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28 de agosto de 2011

243-Chegada a Mafra

Pensei na vida que me esperava para os próximos anos não com apreensão ou receio, mas apenas com curiosidade e mera expectativa. Nem sequer a guerra, de que ouvira falar através de terceiros, que também a não tinham conhecido directamente, nem sequer ela me era motivo de medo ou angústia. Nos momentos de desilusão amorosa tinha-me vindo o desejo de mudança, mas, com mais calma, tive pena de mal ter iniciado os estudos na universidade, preferia tê-los acabado primeiro. No entanto, não deixava de ser simpática a expectativa de vir a envergar a farda de oficial e poder aparecer assim fardado à família, aos amigos, e a uma namorada qualquer que eu havia de ter. Disciplina de quartel, vida de caserna, também não era coisas que me preocupassem, não seria muito mais do que aquilo a que estivera já habituado desde pequeno.
Já lá ia uma hora do Rossio em direcção a Torres Vedras. Na carruagem, não completamente cheia, iam vários rapazes, uns sozinhos, como eu, outros em grupos de dois ou três. Era Janeiro e o frio era intenso, sendo talvez por isso que o ambiente não condizia com a juventude que ocupava a carruagem. Nem os que iam em grupo passavam de uma ou outra risada, sem continuidade, perdida. Num desses grupos sobressaía um tipo louro e magro, bigode louro e olhos verdes vivos sobressaindo do rosto como olhos de camaleão. E era por estar sempre a falar em voz baixa com os outros dois que o acompanhavam, passando ao mesmo tempo os olhos pela carruagem, por todos os cantos e por todos os rostos, em jeito camaleónico. Só que ele mais parecia receoso à espera de ataque do que emboscado à procura de presa.
Quando o comboio estacou, com uma enorme chinfrineira de travões, na estação que serve Mafra toda a gente da carruagem saiu e  juntaram-se outros vindos das outras mais à frente e mais atrás. Ainda eram mais de trinta. Com malas e sacos à laia de pratos de balança estacaram a procura do convento e o comboio lá seguiu para Torres Vedras.
"Os nossos cadetes vão ter de ir a pé para o quartel", e o soldado mirava o pessoal com ar de sonso.
Naturalmente, todos se juntaram naquele lado.
"Mas para onde é que fica o quartel? Não nos pode ensinar o caminho para lá?", perguntaram quase todos.
"Os nossos cadetes não têm nada que enganar. Por detrás daquele morro que se vê daqui a quinhentos metros, no sítio onde a estrada da estação faz a curva, logo a seguir fica o convento e o quartel. Eu não posso ir com os nossos cadetes porque estou à espera do comboio para Lisboa. Mas não tem nada que enganar", e afastou-se à pressa.
Passou para o outro lado da gare. O comboio para Lisboa foi chegando e ele lá seguiu nele.
"Quem é que é de Lisboa?", perguntou alguém.
Três disseram que sim, mas que nunca tinham vindo a Mafra e que não conheciam, portanto, nem a terra nem o malfadado convento.
"Mas sempre pensei que tinha umas torres bestialmente altas. Afinal, parece que não, pois, se está tão perto daqui e nem se vêem", arriscou um dos alfacinhas.
"Começamos cedo a ficar fodidos. Toda a gente tem guia de marcha, não é? O que é que ela diz? Não é até Mafra?" Era um dos que falavam com o dos olhos camaleónicos.
Toda a gente mirou o papel e concordou.
"Mafra é uma vila, tem casas, tem ruas e tem o sacana do convento, que é mesmo grande como toda a gente aprendeu na escola. É ou não é verdade?"  
Ninguém respondeu porque era mesmo verdade.
"Então foderam-nos, pois claro. Se não se vê daqui é porque é mesmo longe. O magala deve mas é ser alentejano.”
E continuou, quando os protestos começaram a surgir de todos os lados.
"Isto é psicológico. Os gajos usam estes métodos para a malta começar a amochar".
