Às duas da tarde havia uma grande bicha de mancebos a uma das portas que dá acesso ao quartel. Tudo à civil, de malas e sacos, era evidente que se preparavam para assentar praça e frequentar o chamado 1º Ciclo do Curso de Oficiais Milicianos, isto é, fazer a recruta, tirar a instrução básica.
As portas abriram-se e eles foram entrando para um salão de traça majestosa, com mesas e cadeiras de mogno, num estilo qualquer de luíses.
- "Os nossos cadetes mantenham-se em fila e vão entrando para aquela porta lá ao fundo. Entretanto vão tirando a roupa."
Os "nossos cadetes" tinham entrado para o salão quase em silêncio, influenciados pelo ambiente de penumbra e majestade, pelo sentimento de expectativa do imediato, dado que, quanto ao futuro, estava tudo já traçado. Era ali que iriam ficar, durante alguns meses pelo menos. Alguns militares fardados, das mais variadas patentes e vários distintivos, ajudavam a dar àquele salão um estatuto de respeitabilidade para os recém-chegados.
Levantou-se um certo burburinho, em surdina, quando foi anunciado para se despirem. E houve um deles mais afoito que perguntou:
- "Temos que nos despir todos? Temos de tirar a roupa toda?!..."
- "Claro que é! Se fosse só para ver as perninhas era só arregaçar as calças... Queremos saber se têm os colhões lá no sítio e se está para aí alguma menina disfarçada!", e o militar que assim falava olhou para os cadetes com ar de poucos amigos.
- "Quando chegar ao pé daquele cabrão meto-lhe os tomates na mão para ele ver se pesam ou não", rosnou o Simões.
- "Foda-se que já estou farto de fazer strip-tease por causa desta porra da tropa!", e o Realinho começou a despir as calças.
Encontravam-se todos juntos na bicha: Simões, Realinho, Carreira, Norberto, Orlando e Aiveca. Este parecia um bocado atrapalhado, mas, tal como os outros, lá se foi despindo. O barulho, resultante de roupas e sapatos a cair, de comentários jocosos e pouco simpáticos para o tipo que tinha dado a ordem, aumentou, deixando de ser surdina.
- "Caluda!", berrou o indivíduo. "Isto aqui não é nenhuma casa de putas! Ninguém lhes disse para falarem. Os nossos cadetes agarrem na roupa e nos sapatos e pôem-se em bicha de pirilau. Ninguém sai da bicha, ouviram? Nem que esteja a ser enrabado pelo vizinho de trás."
Era um tipo de meia altura, bigodinho à passa-piolho, tão moreno que mais parecia preto. Tinha um blusão de cabedal verde, com dois galões, um largo e um estreito. Dizia isto tudo sem se rir.
Uns sorriram-se pela piada, outros remoeram palavras ofensivas e olharam-no de soslaio, mas calaram-se todos. E puseram-se em bicha... de pirilau, todos completamente nus.
- "Olha lá essa merda, pá...", e o Realinho deu com os calcanhares nas canelas do Norberto. "Chega-te para lá."
- "É pá, está descansado que eu não gosto."
Uns encavacados, outros completamente à vontade, como se estivessem a passear no jardim, foram, uma um, entrando na tal sala que ficava no outro extremo do salão, Lá encontrava-se um tipo sentado a uma secretária que olhava os recém-chegados, um de cada vez.
- "Encha o peito de ar... Faça força. Vire-se de costas."
Eram medidos e pesados. Tomava notas, dava ordem para vestirem só as calças e passava-os para outro indivíduo.
Este mandava-os sentarem-se num banco comprido, lado a lado. Vinha outro com uma data de agulhas.
- "Isto não doí nada", e, pim-pim-pim, espetava uma nas costas de cada um. Vinha outro com uma seringa enorme e dava uma esguichadela em cada um dos sentados.
- "O que é isto?", arriscou o Norberto.
- "É vacina contra todos os males. Os nosso cadetes não vão ter doença nenhuma", explicou o esguichador.
Mandaram que vestissem a camisa e passassem para outra mesa. Aí perguntavam o nome e davam um número.
- "Passem aquela porta e esperem lá fora".
