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6 de janeiro de 2011

34-Fomos ao Comodoro

Ao meio dia telefonei ao Norberto. Há meses que não o via, só uma vez ou outra no hospital, mas já há muito tempo.
- Queres ir dar uma volta esta noite? Ou tens que ir ao hospital amanhã?
- Não, não tenho. Olha, ainda bem que me ligaste porque precisava de falar contigo. Mas aonde é que estavas a pensar ir?
- Não vou aos fados, pá, nem penses. Quero ir ao Comodoro, é um sítio porreiro e já tenho saudades daquilo.
- Ui, isso é muito chique, de gente fina! Há outros sítios de gente mais como nós. Além disso, não podes antes encontrar-te comigo esta tarde?
Falava alto pra caraças, porra. E não estava a perceber as reticências daquele gajo. Já tínhamos andado os dois por vários lados, umas vezes onde ele queria, outras onde eu dizia. Desta vez tinha de ser eu a decidir.
- Não, não pode ser. Já tenho o meu esquema montado, tenho uns filmes para ver e estou mesmo decidido a ir ao Comodoro. E fala-me mais baixo, pá, tirei os tampões para te ouvir. Os tímpanos parece que estão melhor, não me dês cabo deles.
Ficou um bocado calado.
- Desculpa lá. Então, está bem, vamos ao Comodoro. Mas, olha, a Júlia vai contigo?
- Não. A miúda tem que estudar, além de que não quero que ela se perca nestes antros por onde eu ando.
- Acho bem.
Encontrámo-nos à meia-noite junto ao D. Maria.

Este Comodoro de que falo ficava ali. Esta é uma fotografia antiga, não sei se, na altura, ele já existia. Mas era ali naquela zona, na Praça D. João da Câmara, do lado esquerdo o teatro D. Maria e à direita a estação do Rossio.

Não encontrei dele nenhuma fotografia mais recente. Há vários meses, quando fui a Lisboa para um jantar no restaurante Colina com meus ex-companheiros de armas na Guiné, saímos muito “animados” e decidimos ir ao Comodoro. Caíram-nos os qualquer coisa ainda ao chão quando olhámos para onde ele devia estar e vimos uma loja de artigos ópticos! Ficámos defraudados. Fui, depois, à internet e havia lá informação sobre ele. Que: “Ambiente In”. Boa! Ainda se mantinha. Que: “Serviços fora de horas”. Boa! Era o que se queria. Que: “Acesso para deficientes Não”. Tá bem, já não me admirava (vão ver a seguir porquê), que se lixe. “Recomendado a crianças”. Porra! Isto é que não batia certo, qualquer coisa estava errada. Ainda vi que havia um telefone - 213 464 996 – e liguei. Mas a menina da PT disse-me uma data de vezes, com voz meiga de gravador, que “esse número não se encontra atribuído, tente novamente, piu, piu, piu…”. Era certo, então: o Comodoro que eu conheci já não existia, parece que lhe tinham dado a volta, aquela coisa de recomendação para crianças já não era a mesma coisa, mas nem assim.
Sinceramente, se alguém que me leia souber o que foi feito dele agradeço que me diga. Gostava de saber o que fizeram a essa minha lembrança.

