«A
ARTE DA GUERRA NO CACHEU
A nossa
deambulação castrense na região média do Rio Cacheu, a partir de Ganturé,
fez-me embrenhar, em pleno, nos meandros, puros e duros, da guerra de
guerrilha.
Quem viveu, fez campanha e conheceu o
inimigo nessa zona durante meses adquiriu no terreno todas as «manhas» e
efeitos de alocroado da arte da guerra.
Investe quando for vantajoso, aproveita
o silêncio da floresta para confundires a outra parte, quando não conheces o
terreno e o inimigo age nele a seu bel-prazer, tens de saber atacar com
eficácia, rapidez e mobilidade para desarticular as suas unidades. Se tiveres
de recuar, por dificuldades várias, fá-lo com a maior rapidez, para evitares
ser emboscado e atingido em condições de inferioridade.
Todas estas e outras manobras,
artimanhas, habilidades, subterfúgios de sobrevivência, foram cumpridas e
utilizadas, pensadas programadamente ou exercidas espontaneamente, nos combates
vitoriosos, nas derrotas havidas, nos momentos de glória guerreira ou de
fraquezas nossas.
Jogámos, durante muito tempo, ao gato e
ao rato com o PAIGC nas bolanhas do Talicó, do Iador, nas terras de Jagali Balanta, de Concolim, de Queré ou em Matar.
Contudo, eu, na minha humilde condição
de simples marinheiro, que cumpria, religiosamente, as orientações
operacionais, não descortinava as manigâncias tácticas da guerra de guerrilha,
nem conseguia fazer raciocínios elaborados da arte guerreira.
Para mim, naquela altura,
a questão era apenas de saber onde íamos actuar, pois não participávamos -
praças e sargentos - no planeamento, nem sequer se discutia da justeza da acção
naquele momento.
O «planeamento» para nós resumia-se em
tomar conhecimento de que a determinada hora íamos partir e o objectivo era
realizar a tarefa X, que implicava as medidas Y.
A preocupação das praças ficava pelas
tarefas «primárias»: verificar se levávamos as armas lubrificadas e prontas a
disparar, se tínhamos as munições suficientes, se transportávamos a comida e
bebida suficiente para a duração da operação.
Claro que a condução do acto de guerra
não era da nossa responsabilidade, nem nós éramos treinados para isso. «Cada
macaco no seu galho». Esta máxima estava entranhada na nossa mentalidade de
conduzidos, nem nós sentíamos então qualquer «crise de consciência» com a
situação onde gravitávamos. Obedecíamos, porque essa era a nossa condução de
subordinados disciplinados, treinados em meses intensos de exercícios físicos e
teóricos na Escola de Fuzileiros.
Com a experiência e com a «ascensão» de
carreira e também de capacidade operacional - e isto com os anos - eu percebia
que, muitas vezes, o condutor «prático» do combate no terreno era o sargento ou
a praça veterana, carregada de saber feito - com o calo no cu como os macacos,
como assinalávamos então, muito ufanos da nossa madureza guerreira.
As duas operações na zona de Canjaja
Mandinga que relato de seguida são o exemplo de todas as acções que se
pelejaram nessa altura nos campos de batalha, que se estendiam, sem frentes,
por muitas dezenas de quilómetros.
A primeira operação em Canjaja foi
planeada depois de ter havido informações da presença regular de forças do PAIGC na
região, forças estas que estavam a controlar a população.
Havia
uma quase certeza do local onde se escontrava o inimigo.
O
comando da unidade estudou a situação, planeou, organizou as coisas de modo que
agíssemos com habilidade e presteza para atacar os guerrilheiros com toda a
certeira capacidade da unidade.
Só que nos «esquecemos» de que éramos
alóctones. Eles tinham a vantagem de estar no local e ter conseguido
detectar-nos uns momentos antes de nós termos essa supremacia.
Assim, desembarcámos durante a noite,
fizemos uma progressão no terreno muito cuidadosa, pois tivemos de atravessar
uma larga zona pantanosa, que se estendia entre o tarrafo na margem do rio e a
orla da mata. Tudo isto de noite, enterrados na lama, chafurdando na
viscosidade. Só conseguíamos ver o homem que ia à frente. Para lá dessa visão,
era o escuro como breu. Sentiam os apenas um arfar profundo de homens cansados.
(Ainda hoje me rio quando vejo e revejo
aqueles filmes da guerra de guerrilha, especialmente os do Vietname, com os
soldados a correrem que nem uns desalmados, de noite, no interior da selva
cerrada e praticamente impenetrável, como se isso fosse possível. Quantas
caminhadas tivemos de fazer no escuro da floresta tropical, de mãos dadas, andado
quase a passo para não nos perdermos! Quantas armas foram perdidas, porque no
meio da noite as unidades tiveram, precipitadamente, de abandonar o local onde
pernoitavam, por terem sido flageladas à distância)
Nesta
operação, eu era o homem que seguia à frente da coluna.
