CAPÍTULO XII
Como Antão Gonçalves trouxe os primeiros cativos
(…) Acabada a viagem daqueste, quanto ao principal mandado, Antão Gonçalves chamou Afonso Guterres, um outro moço da câmara, que era com ele, e assim os outros do navio, que eram por todos vinte e um, e falou-lhes em esta guisa: Irmãos e amigos! Nós temos já nossa carga [peles de lobo-marinho e azeite], como vedes, na qual acabamos a principal força de nosso mandado, e bem nos podemos tomar, se mais não quisermos trabalhar além daquilo que nos principalmente foi encomendado; mas quero porém saber de vós outros, se vos parece que é bem que tentemos de fazer alguma cousa, porque aquele que nos cá enviou, possa conhecer alguma parte de nossa boa vontade, ca me parece que seria vergonha tomarmos assim ante a sua presença, com tão pequeno serviço. E em verdade eu considero que, quanto nos esta cousa foi menos encarregada pelo infante nosso senhor, tanto devemos em ela de trabalhar com muito maior peso. Ó que formoso aquecimento seria, nós que viemos a esta terra por levar carga de tão fraca mercadoria, acertarmos agora em nossa dita de levar os primeiros cativos ante a presença do nosso príncipe! E quero-vos dizer o que tenho considerado para receber vosso avisamento: e isto é, que em esta noite seguinte, eu com nove de vós outros, aqueles que mais dispostos estiverdes para o trabalho, quero ir tentar alguma parte desta terra, ao longo deste rio, para ver se sinto alguma gente, ca me parece que de razão devemos achar alguma cousa, pois é certo que aqui há gentes, e que tratam com camelos e outras alimárias, que levam suas cargas; e o tráfego daquestes principalmente deve de ser contra o mar; e pois que eles de nós ainda não hão nenhuma sabedoria, não pode o seu ajuntamento ser tamanho que nós não tentemos suas forças; e encontrando-nos Deus com eles, a mais pequena parte da vitória será filharmos [agarrarmos à força] algum, do qual o Infante nosso senhor não será pouco contente para cobrar conhecimento por ele de quais e quejandos são os outros moradores desta terra. Pois qual será o nosso galardão, sabê-la-eis pelas grandes despesas e trabalho que ele nos anos passados, somente a este fim, tem oferecidos. Vós vede o que fazeis, responderam os outros, ca pois capitão sois, é necessário que naquilo que mandardes sejais obedecido, não como Antão Gonçalves; mas como nosso senhor, ca bem deveis de cuidar que aqueles que aqui somos, da criação do Infante nosso senhor, temos desejo e vontade de o servir, até pôr nossas vidas na sorte do derradeiro perigo. Porém a nós parece, que vossa intenção é boa, com tanto que vós não queirais aí meter outra novidade, pela qual se nos recresça perigo, com pouco serviço de nosso senhor. E finalmente determinaram fazer seu mandado, e o seguir até onde mais chegar pudessem. E tanto que a noite sobreveio, Antão Gonçalves apartou aqueles nove, que lhe mais aptos pareceram, e fez com eles sua viagem, segundo antes determinara E sendo afastados do mar, quanto podia ser uma légua, acharam ali um caminho, o qual guardaram, presumindo que poderia por ali acudir algum homem, ou mulher, que eles pudessem filhar; e seguiu-se de não ser assim, por cuja razão Antão Gonçalves pôs em prazimento aos outros, que fossem mais avanta seguir sua intenção, ca pois já demovidos eram, não seria bem de tomarem assim em vão para seu navio. E contentes os outros, partiram dali, seguindo por aquele sertão espaço de três léguas onde acharam rasto de homens e moços, cujo número, segundo seu parecer, seriam de quarenta até cinquenta, os quais seguiam ao revés do que os nossos andavam. A calma era muito grande, e assim por razão dela, como do trabalho que passado tinham, velando a noite e andando assim de pé, e sobretudo à míngua da água, que aí não havia, sentiu Antão Gonçalves que o cansaço daqueles era já mui grande, a qual cousa ele bem podia julgar por seu próprio padecimento. Amigos, disse ele, aqui não há mais; nosso trabalho é grande, e o proveito me parece pequeno, quanto pelo seguimento deste caminho, ca estes homens são contra a parte donde nós vimos, e o melhor conselho que podemos haver, é que voltemos contra eles, e pode ser que à volta que fizerem, se apartaram alguns, ou por ventura chegaremos sobre eles onde jouverem em alguma folga, e cometendo-os de rijo, pode ser que fujam, e fugindo, algum haverá aí menos ligeiro, de que nos podemos aproveitar, segundo nossa intenção, ou por ventura será nossa dita melhor, e acharemos catorze ou quinze, com os quais faremos nossa presa de maior avantagem. Não era este conselho em que se pudesse achar dúvida, quanto nas