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27 de março de 2012

428-A arte da guerra no Cacheu


«A ARTE DA GUERRA NO CACHEU
A nossa deambulação castrense na região média do Rio Ca­cheu, a partir de Ganturé, fez-me embrenhar, em pleno, nos mean­dros, puros e duros, da guerra de guerrilha.
Quem viveu, fez campanha e conheceu o inimigo nessa zona durante meses adquiriu no terreno todas as «manhas» e efeitos de alocroado da arte da guerra.
Investe quando for vantajoso, aproveita o silêncio da floresta para confundires a outra parte, quando não conheces o terreno e o inimigo age nele a seu bel-prazer, tens de saber atacar com eficácia, rapidez e mobilidade para desarticular as suas unidades. Se tiveres de recuar, por dificuldades várias, fá-lo com a maior rapidez, para evitares ser emboscado e atingido em condições de inferioridade.
Todas estas e outras manobras, artimanhas, habilidades, sub­terfúgios de sobrevivência, foram cumpridas e utilizadas, pensadas programadamente ou exercidas espontaneamente, nos combates vitoriosos, nas derrotas havidas, nos momentos de glória guerreira ou de fraquezas nossas.
Jogámos, durante muito tempo, ao gato e ao rato com o PAIGC nas bolanhas do Talicó, do Iador, nas terras de Jagali Balanta, de Concolim, de Queré ou em Matar.
Contudo, eu, na minha humilde condição de simples mari­nheiro, que cumpria, religiosamente, as orientações operacionais, não descortinava as manigâncias tácticas da guerra de guerrilha, nem conseguia fazer raciocínios elaborados da arte guerreira.
Para mim, naquela altura, a questão era apenas de saber onde íamos actuar, pois não participávamos - praças e sargentos - no planeamento, nem sequer se discutia da justeza da acção naquele momento.
O «planeamento» para nós resumia-se em tomar conhecimento de que a determinada hora íamos partir e o objectivo era realizar a tarefa X, que implicava as medidas Y.
A preocupação das praças ficava pelas tarefas «primárias»: ve­rificar se levávamos as armas lubrificadas e prontas a disparar, se tínhamos as munições suficientes, se transportávamos a comida e bebida suficiente para a duração da operação.
Claro que a condução do acto de guerra não era da nossa res­ponsabilidade, nem nós éramos treinados para isso. «Cada macaco no seu galho». Esta máxima estava entranhada na nossa mentali­dade de conduzidos, nem nós sentíamos então qualquer «crise de consciência» com a situação onde gravitávamos. Obedecíamos, porque essa era a nossa condução de subordinados disciplinados, treinados em meses intensos de exercícios físicos e teóricos na Es­cola de Fuzileiros.
Com a experiência e com a «ascensão» de carreira e também de capacidade operacional - e isto com os anos - eu percebia que, muitas vezes, o condutor «prático» do combate no terreno era o sargento ou a praça veterana, carregada de saber feito - com o calo no cu como os macacos, como assinalávamos então, muito ufanos da nossa madureza guerreira.
As duas operações na zona de Canjaja Mandinga que relato de seguida são o exemplo de todas as acções que se pelejaram nessa altura nos campos de batalha, que se estendiam, sem frentes, por muitas dezenas de quilómetros.
A primeira operação em Canjaja foi planeada depois de ter havido informações da presença regular de forças do PAIGC na região, forças estas que estavam a controlar a população.
Havia uma quase certeza do local onde se escontrava o inimigo.
O comando da unidade estudou a situação, planeou, organizou as coisas de modo que agíssemos com habilidade e presteza para ata­car os guerrilheiros com toda a certeira capacidade da unidade.
Só que nos «esquecemos» de que éramos alóctones. Eles ti­nham a vantagem de estar no local e ter conseguido detectar-nos uns momentos antes de nós termos essa supremacia.
Assim, desembarcámos durante a noite, fizemos uma progres­são no terreno muito cuidadosa, pois tivemos de atravessar uma larga zona pantanosa, que se estendia entre o tarrafo na margem do rio e a orla da mata. Tudo isto de noite, enterrados na lama, chafurdando na viscosidade. Só conseguíamos ver o homem que ia à frente. Para lá dessa visão, era o escuro como breu. Sentiam os apenas um arfar profundo de homens cansados.
(Ainda hoje me rio quando vejo e revejo aqueles filmes da guerra de guerrilha, especialmente os do Vietname, com os solda­dos a correrem que nem uns desalmados, de noite, no interior da selva cerrada e praticamente impenetrável, como se isso fosse pos­sível. Quantas caminhadas tivemos de fazer no escuro da floresta tropical, de mãos dadas, andado quase a passo para não nos per­dermos! Quantas armas foram perdidas, porque no meio da noite as unidades tiveram, precipitadamente, de abandonar o local onde pernoitavam, por terem sido flageladas à distância)
Nesta operação, eu era o homem que seguia à frente da coluna.