Era um corredor enorme: tinha alguns cem metros de comprimento e aí uns cinco de altura. Aiveca nunca tinha visto nada assim. Em altura assemelhava-se à nave central de uma catedral. Mas, é claro, seria uma nave excessivamente comprida, como se o altar estivesse lá ao fundo, mal se vendo, e os devotos aqui, sem ouvirem o que o padre diz. De um lado e de outro havia portas de ombreiras majestosas, altas e espaçosas; havia também escadarias, de um lado e de outro, mais ou menos a meio do corredor. Tudo em pedra, em grandes blocos de pedra. No chão, grandes lajes. O mesmo nos degraus e corrimãos das escadarias. Até meia altura das paredes placas de mármore polido. No extremo onde se encontravam os cadetes, na expectativa do novo passo a dar para a sua integração, havia, a meio da parede, do lado direito, uma placa de mármore encravada no cimento e argamassa caiados que cobriam a metade superior da parede. A placa tinha gravada uma palavra francesa - "Lacouture".
- "Os "nossos cadetes", agora, agora vão tirar um curso de costura". O Realinho apontou para a placa, com uma cara muito séria, imitando o tipo autoritário e moreno que tinham encontrado logo à entrada.
Toda a malta se riu. Os cerca de trinta ou quarenta cadetes estavam todos inspeccionados. Tinham-se agrupado no princípio do corredor e estavam à espera do próximo acto. Grande parte estava já vestido novamente, alguns abotoavam os últimos botões ou apertavam o cinto ou os sapatos.
- "Este Realinho é mesmo palerma", disse o Carreira. "Isto não quer dizer costura".
- "Ouve lá, pá: pensas que eu sou algum analfabeto, ou quê?! "Couture" em franciú quer dizer costura. O meu sétimo ano ainda me deu para isso."
- "Quer dizer, mas isso aí, tudo pegado, "Lacouture", tem outro significado". O Carreira falava a sério.
- "Pois não sei, pá. Se "couture" é costura, "Lacouture" é a costura, não é? É ou não verdade?". O Realinho deu meia volta interrogando os presentes. "Tu, que és de românicas, diz lá se é ou não verdade".
Aiveca percebia que o Realinho estava a brincar com aquilo, mas também estava um bocado intrigado com aquele nome ali na parede. A verdade é que aquilo, aquele corredor, não era nada uma sala de costura. Para ele, tinha sido um alívio poder vestir-se novamente, e deixar de ser mirado e remirado, à frente e atrás. Já quando fora a primeira vez à inspecção, em Setúbal, fora a mesma vergonha. Agora, novamente. Mas, passado isso, estava satisfeito e descansado. Pensou que era melhor alinhar na brincadeira.
- "É verdade, sim senhor. Vem no Larousse, página 90, linha 69."
Foi a gargalhada geral. Aiveca riu também, de satisfação. O Carreira é que já não estava a gostar nada, pois reparou que estavam a gozar com ele.
- "Ah, grande Aiveca!", o Norberto deu-lhe uma palmada nas costas. "Dizes poucas, mas quando saem têm piada".
- "Essa da linha 69 está bem metida", o Simões ria-se apoiado ao Realinho.
- "É a melhor linha para costurar", disse este.
- "...e a melhor posição", acrescentou o Simões.
(...)
Saiu, finalmente, o último cadete da sala de inspecção. Atrás dele vinha um tipo com galões em forma de cunha nos ombros. "Deve ser sargento", pensou Aiveca, "já tenho visto aqueles galões em filmes de guerra".
- "Os nossos cadetes formem duas filas e depois venham atrás de mim. Vá, os dois primeiros aqui à minha frente. Depressa que temos pouco tempo".
As filas foram feitas, de uma forma casual e desordenadamente. O único critério era ficar junto dos agora conhecidos, das amizades acabadas de fazer.
- "Ó nossos cadetes, isto parece uma montanha russa, aos altos e baixos. Vá lá, os baixos para a frente e os altos para trás. O nosso cadete aí no meio da fila da direita... está aí escondido no meio de dois matulões... venha cá para a frente!... Vá depressa, mexam-se!
Nova mexida, confusões e barafunda. (...)
- "Assim está melhor. Escapa. Agora vamos lá ao depósito de fardamento, onde lhes será entregue a farda número um e a farda número dois, que é o uniforme de trabalho. Depois de receberem os fardamentos, os nossos cadetes esperam no corredor, que é para lhes serem indicadas as casernas respectivas. Todos perceberam?... Bem, parece que sim. Venham atrás de mim, todos em fila.
(...)
