Vou primeiro tentar recuperar lembranças das minhas aulas de Linguística na Faculdade de Letras de Lisboa, onde não acabei o curso porque “tens de ir para a guerra, não precisamos de gajos de caneta mas sim gajos com G3”. Claro que houve outros de caneta que não foram porque eram bem comportados, e eu não era, mas isso é outra questão. Foi o que me disseram numa repartição do Exército sita na Rua do Passadiço em Lisboa quando fui pedir o adiamento, não me lembro o seu nome mas sei que era perto da antiga sede do meu Sporting. Se vou dizer asneira, os meus queridos professores da altura que me perdoem, lá no sítio onde estiverem, não sei se há, pois já morreram todos. E mais perdão ainda peço ao Saussure, que também anda há muito mais tempo não sei por onde.
A palavra, como símbolo material falado ou escrito, visa definir um objecto, um conceito ou uma ideia, por isso, quer significar algo, é um significante. Esse algo é o concreto, o definido ou o real que ela quer representar, é o seu significado. Assim, quando não se quer um determinado significado muda-se a palavra, o significante, para levar à ideia de outro objecto, em termos latos, de outro concreto ou outro real.
Neste aspecto, já antes reflectira sobre o uso de algumas palavras que o regime fez durante a guerra: “acções de policiamento contra bandidos e terroristas”, não guerra, “retidos pelo IN”, não prisioneiros de guerra. Eram manipulações para outros significados, mas é claro que os pais choravam porque o filho “ia para guerra”, angustiavam-se porque o filho “está prisioneiro” dos terroristas, ninguém lhes falou em movimentos de libertação. Sentiam o significado real daqueles significantes oportunistas.
Vem isto a propósito das expressões “desaparecido em campanha” e "desaparecido em combate”, sendo aquela a utilizada em todos os documentos das Forças Armadas. “Campanhas” de pacificação fizeram o Mouzinho de Albuquerque, em Moçambique, e o Teixeira Pinto, na Guiné. E nenhumas das “campanhas” deles tiveram 13 anos de duração. Posso, pois, ser levado a pensar que a expressão “desaparecido em campanha”, a que era levada às famílias, serviu também como tentativa de encobrir que havia uma guerra. E não entendo que se dissesse “ferido em combate” e “morte em combate” mas não “desaparecido em combate”. Os americanos, por exemplo, sempre disseram guerra do Vietnam e desaparecido em combate. Ah, eles estavam fora da terra deles mas nós estávamos na nossa... lá havia uma guerra, aqui não. Talvez seja isso.
DESAPARECIDOS EM CAMPANHA
DESAPARECIDOS EM CAMPANHA
Pessoalmente não conheço outros casos de "desaparecidos em campanha"... então, a não ser estes, mas palpita-me que não serão casos únicos. Serão as únicas situações havidas? Não creio.
Na CART1690 foram dados como "desaparecidos em campanha" o alferes FERNANDO DA COSTA FERNANDES , o soldado AGOSTINHO FRANCISCO DA CÂMARA e o soldado ANTÓNIO DOMINGOS GOMES.
Sabemos que "desaparecido" era o termo para designar, também, aqueles cujos corpos não se recuperavam, e podemos aceitar que assim fosse, dado que até podiam ter ficado no terreno, mas feridos. Mas, muito tempo depois, e acabada a guerra, os nomes destes homens deviam constar da lista dos mortos em combate na Guiné, porque assim sucedeu de facto. Mas não constam.
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in "HISTÓRIA DA UNIDADE" da CART1690 |
Sabemos que "desaparecido" era o termo para designar, também, aqueles cujos corpos não se recuperavam, e podemos aceitar que assim fosse, dado que até podiam ter ficado no terreno, mas feridos. Mas, muito tempo depois, e acabada a guerra, os nomes destes homens deviam constar da lista dos mortos em combate na Guiné, porque assim sucedeu de facto. Mas não constam.
Talvez as famílias se tenham já socorrido do novo ordenamento do Código Civil (estou a meter a mão em seara alheia, as minhas desculpas):
"artigo 7º - Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência: I - se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; II - se alguém desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra. Parágrafo único. A declaração da morte presumida nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento."