Era desgastante. Não o sentia. Ia preocupado com a responsabili­dade, pois levava na cabeça a ideia de que «ia haver molho».
Os olhos pouco viam no escuro, mas eles estavam bem abertos.
Como medida de segurança, não podíamos aventurarmo-nos pelo meio da bolanha. Assim, eu seguia colado à orla do palmeiral, numa andança cautelosa, lenta, preguiçosa. Atrás, disciplinada­mente, eu percebia que todos me seguiam sem pestanejar.
Como bom alentejano que sou, ria comigo próprio: «Até parecemos alentejanos, devagar, devagarinho.»
Estava a clarear e reparei que naquela zona, junto ao palmeiral, havia um cruzamento de caminhos.
Avisei para trás aonde tinha chegado. O comandante mandou fazer um alto e montar uma emboscada. Ficámos à cuca de qual­quer ruído, de qualquer vestígio de que se notasse gente por perto. O silêncio era a resposta. Nem os macacos se movimentavam. No ar, para nós, «cheirava a alguma coisa».
O Sol já caminhava no céu. Passara cerca de uma hora. O frio das calças molhadas começava a sentir-se menos, pois notava-se que estavam a secar. Havia uma ligeira bruma matinal que parecia pairar junto às águas pantanosas.
Ouvíamos os abutres a grasnar, a zona parecia, realmente, tran-
quila.
Como não havia qualquer movimento humano, e a claridade já
permitia uma visão mais alargada, verificámos que a mata mais à frente era mais aberta.
Não andámos mais de 200 metros e, de repente, caiu sobre nós uma saraivada de balas de metralhadora. Dei um salto para detrás de uma árvore e dois rebentamentos de RPG fizeram-se ouvir a al­guns metros.
Mas, nós, como estávamos tensos e alerta, há muito tempo, e nessa medida, dominávamos o «campo de batalha», iniciámos, de imediato, a reacção. A mata era aberta e podíamos utilizar, com suficiente capacidade de manobra, as nossas bazucas. O que fize­mos. Corremos na sua direcção. Eles já não estavam no local da emboscada.
No chão, apenas vimos três guerrilheiros mortos. Os disparos dos combatentes do PAIGC continuavam, mas eram feitos em re­tirada. Disparavam para o ar. Afastavam-se em marcha desorde­nada.
Revistámos os mortos, verificámos que havia material, algum de guerra, no local que o inimigo abandonara precipitadamente.
Saímos com toda a velocidade da área, pois sabíamos que iría­mos ser flagelados com morteiros. Parámos numa zona de mata mais densa e emboscámos. Ouvimos, ao longe, rebentamentos que caíam onde se dera o contacto de fogo.
Ali permanecemos até ao meio-dia, depois o comandante man­dou que eu iniciasse a progressão. A caminhada durou uma hora até que a unidade se aproximou de uma clareira. Via-se muita ve­getação e as árvores que predominavam eram cajueiros.
Foi dada ordem de alto. Fui até à pequena mata e lancei uma mirada. Dei um pequeno salto para trás de surpresa e fiz sinal, apressado, que estava ali alguém. Espreitei, novamente, e vi que era um elemento da população, desarmado. Esperei que se aproxi­masse e deitei-lhe a mão, impedindo que ele gritasse.
O seu interrogatório foi logo ali. Tínhamos na unidade, homens que conheciam e falavam o crioulo. Com mais ou menos persuasão, informou-nos onde se localizava o acampamento e quantos guerrilheiros lá se encontravam.
Pelo que percebi a distância dali até esse acampamento não se­ria mais de 500 metros. Recebi ordens de avançar, mas estava com o pressentimento que já estávamos detectados.
Foi uma longa marcha para tão poucos metros. Cautelosa, lenta: os olhos a mirarem e remirarem em todas as direcções, o dedo indicador aperrado ao gatilho, o outro, o polegar, nervoso, para movimentar rapidamente a patilha de segurança.
Começo a ver as primeiras cubatas. Um dobrar instintivo do corpo, faço um sinal de que o acampamento estava à vista. Um si­lêncio de sepulcro. Nem vivalma, nem um animal se movimentava. Havia, no entanto, lume junto às primeiras casas.
O comandante veio até junto de mim, trocámos, em sussuro,
algumas palavras.
- O que achas? - perguntou-me.
- Estão algures do outro lado -, respondi.
- Eles tiveram mortos e feridos no contacto, devem estar
fragilizados. Talvez tenham fugido para outro acampamento -, alvitrou.
- Não sei, penso que nos temos de preparar para uma embos­cada -, sentenciei.
Concordou.
- Vais tentar controlar o acampamento, passando para o outro lado. Montas em seguida segurança, para que o resto do destaca­mento possa passar uma revista a este.