- "Isto é uma tropa fandanga. Olha-me para esta cambada de nabos, a começar por ti. Vocês, metidos nessa merda dessas vestimentas e a desfilarem ali no meio dos saloios de Mafra deviam pô-los a mijar de rir."
Aiveca mirou-se e remirou-se e acabou por dar razão ao Pais. Era raro aquele cuja farda número um lhe estava mais ou menos a quadrar com o físico. Quase todas largonas, desproporcionadas. Ou nadavam dentro das calças ou pareciam miúdos a provar o casaco do pai.
O Pais falara assim porque se recusava a vestir a farda.
- "Eu sei que vou ter de andar com esta merda vestida, mas, ao menos, só a visto depois de a mandar arranjar quando for a casa. Não quero fazer triste figura, e ainda por cima com uma coisa que tenho de aceitar contrariado."
- "Também me parece, pá. Vamos agora andar aí feitos palhaços, é?". E o Norberto, dentro das calças, esticava uma cintura onde cabia outro igual a ele. "Eu também não vou vestir isto assim".
À roda, toda a gente concordou, de uma maneira ou doutra. Cada um deu mostras da sua figura ridícula com as fardas distribuídas pelo cabo quarteleiro aos soldados-cadetes, após fazer uma apreciação rápida das medidas do físico de cada um.
- "Isto é a olhómetro, senhor cabo?". O Realinho levantara logo esta questão ao receber as fardas.
- "O nosso cadete desculpe, mas eu não posso estar aqui a fazer provas a cada um. O melhor que têm a fazer é arranjarem alguém lá em casa que faça uns ajustamentos no fardamento".
É claro que o "senhor cabo" tinha razão, toda a gente achava que sim. Mas também todos aqueles que se sentiam ridículos achavam que não deviam passear-se com tais adornos.
Não havia grandes problemas quanto à farda de trabalho, a número dois. Era de caqui verde, calça e camisa, com um barrete esquisito, mas tá bem. O pior era a farda número um, a tal de passeio: calças e blusão cinzento, camisa e gravata, e um boné com pala dura. Esta, sim, é que os fazia ridículos, parecendo polícias mal jeitosos, balofos.
- "Os nossos cadetes têm azar. O próximo curso, daqui a três meses, vai ter já dos novos fardamentos, verdes, calça e blusão, e boina castanha".
- "Obrigadinho, ó senhor cabo, mas isso não me serve de consolo. Os gajos não me deixam ir para casa se eu lhes disser que não gosto desta farda, e que só quero vir para a próxima."
Ninguém achou piada a esta saída de alguém do meio do grupo.
(...)
- "Os "nossos cadetes", agora, agora vão tirar um curso de costura". O Realinho apontou para a placa, com uma cara muito séria, imitando o tipo autoritário e moreno que tinham encontrado logo à entrada.
Toda a malta se riu. Os cerca de trinta ou quarenta cadetes estavam todos inspeccionados. Tinham-se agrupado no princípio do corredor e estavam à espera do próximo acto. Grande parte estava já vestido novamente, alguns abotoavam os últimos botões ou apertavam o cinto ou os sapatos.
- "Este Realinho é mesmo palerma", disse o Carreira. "Isto não quer dizer costura".
- "Ouve lá, pá: pensas que eu sou algum analfabeto, ou quê?! "Couture" em franciú quer dizer costura. O meu sétimo ano ainda me deu para isso."
- "Quer dizer, mas isso aí, tudo pegado, "Lacouture", tem outro significado". O Carreira falava a sério.
- "Pois não sei, pá. Se "couture" é costura, "Lacouture" é a costura, não é? É ou não verdade?". O Realinho deu meia volta interrogando os presentes. "Tu, que és de românicas, diz lá se é ou não verdade".
Aiveca percebia que o Realinho estava a brincar com aquilo, mas também estava um bocado intrigado com aquele nome ali na parede. A verdade é que aquilo, aquele corredor, não era nada uma sala de costura. Para ele, tinha sido um alívio poder vestir-se novamente, e deixar de ser mirado e remirado, à frente e atrás. Já quando fora a primeira vez à inspecção, em Setúbal, fora a mesma vergonha. Agora, novamente. Mas, passado isso, estava satisfeito e descansado. Pensou que era melhor alinhar na brincadeira.
- "É verdade, sim senhor. Vem no Larousse, página 90, linha 69."
