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14 de janeiro de 2011

37-Mataram o Norberto

Telefonei para casa da tia do Norberto.
- Boa noite D. Olinda. Queria falar com o Norberto.
Houve um silêncio. Respondeu-me depois uma voz de mulher chorosa.
- O meu sobrinho morreu.
Devia ser brincadeira, ou então a tia tinha-o posto na rua por qualquer motivo. Só podia ser isso. Falei-lhe meigamente.
- Desculpe lá. Eu preciso mesmo de falar com ele. Não tem o contacto dele?
Agora foi uma voz de soluços.
- Ele morreu. Mataram-no.
Pareceu-me ver as lágrimas, o soluçar eram palavras da D. Olinda a dizer-me que era verdade. Fiquei mudo por momentos, a conjecturar perseguições, prisão, torturas, assassinato. Queria saber.
- Mas como é que foi isso? Diga-me lá, por favor.
- Ele ia na auto-estrada, depois do viaduto Duarte Pacheco…
Foi aqui que (X) morreu o Norberto

O choro continuava.
- Mas o que é que sucedeu aí, D. Olinda?
- Houve um carro que se avariou, era uma mulher…
Não parava de soluçar, tive de a animar.
- Mas não chore. Diga-me lá mais. O que é que aconteceu?
- Ele parou o carro dele para ir ajudar a mulher, mas veio outro carro e atropelou-o… Ai, ai, meu querido sobrinho.
E não parava de chorar.
- Mas, ó D.Olinda, não o ajudaram?
- Não, ninguém o ajudou. Quando chegaram os da ambulância já ele não tinha pinga de sangue. Estava morto.
Lamentei-me também, procurei consolar a mulher o melhor que pude, mas não adiantou muito, o mal estava feito. Desliguei. Os meus pais e a minha irmã aperceberam-se que qualquer coisa estava mal porque me viram consternado. Expliquei-lhes o sucedido e disse-lhes que não queria jantar, que ia dar uma volta. Tinha ficado em casa nessa noite para poder falar com o Norberto, muito longe de imaginar esta desgraça. Tinha de ir arejar.
Ainda pensei ir carpir as mágoas para casa da Júlia, mas achei que não, que não devia ir massacrar a rapariga com lamentações, com ela era só para coisas boas. Desci a Rua da Alegria e, quando na Praça, vi o Maxime. Mas ali não queria entrar mais. Da última vez que lá tínhamos estado, eu e o Norberto, chateámo-nos com um gajo que nos queria oferecer uma cautela da lotaria, como prenda por termos estado na guerra. Era outro filho da puta como o banqueiro do Comodoro. Decidi-me por ir antes ao Cantinho dos Artistas. Era mais abaixo, na entrada do Parque Mayer.
Aqui (X) era a entrada do Cantinho dos Artistas. Já não existe.