Afastou-se, foi dar ordens.
A primeira secção passou à linha e preparava-se para avançar, mas teve de retomar outra formação, pois a aglomeração de palho­tas era tão elevada, que perdíamos o contacto uns com os outros.
Assim, só uma equipa - a minha - passou à linha. Os outras duas seguiam em coluna. O resto do destacamento tinha a missão de nos dar cobertura.
Pé ante pé, deslizávamos com o máximo de segurança. Todos a postos para disparar. Tinha a nítida percepção que dentro de segun­dos ia dar-se o combate.
Inesperadamente, o combate deu-se quando ia a meio do acam­pamento. Um fogachal tremendo, tiros, bazucadas, granadas. Há um rebentamento de RPG-7 que atinge a minha equipa, todos fomos atravessados por estilhaços. Há gritos lancinantes de dor. Vejo ao meu lado um monte de baga-baga (morro de formigas) e consigo dizer para o meu pessoal para se abrigar ali, o que eles fazem, rastejando como podem. Instalámo-nos, o morro deu-nos protecção. Sinto uma dor horrível num pulso, algo que me parecia uma queimadura profunda. Um estilhaço atingira-me e sangrava bastante. Reparo que os meus camaradas estavam feridos.
Fiz-lhe sinal para se manterem ali, e avancei para um árvore que estava um pouco mais à frente para tentar ver qual era a situação e passar ao ataque. Comecei a gritar «vamos a eles». Disparava ao mesmo tempo. Quando me preparava para mudar o carregador, reparei que somente o guia nativo me acompanhava. Os outros pareciam estar feridos com gravidade e não podiam acompanhar-me.
Entretanto, o tiroteio generalizara-se, os nossos homens das bazucas estavam a responder. A batalha já durava há uns largos minutos. Estava a ficar preocupado, pois encontrava-me isolado e com feridos.
Os tiros tornam-se mais raros, à minha frente. Aproveito para regressar à posição anterior. Já ali estavam mais camaradas. Reti­rámos os três feridos para a retaguarda.
O inimigo desaparece. Os nossos feridos estão em estado apa­rentemente preocupante.
O comandante mandou montar um dispositivo defensivo e pediu a evacuação aérea dos feridos. Cerca de meia hora depois chegou um helicóptero, que trazia a bordo uma enfermeira pára­-quedista, e estava apoiado por um heli-canhão.
Os olhos dos fuzileiros centraram-se naturalmente na enfer­meira. Ela, todavia, actuou com todo o profissionalismo. Tratou, com ternura, dos feridos, passando a mão pela cabeça. Desapare­ceu, poucos minutos depois, levando a bordo os camaradas para o hospital militar em Bissau.
Imediatamente, o comandante Pedrosa mandou fazer a retirada do local. Como primeiro homem da coluna, pus-me em marcha, fazendo-o pelo lado do sul do acampamento, pois o terreno era mais aberto, o que permitiu um passo mais lesto e continuado. Para o efeito, aproveitámos, também, o facto de estar no local o apoio aéreo: Todavia, o inimigo não nos largou. Embora de certa distância, continuou a flagelar-nos com morteiradas, que caíam um pouco distantes da nossa fila de progressão.
O heli-canhão fez a protecção, praticamente, até à zona de reembarque.
Alguns de nós resmungávamos:
- Temos de ter a desforra. Porque será que esses cabrões não nos atacam agora, que nós dávamos-lhe uma arraial de porrada.
Havia um desejo real de vingança entre alguns camaradas. Mas, o comando pensava em termos de táctica de guerra. Nós - eu e mais uns quantos - agíamos como se fosse uma «batalha» de rua: tínhamos de nos desforrar, porque levámos na cabeça. Retirámos apressadamente, com baixas.
O inimigo movia-se agora à vontade, porque sabia que tivéramos baixas e estávamos em recuo, com algum desgaste. E dar-se um combate nessas condições poderia produzir mais mossa nas nossas fileiras, já derreadas e quase sem munições.
Claro que eu retiro agora essas lições, mas, na altura, estava vazio de ideias e de pensamentos tácticos. Era apenas um número na engrenagem, com o sangue na guelra.
Quando começámos a ou vir os ruídos dos motores das lanchas de desembarque que esperavam por nós, o nosso corpo ganhou a sensação de que o melhor era voltar para o quartel para descansar.
A realidade é que o dia fora mau para a unidade, apesar de ter entrado em combate, feito mortos, apanhado uma arma, munições e outro material. Para mim, cheirou-me no entanto a pouco. Estava acabrunhado.
O reembarque foi feito já ao anoitecer, com o apoio de navios de fiscalização - os patrulhas.
Claro que o «bichinho» da vingança ficou para outra ope­ração.»







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