Os protestos generalizaram-se, a maior parte disse daqui não saio a pé, que me venham buscar de carro. Mas houve quem, embora sob protesto, decidisse que era melhor agarrar na bagagem e arrancar em direcção ao quartel, não vá o diabo tecê-las. E lá arrancaram sete ou oito.
 "Esperem lá, seus nabos! Então ninguém se lembrou de ir perguntar ao chefe da estação? Aguentem aí que eu vou lá ver como é".
 Era o camaleónico a falar. Todos largaram as malas e dirigiram-se também ao chefe da estação.
Ele riu-se a brava.
"Esse gajo esteve a gozar com vocês. Há meia hora, chegou aí outro grupo e ele fez-lhes o mesmo. Eram dez e foram andando pela estrada fora". 
De filho da puta para cima tudo chamaram ao magala.
"Há uma camioneta do quartel que faz a ligação. Daqui até lá ainda são uns dez quilómetros. Ela não deve tardar aí".
O alívio era geral e os impropérios ao magala gozâo ficaram esquecidos.
As conversas generalizaram-se e estabeleceram-se ali os contactos mútuos entre indivíduos que iriam viver em conjunto e de forma intensa os próximos meses e, alguns, os próximos anos. A camioneta lá chegou e levou-os até Mafra. Toda a gente galhofava com os dez maçaricos que tinham caído na esparrela do magala.
E lá chegámos. Mas era meio-dia e disseram-nos para ire dar uma volta pela vila e aparecer às duas da tarde. O convento era uma aranha medonha que tecia a vila, e esta só existia porque havia o convento e, sobretudo,  porque havia o quartel. Sim, porque seria impensável ver os frades, se os houvesse, a coçarem os... hábitos pelos cafés e restaurantes da vila. A teia de pequenos negócios estendia-se ao longo das ruas e ruelas que saíam do convento em direcção às hortas, aos pomares, aos minifúndios dos saloios. Quem caía nessa teia? Os turistas, que acorriam em camionetas aos tesouros artísticos, e a tropa, de passagem para a voragem da guerra. Recém-chegados fomo-nos espalhando pelos vários restaurantes e cafés fronteiros ao convento. Os grupos formaram-se naturalmente de acordo com as várias levas de camioneta. Num desses restaurantes entraram o camaleónico e os outros dois que com ele cochichavam no comboio, eu e mais três que tinham vindo na mesma leva. Juntámo-nos todos numa mesa grande.
“Vocês foram dos que agarraram nas malas para vir a pé até aqui”, e o camaleónico fitou ironicamente quatro dos comensais, “a gente topou logo que aquilo era peta do magala. Se vocês não se põem a pau, vão ser comidos por tudo e por nada daqui para a frente. Aqui o Rolando também ia caindo, se não fosse eu avisá-lo.”
“Eu não fui”, disse eu.
“Até podia ser verdade o que o magala dizia. Não me admirava nada. Ou pensas que os gajos estão preocupados com as tuas comodidades? Não me pareceu nada anormal que nos fizessem palmilhar uns quilómetros com as malas às costas. Mais do que isso ainda hás-de amargar”, profetizou o  Orlando, deixando ao mesmo tempo transparecer a preocupação de justificar a  sua credulidade perante a ironia do outro.
“Mas eu cá não fui desses, pá”, era moreno e usava o cabelo bastante curto, tinha uma cara de garoto reguila e falava à alentejana, “a mim, ao António Realinho, nunca eles hão-de caçar. Só se for para jogar à bola, que é o que eu fazia lá no Lusitano. Acreditem, rapazes, que vim para a tropa porque tive de vir e, como não foi por gosto, não tenho intenções de me cansar.”
“Não era verdade, por acaso. Mas, se fosse e tu não tivesses andado, bem te podias lixar. Vocês é a primeira vez que estão em contacto com as coisas militares, mas eu não, eu sei como neste meio são exigentes. Pensando bem, não poderia ser de outra maneira, se é que querem ter um exército minimamente capaz de fazer a guerra. Eu estive na Milícia e sei o que é a disciplina. Por isso é que arranquei sem me admirar que fosse como o magala dizia.”
Quem assim falou com ar sério era o mais alto e entroncado do grupo.