Fomos até lá e tocámos à campainha. O porteiro abriu-nos a porta solicitamente, pareceu-nos. Mal. Depois de nos mirar de alto a baixo com ar de inquiridor, disse-nos com ar de cepo:
- Não podem entrar. É reservado.
O Norberto ficou calado, mas eu perguntei-lhe em voz alta:
- O que é isso de reservado?
- É só para clientes e seus acompanhantes.
Levantei mais a voz:
- Mas eu sou cliente. Vim aqui várias vezes antes de ir para a guerra. Andei lá a defender isto, mas agora que vim de lá ferido já não sou cliente, é?
O meu amigo só me dizia deixa lá, deixa lá, vamos a outro lado. Mas eu vi que o porteiro ficara roxo de enrascado e já me falava como lírio do campo.
- O senhor desculpe, mas são as normas. Se conhece alguém...
- Claro que conheço. Conheço o Zeferino do bar e o gerente.
Não conhecia nada o gerente, só de vista e nunca tinha falado com ele. Mas o Zeferino sim, várias horas passara sentado no bar e tínhamos tido conversas. O típico barista confidente de whiskys e gins tónicos.
Pareceu-me que o meu falar alto já tinha chegado lá dentro pois apareceu à porta um tipo de fatinho azul e todo engravatado. Era o gerente, topei-o.
- O que se passa, Romeu?
Está calado Romeu, agora sou eu, pensei. Não o deixei falar.
- Eu e o meu amigo viemos feridos da Guiné, queríamos entrar, mas aqui o senhor Romeu diz que não pode ser. Eu sou alferes da companhia do capitão Braga. Vim aqui várias vezes com ele, lembra-se?
Foi um golpe que eu sabia ser certeiro. O homem ficou sério.
- Ah, o Braga, claro que me lembro. Sei que morreu lá, coitado. 
Não se havia de lembrar, não. E a morte dele custou-lhe muito, sim, sim, também me parecia. Grande sacana é que ele era. Virou-se para o porteiro:
- Romeu, deixa estes senhores entrar.
Conduziu-nos até ao bar.
- Zeferino, serve uma bebida a estes senhores. É por conta da casa. Estejam à vontade.
Afastou-se e nós sentámo-nos. O Zeferino chegou-se e perguntou-nos o que queríamos. Ri-me para ele:
- Ó Zeferino, não me digas que te esqueceste das minhas preferências.
Olhou-me interrogativamente primeiro, mas depois fixou-me, abriu-se num sorriso e estendeu-me a mão.
- Como está, senhor alferes? Então por cá?
- É verdade. Não como eu queria, mas estou cá.
Serviu-me um whisky com gelo e o Norberto também quis um. Falámos que tínhamos sido evacuados, sobre a guerra, da morte do Braga, ele já sabia, perguntei-lhe pela mulher e pelos filhos... Enfim, coisas da nossa normalidade e do costume. Quando os copos estavam a ficar vazios perguntei-lhe:
- Ouve lá, o Braga não deixou aí nenhuma garrafa?
- Não há nenhuma. Se deixou, sabe como estas coisas são, já desapareceu.
- Tá bem, abelha. Então trás uma dimple para aqui que eu pago.
- Pra que é isso, pá? Não vamos beber uma garrafa inteira.
- Claro que não, Norberto. Vou fazer como o Braga. Ele tinha sempre uma garrafa reservada, para quando cá vinha se servir. Esta vai ficar aqui para quando cá voltarmos. É o esquema, pá.
O Zeferino estava a servir dois tipos que se tinham chegado também ao balcão. Virámo-nos os dois para observar a sala. Eu já sabia como era. Um ou dois gajos em cada mesa, e em todas elas uma ou mais mulheres também, bem aconchegadas de vestimentas mas todas com ar de profissionais. Lá está o filho da puta do banqueiro todo enleado com três, pensei. Uma delas olhou para nós, cochichou para as outras e para o banqueiro, viraram-se todas e riram-se. Não reagi, de propósito, porque me palpitou por que se riam. Achei melhor sair dali.
- Há ali uma mesa vazia naquele canto. Não é melhor irmos para ali?
Fomos, ele com o balde do gelo e eu com a garrafa. Quando nos sentámos, dei-lhe um toque com o cotovelo e apontei-lhe com a cabeça a mesa onde estavam as gajas que se riram.
- Aquele engravatadinho com cara de fuinha é banqueiro.
- Como é que ele se chama?
- Não sei. O Braga disse-me o nome dele mas já não me lembro. Passa aqui as noites, e sabes qual é o divertimento dele?
O Norberto encolheu os ombros e abriu as mãos.
- Anda a comer as gajas, não?
- Qual quê, pá. Não vez que o gajo já está com os pés para a cova? Não sei se já fez isso esta noite. Se calhar não, ainda é cedo, e além disso ainda estão poucas na mesa dele. Agarra uma nota de mil na mão e pergunta-lhes: par ou ímpar? Aquela que primeiro adivinhar a terminação do número da nota ganha. Passa-lhe a nota para a mão, os olhos brilham-lhe de felicidade, e é aí que ele se vem, acho eu.
- Filho da puta.
- Dizes bem, também já lhe chamei esse nome. Mas há mais. Nas vésperas de embarcarmos para a Guiné, viemos todos aqui, os alferes e o capitão. Ele é que conhecia este gajo e esteve uma data de tempo a falar com ele, enquanto nós bebíamos ao balcão. Olha, nessa altura mamei quase uma garrafa inteira do Braga. Passados tempos veio ter connosco e disse-nos que o banqueiro, porque íamos para a guerra, tinha pago a cinco gajas para irem connosco - o Norberto ia beberricando o whisky e olhava-me  fixamente com olhos de camaleão - e fomos mesmo. Fomos para uma casa em Queluz, era a casa duma delas, precisamente daquela que olhou há pouco para nós e que pôs as outras a rir, eu bem a topei. Começámos com um jogo a que elas chamaram "tira". Quem perdia tinha de despir uma peça de roupa. Íamos bebendo, jogando, despindo e, passado mais de uma hora, sei lá, já não havia noção de nada,      passados uns tempos ficámos todos nus. Foi a desbunda completa, cada um com a sua pelos quartos que havia e pelos cantos da casa.
O meu amigo olhou-me reprovadoramente:
- É pá, porra, como é que vocês entraram numa merda dessas?
E eu fiquei lixado:
- Não me fodas, pá. O que é que querias que fizéssemos? Que fôssemos a Fátima rezar o terço? Tás maluco, pá. Nós já sabíamos que íamos para o mato e que mulheres era zero. Não íamos ter a sorte que os comandos tinham, uns saltos ao mato e depois era passar o tempo em Bissau para andar atrás das putas. Sim, foram meses no mato e zero, zero, assim - juntei o indicador e o polegar - tás a ver?
Ele fez-me sinal para baixar a voz. Calei-me porque vi que olhavam para nós de outras mesas. O gerente, ao pé de uma delas, estava com cara de poucos amigos. Tive tempo para pensar que tinha feito mal em mandar aquela  dos comandos. Ele tinha sido comando e também viera evacuado.
- Descupa lá, exaltei-me.
Disse-me em voz baixa:
- Eu não estou contra que vocês tivessem ido com elas. É outra coisa. Nós andamos na guerra por causa do banqueiro e outros gajos da laia dele. E dão uns rebuçadinhos, às vezes, só às vezes, que é para nós irmos para lá e estarmos lá todos contentinhos. Foi o que ele vos fez.
Sabia que ele tinha razão. Ainda estive quase a dizer-lhe que uma oportunidade daquelas não se podia perder, apesar disso. Mas não, porque me pareceu que era melhor acabar ali esta conversa.
- Ouve lá. Quando te liguei disseste-me que estavas a pensar falar comigo. O que era?
- Aqui não dá. Isto deve estar cheio de bufos e de pides. Eu levo-te a casa e no carro logo falamos.
Levantámo-nos. Levei a garrafa, entreguei-a ao Zeferino e recomendei-lhe que a guardasse. À saída fiz um aceno de despedida ao gerente. Achei que era bom para o futuro.

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