Se o fizeram, mais uma razão para que estejam oficialmente na lista dos mortos em combate.
O alferes FERNANDO DA COSTA FERNANDES morreu em Sinchã Jobel em 19 de Dezembro de 1967, durante a Operação Invisível. Diz quem fez o relatório desta operação:
"Começou também nessa altura o IN a fazer fogo com o Mort 82, com que abateu o alferes miliciano Fernandes; verifiquei que nessa altura já o Destacamento B tinha as seguintes baixas: Alferes Miliciano Fernandes, 1º Cabo Sousa, da CART 1742, e que estava a fazer fogo com a Metralhadora Ligeira MG-42, soldado Metropolitano Fragata e um soldado milícia que não consegui identificar, além de vários feridos. Procurei trazer o alferes miliciano Fernandes para a retaguarda e quando o puxava pelos pés, fui surpreendido por um grupo IN, que corriam em direcção aos furriéis milicianos Marcelo e Vaz e em minha direcção gritando que nos iriam apanhar vivos. Note-se que neste grupo IN avistei elementos brancos os quais usavam os cabelos bastante compridos (a cobrir as orelhas), facto também confirmado pelos já citados furriéis milicianos. Devido a tal tive que abandonar o corpo do alferes Miliciano Fernandes e retirar."
Mas morreu também nesta operação o soldado VITO DA SILVA GONÇALVES, que foi dado como "morto em combate" porque o corpo foi recuperado. Mas também não vem nessa lista!
Mas morreu também nesta operação o soldado VITO DA SILVA GONÇALVES, que foi dado como "morto em combate" porque o corpo foi recuperado. Mas também não vem nessa lista!
E porque é que não foi dado como "desaparecido em campanha" o soldado Metropolitano Fragata, o MANUEL FRAGATA FRANCISCOo, que também ficou nesta operação? É uma história das teias que o império tecia. Eu conto: ele foi crivado com uma roquetada nessa operação, mas vivo, e os guerrilheiros do PAIGC levaram-no numa maca, atravessando a mata do Oio, o rio Mansoa e o rio Cacheu, até ao hospital que servia o PAIGC em Ziguinchor, no Senegal, onde, coincidência, foi tratado pelo doutor Pádua, que se tinha passado para o outro lado. A PIDE sabia disso, claro. Parece lógico que se pense que teriam feito o mesmo com o alferes Fernandes se ele tivesse ficado vivo. Mas foi muito claro que estava morto.
O soldado AGOSTINHO FRANCISCO DA CÂMARA (e não Camará..., era açoreano) morreu também em Sinchã Jobel em 16 de Outubro de 1967, aquando da Operação Imparável. O mesmo relator disse assim:
"O nosso bazuqueiro (passe o termo) Soldado Agostinho Camará que estava a fazer um fogo certeiro, foi atingido mortalmente (note-se que este L.G.F. era o único que estava a fazer fogo). Foi o Soldado enfermeiro Alipio Parreira que se encontrava próximo e que estava a fazer fogo com a ML MG-42 (para a qual o referido soldado se oferecera como voluntário) pegar no LGF e continuar a fazer fogo com ele. Nesta altura tive que pegar na MG-42 e fazer fogo com ela. Logo a seguir tive que me dirigir à rectaguarda a fim de falar com o PCV que me chamava. Quando regressei à frente verifiquei o já referido soldado enfermeiro recomeçara a fazer fogo com a ML MG-42 que passado mais alguns momentos ficou impossibilitado de fazer fogo devido a uma avaria, ao mesmo tempo que o soldado enfermeiro e o municiador eram feridos por estilhaços.
"Atingido mortalmente" não quererá dizer que ficou morto? Com essa expressão a língua portuguesa não cometeu nenhuma traição. Ele morreu lá, de facto. Mas o relatório desta operação diz mais à frente:
"Ainda foram abatidos a tiro de G-3 2 elementos IN um destes pretendia agarrar o Soldado Armindo Correia Paulino".