vontades daqueles, porque cada um aquilo mesmo desejava. E voltando contra o mar, em pouco espaço do seu caminho, viram um homem nu, que seguia um camelo, levando duas azagaias na mão, e seguindo aqueles nossos, não havia aí algum que de seu grande cansaço tivesse sentido. E como quer que aquele fosse só, e visse que os outros eram tantos, todavia quis mostrar que aquelas armas eram dignas para ele, e começou de se defender o melhor que pode, fazendo sua contenença(1) mais áspera do que sua fortaleza requeria. Afonso Guterres o feriu de um dardo, de cuja ferida o mouro recebeu temor, e lançou suas armas como cousa vencida; o qual filhado, não sem grande parazer daqueles, indo assim adiante, viram sobre um outeiro a gente, cujo rasto seguiam, da soma dos quais era aquele que traziam filhado. E não faleceu por suas vontades de chegar a eles, mas o sol era já mui baixo, e eles cansados, consideraram que semelhante cometimento lhe podia trazer maior dano que proveito, e porém determinaram de se recolher a seu navio. E indo assim aviados, viram ir uma moura negra, que era serva daqueles que ficavam no outeiro, e posto que o conselho d'alguns daqueles fosse que a deixassem ir, por não travar nova escaramuça, de que pelos contrários não eram requeridos, ca pois eram em vista, e o seu número era mais que dobrez(2) sobre eles, não podiam ser de tão pequenos corações, que lhe deixassam assim levar cousa sua. Antão Gonçalves todavia disse, que fossem a ela, ca podia ser que o menos preço daquele encontro faria aos contrários cobrar corações contra eles. E já vedes, voz de capitão, entre gente usa a obedecer, quanto prevalece. Seguindo seu acordo, a moura foi filhada, sobre a qual os do outeiro quiseram acudir; mas vendo os nossos aparelhados de os receber, não somente se retraíram para onde estavam, mas ainda fizeram viagem para outra parte, voltando as costas aos conrários. (…)
CAPÍTULO XIII
Como Nuno Tristão chegou onde era Antão Gonçalves, e como o fez cavaleiro
(1) "contenença" significa "actual presença".
(2) "dobrez" tem o sentido de "duplo".
(3) “dês i” corresponde a “desde aí, desde então”
(...) 5. Imediatamente o senhor Infante fez uma armada de duas caravelas e mandou um cavaleiro já de idade que se chamava Nuno Tristão; por capitão em outra caravela ia Antão Gonçalves, muito moço, que depois teve o castelo de Tomar, com outros moços da câmara do senhor Infante. Ordenou-lhes que fosse até ao Rio do Ouro e que, se encontrassem gente, fizessem tratado de paz com ela. Assim foram até ao Rio do Ouro; de noite foram com batéis até à costa e ao alvorecer viram uma gente que vinha tirar água a um poço.
Cheios de satisfação, saltaram em terra com as suas armas e apanharam treze homens e mulheres, enquanto o resto fugia. Entre eles, tomaram um ancião muito respeitável, de nome Adavu". Alguns deles eram ruivos, outros negros. E assim, cheio de contentamento, o capitão-mor armou cavaleiro o mais novo, ainda jovem, que tinha o nome de Antão Gonçalves e era parente do capitão da ilha da Madeira. (...)
(...) 7. De novo o senhor Infante fez uma armada de quatro caravelas. Os capitães: Gil Eanes de Vilalobos, cavaleiro; Lançarote, almoxarife do rei em Lagos, Nuno Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra. E houve muitos homens de nobreza que foram a Arguim e passaram além onde tomaram uma ilha que tem o nome de Teslim e outra ilha grande chamada Tider e outra mais, Onar.
A ilha de Tider encontraram-na cheia de homens e de mulheres. Só eu, Diogo Gomes, almoxarife de Sintra, apanhei 22 pessoas que se tinham escondido e empurrei--as sozinho diante de mim, como animais, por meia légua até aos barcos. O mesmo fez cada um dos outros. Capturámos nesse dia desses cenégios 600 homens de cor ruiva e uns 50 negros e com eles regressámos a Portugal, a Lagos do Algarve (ver aqui), onde se encontrava o senhor Infante. Ficou ele muito satisfeito connosco.
http://maracatu.org.br/o-maracatu/historia/
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Como eram transportados os escravos nas caravelas |
Depois, mandou o senhor Infante de novo Gonçalo Afonso de Sintra. Foram outra vez às ditas ilhas e deram combate aos sarracenos Cenégios. As mulheres fugiram, mas Gonçalo de Sintra perseguiu-as dentro de água; as mulheres apanharam lodo do mar e lançando-lho na cara cegaram-no de tal modo que ele ficou sem ver. Os homens caíram sobre ele e mataram-no, Os outros regressaram à caravela e voltando a Portugal levaram a nova ao senhor Infante, acompanhados de mais de 60 cenégios, de um e outro sexo.(...)
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