“Caga na disciplina e vamos mas é à manja, que eu estou com uma galga do caraças. Já que vamos estar juntos durante alguns meses, pelo menos, é melhor apresentarmo-nos desde já. Eu cá sou o Norberto”, disse o camaleónico, “e este nabo que ia caindo na peta do magala é o Rolando e este gajo que está à minha frente com cara de bêbedo é o Simões. E tu, pá?”, perguntou curiosamente ao que falara anteriormente e que estivera na Milícia.
“Eu chamo-me Fernando Carreira”, respondeu ele.
Olharam para mim.
“António Aiveca”.
Todos, menos o Realinho, olharam para mim com cara de que raio de nome. Mas não liguei.
“E eu já vos disse que sou o Realinho, alentejano de gema e jogo à bola no Lusitano de Évora”.
O outro, de que ninguém ainda sabia o nome e que estava macambúzio, abatido, acabou por desabafar:
“Esse gajo aí, como é que te chamas?, Carreira, fala de disciplina e de fazer a guerra. Não sei o que é que tu fazes na vida, pá, para falares disso tão à-vontade. Eu sou o Pais, o Carlos Pais, sou agente técnico de engenharia electrónica nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico em Alverca, mas, é verdade, pá, estou-me cagando para a tropa, para esta porra toda, para tudo o que é militar. Estou farto deles. Só me vou esforçar por uma coisa aqui dentro, e não é jogar à bola.”
“Mas tens alguma queixa da bola?”, respingou o Realinho.
“Não, pá, era só para dizer que vou fazer tudo por tudo para ver esta merda toda pelas costas. Casei-me há um ano e tenho uma miúda com dez meses, custa-me muito estar longe dela e da minha mulher. Além disso, um gajo nunca sabe o que lhe pode acontecer.”
Era um tipo baixo, de cabelo negro, sobressaindo sobre um ar amarelado que lhe envolvia toda a pessoa. Mas era desenvolto e falara com veemência. Todos olharam para ele com certa simpatia. Só o da Milícia manteve um ar ausente, pouco receptivo àquela tragédia. Fraqueza, parecia pensar. Mas, como apareceu nessa altura o criado, todos se distraíram a encomendar que comer. Todos pediram refeição completa, menos eu. Pedi apenas sopa, um prego e uma cerveja.
“Assim não te safas, pá. Come cá fora enquanto podes, pois lá dentro só tens uma alternativa, ou comes merda ou morres à fome. Faz como eu, para já um bife com batatas fritas, sopa, uma cervejinha. Ó senhor empregado, traga pão, manteiguinha e azeitonas para a gente se ir entretendo. E pode trazer também as bebidas”, e o Realinho sorriu-se para todos, satisfeito.
“O problema é que não posso comer mais do que isso”, e  acrescentei, receando que tivessem compreendido que estava doente, “não  estou preparado para fazer uma despesa maior. Pensei que iríamos almoçar no quartel e não trouxe dinheiro que chegasse, isto é, trouxe, mas não o posso gastar já agora, senão não me chega para o resto da semana.”
Fiquei com a impressão que olharam para mim como para um pelintra. O Simões, o tal coradinho que estava assentado à frente do Norberto, abriu o bico pela primeira vez e disse, com manifesta intenção de salvar a minha atrapalhação.
“É pá, come lá à-vontade que eu empresto-te dinheiro e logo me pagas.”
“Está bem, obrigado”, mas fiquei pouco à-vontade.
Uma breve pausa e foi o Carreira que reatou a conversa.
“O Pais tem razão, mas parece-me que situações como a dele são  fatais, é mesmo difícil pensar que não possam existir numa situação de guerra.”