Foi a gargalhada geral. Aiveca riu também, de satisfação. O Carreira é que já não estava a gostar nada, pois reparou que estavam a gozar com ele.
- "Ah, grande Aiveca!", o Norberto deu-lhe uma palmada nas costas. "Dizes poucas, mas quando saem têm piada".
- "Essa da linha 69 está bem metida", o Simões ria-se apoiado ao Realinho.
- "É a melhor linha para costurar", disse este.
- "...e a melhor posição", acrescentou o Simões.
(...)
Saiu, finalmente, o último cadete da sala de inspecção. Atrás dele vinha um tipo com galões em forma de cunha nos ombros. "Deve ser sargento", pensou Aiveca, "já tenho visto aqueles galões em filmes de guerra".
- "Os nossos cadetes formem duas filas e depois venham atrás de mim. Vá, os dois primeiros aqui à minha frente. Depressa que temos pouco tempo".
As filas foram feitas, de uma forma casual e desordenadamente. O único critério era ficar junto dos agora conhecidos, das amizades acabadas de fazer.
- "Ó nossos cadetes, isto parece uma montanha russa, aos altos e baixos. Vá lá, os baixos para a frente e os altos para trás. O nosso cadete aí no meio da fila da direita... está aí escondido no meio de dois matulões... venha cá para a frente!... Vá depressa, mexam-se!
Nova mexida, confusões e barafunda. (...)
- "Assim está melhor. Escapa. Agora vamos lá ao depósito de fardamento, onde lhes será entregue a farda número um e a farda número dois, que é o uniforme de trabalho. Depois de receberem os fardamentos, os nossos cadetes esperam no corredor, que é para lhes serem indicadas as casernas respectivas. Todos perceberam?... Bem, parece que sim. Venham atrás de mim, todos em fila.
(...)
- "Isto é uma tropa fandanga. Olha-me para esta cambada de nabos, a começar por ti. Vocês, metidos nessa merda dessas vestimentas e a desfilarem ali no meio dos saloios de Mafra deviam pô-los a mijar de rir."
Aiveca mirou-se e remirou-se e acabou por dar razão ao Pais. Era raro aquele cuja farda número um lhe estava mais ou menos a quadrar com o físico. Quase todas largonas, desproporcionadas. Ou nadavam dentro das calças ou pareciam miúdos a provar o casaco do pai.
O Pais falara assim porque se recusava a vestir a farda.
- "Eu sei que vou ter de andar com esta merda vestida, mas, ao menos, só a visto depois de a mandar arranjar quando for a casa. Não quero fazer triste figura, e ainda por cima com uma coisa que tenho de aceitar contrariado."
- "Também me parece, pá. Vamos agora andar aí feitos palhaços, é?". E o Norberto, dentro das calças, esticava uma cintura onde cabia outro igual a ele. "Eu também não vou vestir isto assim".
À roda, toda a gente concordou, de uma maneira ou doutra. Cada um deu mostras da sua figura ridícula com as fardas distribuídas pelo cabo quarteleiro aos soldados-cadetes, após fazer uma apreciação rápida das medidas do físico de cada um.
- "Isto é a olhómetro, senhor cabo?". O Realinho levantara logo esta questão ao receber as fardas.
- "O nosso cadete desculpe, mas eu não posso estar aqui a fazer provas a cada um. O melhor que têm a fazer é arranjarem alguém lá em casa que faça uns ajustamentos no fardamento".
É claro que o "senhor cabo" tinha razão, toda a gente achava que sim. Mas também todos aqueles que se sentiam ridículos achavam que não deviam passear-se com tais adornos.
Não havia grandes problemas quanto à farda de trabalho, a número dois. Era de caqui verde, calça e camisa, com um barrete esquisito, mas tá bem. O pior era a farda número um, a tal de passeio: calças e blusão cinzento, camisa e gravata, e um boné com pala dura. Esta, sim, é que os fazia ridículos, parecendo polícias mal jeitosos, balofos.
- "Os nossos cadetes têm azar. O próximo curso, daqui a três meses, vai ter já dos novos fardamentos, verdes, calça e blusão, e boina castanha".
- "Obrigadinho, ó senhor cabo, mas isso não me serve de consolo. Os gajos não me deixam ir para casa se eu lhes disser que não gosto desta farda, e que só quero vir para a próxima."
Ninguém achou piada a esta saída de alguém do meio do grupo.
(...)
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