Augusto de Jesus Santos Lima foi Administrador da Circunscrição Civil do Bijagós e foi um dos nomeados, em Julho de 1946, membros residentes do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, criado a 13 de Dezembro de 1945, antes da Revista. Este é um texto (Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume II, nº 5, 1947) crítico ao culto do iran, com um certo espírito paternalista e perspectivando modificações de acordo com as leis coloniais. Diferente do olhar interessado e compreensivo de Rogado Quintino dos costumes guineenses aqui já mostrado.
Até hoje não creio que a execução do artigo 22.° do Acto Colonial [ Nas colónias atender-se-á ao estado de evolução dos povos nativos, havendo estatutos especiais dos indígenas, que estabeleçam para estes, sob a influência do direito público e privado português, regimes jurídicos de contemporização com os seus usos e costumes individuais, domésticos e sociais, que não sejam incompatíveis com a moral e com os ditames de humanidade], reproduzido no artigo 246.° da Carta Orgânica do Império, tenha trazido qualquer dificuldade na prática. Nada custa a um português contemporizar com os usos e costumes individuais, domésticos e sociais dos indígenas, não tanto pelas regras de uma tradição algumas vezes secular mas, principalmente, pela inclinação do seu espírito e pelo seu temperamento afectuoso. É comum o português viver para eles e, até, com eles. Em todo o caso, as disposições acima citadas marcam um limite à contemporização, isto é, irá até ao ponto em que não seja «incompatível com a moral e com os ditames de humanidade». Ora, a moral vai tão discutida e desnudada com os climas e com as latitudes e os ditames de humanidade tão esquecidos e apagados na mente vária do homem de hoje que talvez não fosse despropositado que os nossos textos dissessem: com a moral e com os ditames da consciência da Nação. Deste modo, esse limite tornar-se-ia mais perceptível e deixaria de causar sérias e fundadas dúvidas a muitas centenas de nós que convivemos diariamente com o indígena.
Mas, assim mesmo, parece oportuno perguntar se a adoração e o temor do «lran», tal qual nós o conhecemos e concebemos, está de acordo com aqueles textos de lei ou se, pelo contrário e em seu nome, não temos obrigação de intervir, senão para o extirpar, ao menos para lhe reduzir a acção ao mínimo possível.
Evidentemente, a resposta é discutível. Se se considerar que o «Iran», como entendem muitos dos nossos colegas franceses, não passa de uma manifestação de carácter religioso e que os objectos que o representam não são mais do que a materialização da forma por que o concebem não há dúvida de que a sua adoração fica aquém do limite acima indicado. Neste caso, não seria de aconselhar qualquer intervenção da nossa parte.
Mas se, admitindo embora esse carácter religioso, verificamos que a sua intervenção se efectiva através de pouquíssimos iniciados (baloubeires) detentores exclusivos da sua invocação e da aplicação dos seus desígnios, num campo de acção ilimitado, em que impera o dever sinónimo de medo - então, a sua adoração excede o limite fixado, exigindo a nossa intervenção.
Aquele primeiro aspecto tem tido os seus adeptos, cultos embora mas de duvidosa sinceridade, que defendem uma indefinida liberdade porque, dizem, tudo tende para a civilização que ainda não sabem o que é nem qual seja a melhor.
Capciosa, esta argumentação. Em primeiro lugar, porque não há liberdade indefinida que seria sinónima de barbárie e própria do período da pedra lascada: depois, na dúvida do que seja civilização, admitem o absurdo do ponto morto na vida, donde contemplariam a desfilada paralela de todas as tendências de todos os grupos humanos, até descortinarem, enfim, qual se adiantara para a... adoptarem. Fantasia. Nós pensamos mais terra a terra.
O «Iran» é, idealmente, um presidente, carrancudo, omnipotente, omnisciente e intangível; materialmente, é um «depósito de interesses».
Com efeito, lá está ele presente no casamento, no nascimento e na morte. Não iria muito mal se ficasse por aí. Mas vai mais longe, muito mais longe. Na sementeira, na colheita, na pesca; na higiene, na saúde, na doença; no crime e na justiça; na guerra e na paz - esse «figurão» intervém sempre pela boca dos seus «baloubeiros». Conforme o interesse destes, assim aquele se manifesta. Está-se a ver, pois, que a tais intérpretes e executores de vontades convém o mais rigoroso segredo e não convém, em contrapartida, a mais pequena alteração desse costume.
Esse «iran» decreta que se não deve semear em tal local ou em tal tempo; que aos trabalhos tais e tais se deve opor decidida resistência passiva: Cumpre-se integralmente...
A essa mortalidade infantil - de que, com razão, tanto falamos, receamos e combatemos - ele não é estranho; não há nenhuma mulher grávida que se atreva a deixar de cumprir com as «cerimónias» que ele ordena, tanto no período da gestação, como no post-natal.
E chegamos assim à conclusão de que temos nesse «fantasma» um inimigo declarado, que opõe embargos às mais breves determinações, ocasionando paragens frequentes no caminho áspero, mas sempre ascensional do progresso das gentes incultas que nos impusemos como norma de conduta e ponto de honra. A colonização não é apenas uma ciência; é também, arte. Temos os princípios e a tendência. O muito que havemos feito está longe ainda de atingir o ponto de saturação do nosso esforço. A tendência deste antecipou o conceito actual da valorização do homem indígena.
Exercemo-lo no combate às doenças e na vacina que, se ainda não é verdadeiramente compulsória, virá a sê-lo; na ideia que assentamos sobre as maternidades e na clínica intensiva; na higiene e salubridade; no estudo, em vias de sucesso, da sua nutrição; nas estações experimentais de agricultura e pecuária; nas escolas, etc...
Ora, é isto que, hoje em dia, constitui o nosso interesse. E é isto, sem sombra de dúvida, que vimos realizando, como base preliminar do vigor físico, mental e moral do indígena.
Mas... cuidado! Atrás de cada uma espreita o «Iran», com a sua corte de «baloubeiros», prontos a resistir.
E nós, que vamos fazer? A razão, a lógica e a compreensão mandam que se lhe dê combate. Esse fantasma, esse espantalho, é ou não incompatível com a moral e com os ditames de humanidade? É ou não contrário ao espírito daqueles textos no princípio citados? Eu entendo que sim. E os meus colegas? Se estiverem de acordo, como combatê-lo?
Atacando o órgão - Iran - ou o seu suporte - baloubeiros? Aqui está outro problema.
Sobre ele, breve darei a minha opinião.
A. Santos Lima Administrador




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