Era
desgastante. Não o sentia. Ia preocupado com a responsabilidade, pois levava
na cabeça a ideia de que «ia haver molho».
Os
olhos pouco viam no escuro, mas eles estavam bem abertos.
Como
medida de segurança, não podíamos aventurarmo-nos pelo meio da bolanha. Assim,
eu seguia colado à
orla
do palmeiral, numa andança cautelosa, lenta, preguiçosa. Atrás, disciplinadamente,
eu percebia que todos me seguiam sem pestanejar.
Como
bom alentejano que sou, ria comigo próprio: «Até parecemos alentejanos,
devagar, devagarinho.»
Estava
a clarear e reparei que naquela zona, junto ao palmeiral, havia um cruzamento
de caminhos.
Avisei para trás aonde tinha chegado. O
comandante mandou fazer um alto e montar uma emboscada. Ficámos à cuca de qualquer
ruído, de qualquer vestígio de que se notasse gente por perto. O silêncio era a
resposta. Nem os macacos se movimentavam. No ar, para nós, «cheirava a alguma
coisa».
O
Sol já caminhava no céu. Passara cerca de uma hora. O frio das calças molhadas
começava a sentir-se menos, pois notava-se que estavam a secar. Havia uma ligeira
bruma matinal que parecia pairar junto às águas pantanosas.
Ouvíamos
os abutres a grasnar, a zona parecia, realmente, tran-
quila.
Como
não havia qualquer movimento humano, e a claridade já
permitia
uma visão mais alargada, verificámos que a mata mais à frente era mais aberta.
Não andámos mais de 200 metros e, de
repente, caiu sobre nós uma saraivada de balas de metralhadora. Dei um salto
para detrás de uma árvore e dois rebentamentos de RPG fizeram-se ouvir
a alguns metros.
Mas, nós, como estávamos tensos e
alerta, há muito tempo, e nessa medida, dominávamos o «campo de batalha»,
iniciámos, de imediato, a reacção. A mata era aberta e podíamos utilizar, com
suficiente capacidade de manobra, as nossas bazucas. O que fizemos. Corremos
na sua direcção. Eles já não estavam no local da emboscada.
No chão, apenas vimos três guerrilheiros
mortos. Os disparos dos combatentes do PAIGC continuavam, mas eram feitos em
retirada. Disparavam para o ar. Afastavam-se em marcha desordenada.
Revistámos
os mortos, verificámos que havia material, algum de guerra, no local que o
inimigo abandonara precipitadamente.
Saímos com toda a velocidade da área,
pois sabíamos que iríamos ser flagelados com morteiros. Parámos numa zona de
mata mais densa e emboscámos. Ouvimos, ao longe, rebentamentos que caíam onde
se dera o contacto de fogo.
Ali permanecemos até ao meio-dia, depois
o comandante mandou que eu iniciasse a progressão. A caminhada durou uma hora
até que a unidade se aproximou de uma clareira. Via-se muita vegetação e as
árvores que predominavam eram cajueiros.
Foi dada ordem de alto. Fui até à
pequena mata e lancei uma mirada. Dei um pequeno salto para trás de surpresa e
fiz sinal, apressado, que estava ali alguém. Espreitei, novamente, e vi que era
um elemento da população, desarmado. Esperei que se aproximasse e deitei-lhe a
mão, impedindo que ele gritasse.
O seu interrogatório foi logo ali.
Tínhamos na unidade, homens que conheciam e falavam o crioulo. Com mais ou
menos persuasão, informou-nos onde se localizava o acampamento e quantos
guerrilheiros lá se encontravam.
Pelo que percebi a distância dali até
esse acampamento não seria mais de 500 metros. Recebi ordens de avançar, mas
estava com o pressentimento que já estávamos detectados.
Foi uma longa marcha para tão poucos
metros. Cautelosa, lenta: os olhos a mirarem e remirarem em todas as direcções,
o dedo indicador aperrado ao gatilho, o outro, o polegar, nervoso, para
movimentar rapidamente a patilha de segurança.
Começo a ver as primeiras cubatas. Um
dobrar instintivo do corpo, faço um sinal de que o acampamento estava à vista.
Um silêncio de sepulcro. Nem vivalma, nem um animal se movimentava. Havia, no
entanto, lume junto às primeiras casas.
O
comandante veio até junto de mim, trocámos, em sussuro,
algumas
palavras.
-
O que achas? - perguntou-me.
-
Estão algures do outro lado -, respondi.
-
Eles tiveram mortos e feridos no contacto, devem estar
fragilizados.
Talvez tenham fugido para outro acampamento -, alvitrou.
- Não sei, penso que nos temos de preparar para uma
emboscada -, sentenciei.
Concordou.
- Vais tentar controlar o acampamento,
passando para o outro lado. Montas em seguida segurança, para que o resto do
destacamento possa passar uma revista a este.