“Também não digo que não. No entanto”, e o Norberto mirou o Carreira de cima para baixo, “também é natural que nem todos gostem de se ver metidos nessa situação. Eu, por exemplo, não posso dizer que me agrade estar aqui, pensando no que está para vir. Sou professor primário e sou casado. Não é pela minha profissão, que até gosto dela, mas que teria mesmo que abandonar mais tarde ou mais cedo, já que não me dá para viver, mas é, sobretudo, porque tenho de estar longe da família. Se tivesse filhos, como o Pais, estaria ainda muito mais tramado. Haverá ainda outras razões que não vêm agora para o caso, mas a fundamental é uma, e é que não me interessa morrer, mas, a partir de agora, passo a ter muitas mais hipóteses de que isso venha a suceder. Por tudo o que isso acarreta para a família, e para mim próprio, claro. Eu percebo o Pais e acho que ele tem razão em sentir-se tramado. Reage à maneira dele, o que deve ser aceite.”
O Simões olhava para ele com ar sorridente, na expectativa de uma deixa para poder intervir. E apanhou esta.
“Cá por mim já tenho uma maneira. Andei a estudá-la durante muito tempo e aconselhei-me, até, com alguns tipos amigos que já passaram por estas coisas. E encontrei a maneira ideal.”
”A sorna, querem apostar?”, e o Rolando riu-se com a própria piada, e todos sorriram, olhando para o Realinho.
“Não é isso, pá. Vocês estão a gozar, mas eu encontrei a maneira científica de me ver livre disto. É a doença, pá”.
“Vai dar ao mesmo”, tornou o Orlando. 
Todos se riram novamente
“Não é nada a mesma coisa. E já te digo porquê. Se tu optas pela sorna, como o Realinho, topam-te e vão estar sempre a pau contigo, vão sarnar-te o juízo todos os dias. E isso não leva a atingir o objectivo final que é, pelo menos para mim, ver-me livre disto, da tropa, não me meter nessa coisa dos tiros. A sorna vai-te ajudar a passar o tempo da melhor maneira possível, com um mínimo de aborrecimentos, poupando ao máximo o corpinho, mas, se te topam, e não sei como não poderá deixar de ser, além dos gajos te foderem ainda mais, chegas ao fim disto e vais na mesma seguir o curriculum dos morituri.
“Essa é boa, mas troca lá isso por miúdos”.
“Isso é latim”, adiantei-me eu, "morituri quer dizer os que vão morrer. Os soldados romanos, quando iam para o combate, saudavam o imperador  com ave, Caesar, morituri te salutant, isto é, salve, César, os que vão morrer saudam-te".
O Realinho, que manifestara a sua ignorância, e os outros olharam para mim com um misto de curiosidade e de ironia, de tal modo que continuei tentando justificar a minha sabedoria e para não pensarem que tinha andado no seminário.
“É que eu fiz o Latim do 7°ano há alguns meses e tinha uma cadeira de Latim na Faculdade de Letras, andava em Românicas.”
O Simões quis continuar.
“Não me cortem o fio à meada. Com sorna ou sem sorna, se não tomarem como objectivo ver tudo isto pelas costas e procurar as vias para isso, vão seguir direitinhos para a guerra. E é o que eu não quero. Por isso é que eu vou ficar doente do coração desde a altura em que puser os pés na porta do quartel. Desde essa altura vou ser um doente cardíaco, meus amigos. Mas um doente cardíaco colaborante, empenhado nos exercícios, em todos, desejoso de aprender a ser um bom oficial. Não acreditam? Pois hão-de ver.”
De facto, todos olhavam para ele muito cepticamente.
“Estou a ver que vocês não percebem nada.”
O comer já viera, estavam todos entretidos a matar a maldita, e o Simões continuou a falar, entremeando tudo com bife, com batatas fritas e vinho tinto.
“Eu explico,” e fez uma pausa nos ruídos de faca e garfo, mantendo apenas o rilhar ritmado do bife, “é que sofro mesmo do coração. Pois bem: apesar de ser doente, o Simões vai ser o gajo mais entusiasta em todos os exercícios e treinos. Mas, porque sou doente cardíaco, não vou conseguir terminá-los, vou sentir muitas dificuldades e vou, até, ter algumas crisesitas. Naturalmente, todos vão ter pena de mim, coitado, que se esforça imenso mas não consegue nada, e os manda-chuvas dirão que sou muito esforçado mas que não tenho condições físicas, que será perigoso insistir neste tipo de coisas comigo, etc.”