Era outro tipo de gente. Artistas, boémios noctívagos com o coração na boca, mulheres cativantes, coristas esbeltas com simpatia sem salamaleques.
Havia barulho e alegria como era hábito. Pedi um bitoque e uma imperial. E fui cortando e rilhando o bife, deglutindo pensamentos amargos sobre o destino do Norberto.
- Olá. Estás muito pensativo, rapaz.
Era a Fatinha que se chegara à minha mesa. Era bailarina, como me dizia, não corista. E é verdade que era uma artista na dança, já a vira actuar no Maria Vitória, ali ao lado. Sentou-se ao pé de mim.
- Estou triste.
- Porquê? O que é que aconteceu? A Júlia zangou-se contigo?
- Não, não é nada disso. Morreu um amigo meu.
Ficou séria.
- É a merda da guerra – a voz era pesarosa – que anda a matar a juventude.
Sabia que estava sentida. Já me tinha dito que tinha um primo em Moçambique.
- Não foi na guerra. Olha, se fosse até já nem me admirava, já é normal. Foi o Norberto, ele já esteve aqui comigo, se calhar lembras-te dele.
- O quê, aquele loiro de olhos azuis grandes?
- Sim, esse.
- Mas como é que foi isso?
- Ele tinha sido evacuado por ser hemofílico. Felizmente deram por isso lá na Guiné e mandaram-no embora. Mas, outro dia, foi socorrer uma mulher que tinha tido uma avaria no carro em plena auto-estrada e veio um gajo que o atropelou. Não teve ninguém que visse a situação dele, que se esvaía em sangue, e já estava morto quando chegou a ambulância para o levar.
- Que coisa, meu Deus!
- É lixado vir morrer aqui desta forma tão estúpida, depois de se ter visto livre da guerra. Primeiro, lá do hospital mandam-no à vida, já não fazes falta, desenrasca-te agora. Depois foi a incúria e a falta de cuidados. Lá na guerra sabíamos que era normal podermos morrer, mas aqui não me entra. Não dá para entender.
Fiquei calado e sem vontade de continuar a comer. A Fátima não disse nada, primeiro, mas, olhando para o meu rosto, pôs-me uma mão no braço.
- Estás mal, vê-se na tua cara. Se calhar é melhor ires ter com a tua amiga Júlia. É capaz de te fazer bem, ficas melhor.
- Não, não vou. Não estou com disposição. Além disso, ela não vai perceber, não entende destas coisas, não vai perceber nada.
Fiquei silencioso a beberricar a cerveja. Ela já conhecia a Júlia, eu tinha estado ali algumas vezes com ela e tínhamo-nos juntado os três a conversar. Sabia que a Júlia era assim, despreocupada e pouco sensível aos problemas dos outros.
Mas a Fatinha estava sensível às minhas preocupações.
- Ouve lá, não podes ficar assim. Eu hoje já não tenho que fazer nada aqui e vou-me embora para casa. Anda comigo, estás lá melhor sem estes barulhos. Bebemos um copo, falamos e ficas mais calmo.
Era uma moça maravilhosa, pensei. Aquelas conversas barulhentas que noutras alturas me davam gozo não calhavam agora com o meu estado de espírito. Normalmente até entrava nelas também, galhofava com aquela gente porreira. Mas agora não, não estava para aí virado. Pelo mesmo motivo não estava com disposição para ir deambular por outros bares, nem ir para a casa dos meus pais e deitar-me a magicar na tragédia do meu amigo. Fui com ela.
Morava perto do Chiado, na Rua Duques de Bragança, num andar alugado perto da Livraria Morais. Tinha à frente o Teatro S. Carlos e mais ao fundo as traseiras das instalações da PIDE da António Maria Cardoso. Mas não me perturbei, fiquei bem num sofá da sala dela a beber um whisky. Estávamos os dois mudos, eu olhava para ela apreciativamente. Tinha vestido um robe e traçara a perna, pele branca e suave, pensei, os seios espreitavam-me. Sorriu-se, pareceu-me divertida com o meu olhar. Puxou de um cigarro.
- Sabes quem foi o Saint-Éxupéry?
- Sim, não sou burro. É aquele do “Principezinho”.
- Podias não saber. Nem todos sabem, ignorar não quer dizer ser burro. Eu tenho lido algumas coisas dele. É um homem interessante, que reflecte sobre a guerra.
- Quando estava em Mafra deu-me para ler o Jean Lartéguy. Li os livros quase todos dele. Mas esse não conheço.
- Ele tem um livro que é o “Piloto de Guerra”. Ele pilotou aviões na primeira guerra mundial, deves saber. Quando morreu lá um amigo, diz ele, penso que é nesse livro, que lhe custava sentir que nunca mais o poderia ver nesta vida, que não o podia ver a seu lado, que nem sequer o podia aborrecer. Custava-lhe que ele já não tivesse necessidade dele. Não é como te estás a sentir?
Não era isso.
- É uma visão egoísta, acho eu. O que me custa é que desapareceu alguém que parecia gostar de mim, era meu amigo, não era como os outros que eu acho que não gostam.
- Então e isso não é egoísmo também?
- Não sei, talvez. Mas não é só isso. Olha, quando eu era miúdo e estava no Penedo Gordo, o meu avô Salustiano morreu e eu chorei, tive pena. Mas chorei e tive pena porque vi a minha mãe e a minha avó a chorar. Gostava dele, mas era velho e a morte em si não me disse grande coisa. Mas agora não, agora e naquelas mortes que vi e vivi na Guiné, agora eu tenho consciência da morte, das suas causas. Não são por velhice.
Fiquei pensativo e ela também. Esta conversa não me estava a ajudar nada.
- Fatinha, desculpa lá mas eu vou andando. Já é tarde.
Ficou séria primeiro, mas explodiu pouco depois.
- És maluco. Não estás em condições. Ficas aqui, anda para a cama. Amanhã estás melhor.
Senti que era o que eu queria, lá no fundo. Fui com ela. Agarrou-se a mim debaixo dos lençóis.
- Hoje não estou muito capaz, percebes?
- Mas eu estou aqui, garoto, vamos ver.
A sua pele era de facto muito suave, uma maravilha os seios, de sabor enlouquecedor. A sua boca húmida fez-me despertar. Fui capaz.

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