegne (crioulo)
[37] Cumprimentos (crioulo)
[38] O governo da nossa terra andou matá-lo (crioulo)
[39] O alferes Aiveca tinha razão. O governo não te mandou matar. Continuas chefe de tabanca.

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