"Atingido mortalmente" não quererá dizer que ficou morto? Com essa expressão a língua portuguesa não cometeu nenhuma traição. Ele morreu lá, de facto. Mas o relatório desta operação diz mais à frente:
"Ainda foram abatidos a tiro de G-3 2 elementos IN um destes pretendia agarrar o Soldado Armindo Correia Paulino".
E o soldado ARMINDO CORREIA PAULINO também lá ficou. Vem na História da Unidade como “retido pelo IN”, mas não foi assim, e, por isso, na lista dos prisioneiros libertados aquando da op. Mar Verde está como “não apresentado”. O que sucedeu é que, ele e o 1º Cabo Joaquim Pinto de Sousa, da CART1742, que também participou na operação, foram perseguidos até à outra margem do rio Gambiel e abatidos em Canhagina. Mas este consta na lista de Mortos da CECA como “corpo não recuperado”. O Paulino não.
No fim hei-de voltar a isto.
O soldado ANTÓNIO DOMINGOS GOMES era um guineense de Bissau, do "recrutamento da Província", portanto, e era o guarda-costas do capitão da CART 1690. Sei que morreu às 8 horas do dia 21 de Agosto de 1967 na picada de Geba para Banjara. A mina da minha vida foi a mina que o fez em bocados, espalhado pelas árvores e pela mata. Eu e o meu guarda-costas, o Lamine Turé, ficámos feridos e o capitão, que quiz ir comigo nesse dia, também ficou muito ferido. Na esperança de ainda o salvar, fui rapidamente para Bafatá, onde havia o médico do batalhão. O Domingos Gomes lá ficou espalhado nas bermas da picada, e o capitão acabou por morrer. Não há relatório da ocorrência, por razões óbvias, mas eu vi e dei testemunho disso, assim como os que me acompanhavam. O Domingos Gomes morreu. Aplicar-lhe a ele "desaparecido em campanha" parece brincadeira de muito mau gosto.
É evidente que houve desleixo ou desinteresse dos responsáveis, que não fizeram os devidos e capazes processos sobre estas situações. A CART 1742 fez e o nome do Joaquim Pinto de Sousa vem naquela lista da CECA.
PRISIONEIROS FEITOS PELO PAIGC
É evidente que houve desleixo ou desinteresse dos responsáveis, que não fizeram os devidos e capazes processos sobre estas situações. A CART 1742 fez e o nome do Joaquim Pinto de Sousa vem naquela lista da CECA.
PRISIONEIROS FEITOS PELO PAIGC
Esta é uma situação gritante. Mas há outra, que é a dos prisioneiros feitos pelo PAIGC, os tais "retidos pelo IN", e que morreram no cativeiro na Guiné-Conakry. É o caso do soldado Luís dos Santos Marques, do soldado João da Costa Sousa e do soldado Manuel José Machado da Silva.
Estes dados tirei-os de um documento que falava dos prisioneiros libertados aquando da Operação Mar Verde:
Estes dados tirei-os de um documento que falava dos prisioneiros libertados aquando da Operação Mar Verde:
- o soldado Luís dos Santos Marques, da CART 1690, aprisionado em Cantacunda em 11 de Abril de 1968, "não compareceu entre os libertados", dado como "morto no cativeiro", dizia. E está confirmado pelos seus companheiros de prisão. Segundo uns, morreu de malária; ou, segundo o major piloto-aviador António Lourenço Sousa Lobato, depois de levar uma tareia dos seus carcereiros;
- o soldado João da Costa Sousa, da CART1690, para onde fora em rendição individual a 19 de Agosto de 1967, e também aprisionado em Cantacunda em 11 de Abril de 1968, também "não compareceu entre os libertados", não havendo mais indicações;
- o soldado Manuel José Machado da Silva, não sei de que companhia era (sei só os que eram da CART 1690), também "não compareceu entre os libertados", e é dado como "morto no cativeiro".
Quer dizer que há dois sobre os quais se tem a certeza que morreram prisioneiros. Porque não constam os seus nomes na tal lista? Inadmissível também. Não há razão.
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