“Não está mal visto, não senhor”, apreciou o Norberto, “mas não percebo uma coisa, ó Simões. Como é que tu vais ter essas crises? Isso pode durar um certo tempo, mas eles vão-te fazer exames, electrocardiogramas e outras coisas e, se não encontrarem nada, não vão ter razões para te afastar.”
“Isso é a parte de risco que existe. Como em tudo, há sempre um certo risco, uma probabilidade, maior ou menor, de não resultar. Vou jogar na probabilidade de, face às dúvidas e aos elementos contraditórios que lhes surgirem, os médicos jogarem pelo seguro, não se arriscarem, preferirem pôr no relatório que eu não devo fazer exercícios ou ser submetido a esses esforços”, e avançou com mais uma garfada de batatas fritas, enquanto os outros deglutiam pensativamente.
O único manifestamente ainda não convencido dos resultados desta actuação era o Carreira, que pôs uma dúvida.
“É pá, desculpa lá, mas continuo a não ver como é que um médico, recebendo embora informações verbais ou escritas, vai aceitar essas informações como traduzindo uma verdade que é contraditória com aquilo que ele verifica através de exames técnico-científicos. Parece-me que vocês todos estão a subestimar os médicos militares. São tipos batidos em todas as golpadas desse género e não vão cair assim com essa facilidade que tu pensas.”
“Eu sou mesmo doente, é verdade. Esta é a ideia geral. Quanto aos pormenores, só vos garanto é que tenho os meus trunfos e que irei lançar a confusão na cabeça dos doutores.”
“Quer dizer que vamos ficar no suspense? Conta lá, conta como é para a gente fazer o mesmo”, pediu o Pais.
“Isso ia complicar o sistema do Simões e torná-lo, até, ineficaz. Já pensaste o que era aparecerem uma data de cardíacos? Aí é que os gajos começavam a desconfiar.”
“O Norberto tem razão. Vocês gozaram um bocado com a minha modalidade de não fazer nada, de não me cansar, sorna como lhe chamou o Rolando, mas garanto-vos que há-de dar resultado. É o Realinho, o filho da minha mãe que o garante.”
“Também me parece. Se todos fizessem sorna, tinham de fechar esta merda.”
Todos se riram com a piada do Rolando. Mas ele continuou mais a sério.
“Parece-me que esta modalidade do Realinho não é de desprezar. Só tem um inconveniente. Tem de ser adoptada por muitos para dar resultado. Se for só o Realinho, ou mais dois ou três, não dá nada. Eles são topados e isolados, sem outro efeito que não seja levarem na corneta.”
“Subverter isto tudo? Isso é perigoso. É uma forma colectiva de contestação. Ponham-se a pau com essa ideia.”
O Norberto, o Simões e o Rolando miraram o Carreira com curiosidade, parando de comer. Os outros também lhe lançaram um olhar interrogativo. Só eu continuei a comer, sem levantar a cabeça,  alheio ao alcance desta intervenção do ex-milícia.
“Estou, apenas, a fazer de advogado do diabo”, justificou-se o Carreira, manifestamente atrapalhado com os olhares que lhe lançaram.
O facto é que a conversa parou ali, agarrando-se todos à tarefa de comer. Como quem de repente se vê sozinho no meio de um silêncio incómodo, decidi falar.
“Eu estou um bocado desgostoso porque deixei ainda a meio  um curso a que me agarrara com unhas e dentes. Andava no 3°ano de Filologia Românica. Não sei, ainda, o que seria no futuro, se professor, se escritor, se outra coisa qualquer. Mas o que é facto é que eu estava a gostar daquilo e tenho pena de o ter deixado. Esforcei-me muito por fazer o 7°ano, marrei que me fartei. A minha preocupação era vir para a tropa como oficial. Eu sabia que tinha de vir, embora estivesse esperançado que não era já agora, que me deixavam acabar o curso. Não sucedeu, paciência. Não percebo é a vossa fobia em relação à tropa.”
“Não percebes?! Por onde é que tens andado, pá? Com certeza, andaste noutro mundo”, atirou-me o Pais no meio de uns gafanhotos.