Afastou-se,
foi dar ordens.
A primeira secção passou à linha e
preparava-se para avançar, mas teve de retomar outra formação, pois a
aglomeração de palhotas era tão elevada, que perdíamos o contacto uns com os
outros.
Assim, só uma equipa - a minha - passou
à linha. Os outras duas seguiam em coluna. O resto do destacamento tinha a
missão de nos dar cobertura.
Pé ante pé, deslizávamos com o máximo de
segurança. Todos a postos para disparar. Tinha a nítida percepção que dentro de
segundos ia dar-se o combate.
Inesperadamente,
o combate deu-se quando ia a meio do acampamento. Um fogachal tremendo, tiros,
bazucadas, granadas. Há um
rebentamento de RPG-7 que atinge a
minha equipa, todos fomos atravessados por estilhaços. Há gritos lancinantes de
dor. Vejo ao meu lado um monte de baga-baga (morro de formigas) e consigo dizer
para o meu pessoal para se abrigar ali, o que eles fazem, rastejando como
podem. Instalámo-nos, o morro deu-nos protecção. Sinto uma dor horrível num
pulso, algo que me parecia uma queimadura profunda. Um estilhaço atingira-me e
sangrava bastante. Reparo que os meus camaradas estavam feridos.
Fiz-lhe sinal para se manterem ali, e
avancei para um árvore que estava um pouco mais à frente para tentar ver qual
era a situação e passar ao ataque. Comecei a gritar «vamos a eles». Disparava
ao mesmo tempo. Quando me preparava para mudar o carregador, reparei que
somente o guia nativo me acompanhava. Os outros pareciam estar feridos com
gravidade e não podiam acompanhar-me.
Entretanto, o tiroteio generalizara-se,
os nossos homens das bazucas estavam a responder. A batalha já durava há uns
largos minutos. Estava a ficar preocupado, pois encontrava-me isolado e com
feridos.
Os tiros tornam-se mais raros, à minha
frente. Aproveito para regressar à posição anterior. Já ali estavam mais
camaradas. Retirámos os três feridos para a retaguarda.
O
inimigo desaparece. Os nossos feridos estão em estado aparentemente
preocupante.
O comandante mandou montar um
dispositivo defensivo e pediu a evacuação aérea dos feridos. Cerca de meia hora
depois chegou um helicóptero, que trazia a bordo uma enfermeira pára-quedista,
e estava apoiado por um heli-canhão.
Os olhos dos fuzileiros centraram-se
naturalmente na enfermeira. Ela, todavia, actuou com todo o profissionalismo.
Tratou, com ternura, dos feridos, passando a mão pela cabeça. Desapareceu,
poucos minutos depois, levando a bordo os camaradas para o hospital militar em
Bissau.
Imediatamente,
o comandante Pedrosa mandou fazer a retirada do local. Como primeiro homem da
coluna, pus-me em marcha, fazendo-o pelo lado do sul do acampamento, pois o
terreno era mais aberto, o que permitiu um passo mais lesto e continuado. Para
o efeito, aproveitámos, também, o facto de estar no local o apoio aéreo:
Todavia, o inimigo não nos largou. Embora de certa distância, continuou a
flagelar-nos com morteiradas, que caíam um pouco distantes da nossa fila de
progressão.
O
heli-canhão fez a protecção, praticamente, até à zona de reembarque.
Alguns
de nós resmungávamos:
-
Temos de ter a desforra. Porque será que esses cabrões não nos atacam agora,
que nós dávamos-lhe uma arraial de porrada.
Havia um desejo real de vingança entre
alguns camaradas. Mas, o comando pensava em termos de táctica de guerra. Nós -
eu e mais uns quantos - agíamos como se fosse uma «batalha» de rua: tínhamos de
nos desforrar, porque levámos na cabeça. Retirámos apressadamente, com baixas.
O inimigo movia-se agora à vontade,
porque sabia que tivéramos baixas e estávamos em recuo, com algum desgaste. E
dar-se um combate nessas condições poderia produzir mais mossa nas nossas
fileiras, já derreadas e quase sem munições.
Claro que eu retiro agora essas lições,
mas, na altura, estava vazio de ideias e de pensamentos tácticos. Era apenas um
número na engrenagem, com o sangue na guelra.
Quando começámos a ou vir os ruídos dos
motores das lanchas de desembarque que esperavam por nós, o nosso corpo ganhou
a sensação de que o melhor era voltar para o quartel para descansar.
A realidade é que o dia fora mau para a
unidade, apesar de ter entrado em combate, feito mortos, apanhado uma arma,
munições e outro material. Para mim, cheirou-me no entanto a pouco. Estava
acabrunhado.
O
reembarque foi feito já ao anoitecer, com o apoio de navios de fiscalização -
os patrulhas.
Claro
que o «bichinho» da vingança ficou para outra operação.»
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