“Também compartilho a estranheza do Aiveca pela vossa fobia. E podes estar certo, Pais, que não tenho andado por outro mundo”, o Carreira preparava-se para continuar, mas o Norberto interpôs-se.
“Vocês são é parvos. Então vimos para aqui perder três ou quatro anos dos melhores da nossa vida, passamos a ter milhentas possibilidades de levar um tiro nos cornos, salvo seja, podemos voltar à vida civil sem braços, sem pernas, sem olhos, sem colhões, não se riam, é pá, por tudo isto vocês acham que devemos gostar desta porra?”, e o Norberto abria os olhos, mais salientes ainda na cara branca, tingida de vermelho pela emoção e pelo vinho.
“Acho que interpretaste mal aquilo que eu e o Aiveca dissemos”, avançou o Carreira cautelosamente.
“Eu penso o mesmo que o Norberto”, disse o Simões.
“E eu também”, acrescentou o Realinho.
Ficou a pairar no ar uma certa falta de à-vontade. Eu estava encarnado que nem um pimento, as orelhas em brasa, e mantinha o copo da cerveja entre os lábios, como quem procura primeiro o que há-de dizer. O Rolando, no entanto, que já terminara de comer, cachimbo entre os dentes, olhava apreciativamente para todo o grupo, em especial para mim, e acabou por me interpelar de uma forma serena e conciliadora.
“Tu disseste que és de Lisboa, não é?”
“Sou. Isto é, nasci em Lisboa, mas passei a maior parte da minha vida na província”, mas não lhe quis dizer por que locais dessa província andara.
“Se calhar o problema é esse. Deves andar arredado daquilo que preocupa toda a malta da nossa idade, que é ir à guerra e poder morrer. É muito difícil para nós, de qualquer modo, vir para este casarão e obedecer a tudo o que nos quiserem mandar, nem que seja levar no cu.”
“ Aí pára! Isso não faço eu nem que me fuzilem!”
“Bocas, só bocas, ó Realinho. Até aposto que fazias isso e muito mais só para não te encherem a barriga de chumbo.”
“Espera aí, ó Simões. Deixa-me continuar a vender o meu peixe a este gajo”, e o Rolando virou-se novamente para mim, “o que eu queria dizer é que não podemos aceitar de braços abertos esta vida que vamos ter nos próximos anos. Porque não vai ser um mar de rosas, porque nada nos promete de bom. Pelo contrário. Não me digas que não concordas comigo. Como é que não consegues compreender que a malta não goste disto e procure safar-se desta ou daquela maneira?”
  Falou sempre calmamente, fitando-me sem hostilidade. Parecia mais empenhado em convencer o interlocutor do que em atacar as suas opiniões. Pegou novamente no cachimbo e na bolsa de tabaco e procedeu calmamente aos preliminares de todo o fumador de cachimbo. Já tinham vindo os cafés. Todos, menos eu, pediram bagaços para acompanhar. O ambiente geral no restaurante era de à-vontade e descontracção, ruidoso, os ocupantes das mesas já tinham almoçado, bebido bem. Estava-se na altura das piadas e das anedotas, das gargalhadas sonoras e prolongadas, do bater estrepitoso nas chochas e nas bordas das mesas. De momento a momento, fazia-se um silêncio, com um zumbido estilo mosca como fundo, mas que eram as conversas, o contar da anedota na fase da atenção, coincidente em todas as mesas. Mas logo surgia a gargalhada em coro, numa mesa primeiro, depois na outra, e na outra, ou em duas ou três ao mesmo tempo, parecendo obedecer a uma cronometragem. E era a cronometragem da anedota picante, do palavrão metido oportunamente, da obscenidade relatada com todos os matadores, a preceito. Tudo curto, necessariamente jogando no imprevisto e no peso das próprias palavras e situações. Todos se sentiam bem e estavam contentes, pelo menos aparentemente. Apenas um casal de meia-idade, em mesa ao canto da sala, parecia incomodado com o ambiente efusivo à sua volta. Comiam em silêncio, olhando reprovadoramente sempre que rebentavam as gargalhadas, e trocavam entre si olhares de concordância cúmplice, como quem já não necessita falar sobre o que os rodeia, para não se repetirem desnecessariamente um ao outro. Essa identidade de pensamentos sobre o que se passava, por um lado, a habituação a situações dessas, que, certamente, testemunhavam ciclicamente, fazia-os continuar a comer silenciosamente, embora com profundas críticas estampadas no rosto.
Eu, que estava de frente para o casal, já notara as recriminações silenciosas. Disse ao Rolando, que estava do outro lado da mesa:
“Há um casal de velhos atrás de ti que está farto de nos rogar pragas. Não te vires agora que eles estão a olhar para cá. Os olhos deles parecem setas. Não nos querem matar, com certeza, mas davam-nos umas boas palmadas, se pudessem. Devem sentir-se como num templo profanado. Se tivessem a coragem de Jesus Cristo, expulsavam-nos daqui a pontapé. Mesmo assim, não sei se não chamarão o criado para nos pôr na rua.”
Rolando ouvia-me de cachimbo entre os dentes, no meio de outras conversas que se tinham repartido por toda a mesa. Com a excitação da comida e da bebida, cada um queria contar a sua, sem dar grande importância ao que os outros diziam. Daí que, os temas da conversa que fora comum até aí passassem a ser base de diálogo entre os parceiros mais próximos ou mais a geito para ouvirem o que cada um queria, à viva força, dizer.
“É curiosa a tua comparação”, Rolando falou por entre dentes.
Não disse nada, mas interroguei-o com o olhar.
“Não é pelo seu sentido metafórico, que é capaz de condizer com o que se está a passar. Penso é que ninguém se lembraria de fazer essa comparação, no meio das mais desbragadas conversas que nos rodeiam.”
Corei mais uma vez, ficando visivelmente atrapalhado. No entanto, como quem se antecipa a uma pergunta iminente, com receio de ficar mais atrapalhado ainda, avancei:
“Veio-me à ideia. Se calhar, são influências da minha formação religiosa. É que eu andei num colégio de padres. Na verdade, não me ocorreu outra imagem que me fizesse lembrar esta vozearia tremenda, os risos, o tinir dos talheres e o olhar justiceiro daqueles dois defensores do cerimonial sagrado que, com certeza, representa para eles o almoço a dois, joelho contra joelho.”
“Está bem apanhado, sim senhor.”
O Rolando quedou-se pensativo, de olhar no vazio, mas eu interessei-me em continuar a conversa.
“Compreendo que as pessoas habituadas a virem almoçar aqui todos os dias, que serão na maior parte dias de sossego, compreendo que se sintam aborrecidas com tanto barulho, tanto mais que o vocabulário não é do mais vernáculo. As pessoas que trabalham encontram aqui uma forma de repouso, uma compensação à agitação das suas actividades no trabalho, uma forma de abstracção das chatices e aborrecimentos que lhes são impostos nas suas relações obrigatórias com os outros.”
   “Estás-me a sair um bom filósofo. Mas essa capacidade de compreensão não a tiveste há pouco, quando se falou aqui da tropa, dos incómodos e chatices que ela traz a todos, até a ti. Também disseste que te alterou os planos de estudo, não é verdade? Porque é que aceitas, então, passivamente esse incómodo e pareces não compreender que haja quem não os possa aceitar assim como quem chupa um rebuçado?”.
Rolando apontava-me o cachimbo com ar inquisitorial, mas retraiu-se quando viu que eu corava.
“Não leves a mal, que isto é apenas um gesto de estilo.”
“Se calhar exprimi-me mal há pouco. Não pretendia recriminar ninguém. Não queria criticar-vos, era apenas dizer o que eu próprio sinto. E é verdade que tenho alguns inconvenientes com isto tudo, mas não sinto fobia nem revolta. Aceito as vossas reservas e compreendo-as, não tenho absolutamente nada contra elas.”
“Mas olha que há quem tenha.”
As conversas acabaram e todos se levantaram quando alguém avisou que estava na hora. Cerca das duas da tarde, formou-se uma grande fila à frente de uma das portas que dava acesso ao quartel. 

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