Ia acesa a guerra entre ·os pretos de Antula e do Intim, ambos por. «balantas» das regiões vizinhas que tinham no emprego das armas a sua ocupação favorita. Bastava um motivo aparentemente fútil para os precipitar numa luta feroz e desapiedada que só conhecia tréguas quando os adversários já exaustos, apagada a sede de sangue, satisfeito o prazer mórbido da carnagem e do choque corpo-a-corpo a revelar singulares atitudes de força e destreza, voltavam a pendurar as armas e se abandonavam novamente à preguiça duma vida descuidosa, Só desta maneira os «papéis» do Intim e de Antula sabiam retaliar agravos. Desta vez, porém, ninguém soubera ao certo como aquilo começara. Diziam os rumores chegados à Praça pela boca de um ou de outro indígena desembarcado das canoas varadas no lodo, empregadas na venda de água à população, que uma mulher fôra morta na presença do companheiro por rapazes ainda incircuncisos. Os brancos que habitavam a vila defendida pela muralha, reconstituindo a cena, imaginavam o preto que perdera a mulher, atónito e desvairado, varar os matos, o passo acelerado, tendo aos calcanhares os criminosos e nos ouvidos a algazarra da perseguição. Nem a fera traquejada por caçador se deslocaria pela terra ardida do sol, semeada de obstáculos, com tamanha leveza e facilidade. Vencida a distância que o separava dos limites do território ocupado por gente do seu clan, o homem sentira novas energias a refrescar-lhe os músculos e, apressando o passo, lançara-se em louca correria como zagaia despedida das mãos robustas de um guerreiro. Não dera pelas aldeias nem pelos rostos curiosos que o interrogavam à sua passagem. Chegara esgotado à cubata do chefe e com voz sem timbre, a respiração anelante dominada pelas pulsações irregulares do coração, os lábios secos, joelhos dobrados a lembrar o corredor da Maratona, dera a notícia do crime em meia dúzia de palavras tão debilmente pronunciadas que só ouvidos habituados aos longos silêncios do mato as poderiam compreender.
Do baluarte da «Balança» ao fortim Nosolini cabeças de curiosos contemplavam as cenas de sangue desenroladas em baixo. Eram espectadores mudos da tragédia algumas dezenas de homens de côr citrina. palúdica, que ocupavam o velho presídio fortificado batido pelo ar maIigno dos pântanps, e ali tinham por missão fazer respeitar a soberania portuguesa. Para além do paredão os pretos eram, porém, senhores absolutos dos matos e não conheciam outro rival que lhes disputasse com vantagem a posse da terra. Decidiam eles livremente as suas contendas e, na apetecida glória de terçar armas com os intrusos, no. orgulho da força, levados pelo desvario de suas paixões ocasionais, iam muitas vezes no destemor da morte reptar os brancos entrincheirados nos parapeitos de pedra gretada, altos de muitos palmos, velhos de duas centúrias.
O comandante da praça, homem enérgico e decidido, resolvera pôr fim às hostilidades que prometiam prolongar-se e eram causa de perturbações na vida de brancos e mestiços obrigados a consumir água corrompida desde que os nativos arrebatados pela vertigem dos ódios impediam às mulheres de descerem ao mercado estabelecido fora da cintura de pedra que estrangulava a vila. Um destacamento saíra da praça pelo portão do Pigiguiti. Compunham-no veteranos de guerras de África, gente disciplinada diferente da outra, da que em anos remotos havia sido retirada dos cárceres do reino ou colhida entre os vadios, em Cabo Verde. Eram portadores de um ideal elevado; iam levar a mensagem de paz àquela gente desavinda. Contudo, ambos os adversários receberam os portugueses como a inimigos. Uma surriada de espingardas de pederneira deixou no terreno dois homens mortos e meia dúzia de feridos. Os soldados, refeitos da surpresa, galgaram ràpidamente em passo de carga a distância que os separava dos rebeldes. Segundo a ciência da guerra no sertão os nativos haviam entretanto desaparecido, tão ligeiros na retirada, tão subtis na fuga, que ao ouvido mais esperto não chegara o ruído da debandada para os recessos acolhedores do mato.
Foi quando Biagà fôra feito prisioneiro. Distanciava-se dos outros para visar melhor o inimigo comum. Uma dôr aguda obrigara-o a apoiar-se numa árvore. Procurou andar e cambaleou. Tentou rastejar mas a ferida a sangrar enviscou-o à terra. Como ele odiava na virilidade do seu corpo moço aquela perna varada por uma bala! Ignorado dos companheiros ficara ali trabalhado de mil angústias como uma coisa inútil, farrapo humano que se esquece entre cadáveres, carnes retalhadas, troncos desfeitos, após a refrega. Conduzido à praça de guerra. curado como se fora um dos seus, havia sido julgado e deportado para urna ilha de onde habitualmente se não voltava.
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Vinte anos tinham decorrido sobre estes tristes sucessos. Tristes para Biagà caído na luta e apartado por uma sentença de tudo quanto em moço enternecera sua alma de guerreiro. O vapor lançara ferro no porto de águas sujas, pontilhadas de dongos dóceis à remada, e de barcos à vela que se aprestavam para a largada fariscando ventos que não vinham. Os olhos ensaudados de Biagà saltitavam com volubilidade de um pormenor para outro da paisagem, alongavam-se até à cortina de árvores que barravam os horizontes, para regressarem ao amontoado de casas onde giro-girava o formigueiro humano. Quando desceu em terra cresceu nele, de rebate, desejos de abaixar-se para lhe tocar com a fronte, senti-la com volúpia na mão, acariciá-Ia entre a palma àspera e os dedos rudes do trabalho ingrato e duro das roças como coisa há longo tempo cobiçada. Não sabia exprimir de outro modo esse desejo torturante que o acompanhara no degredo, desejo invencível de regressar.
Biagà saltou, alongou o passo pelas ruas ruidosas e trepidantes da cidade e viu, pasmado, homens de sua raça com fardos à cabeça, empurrando carros, executando trabalhos vis. Mas onde crescera o seu assombro fôra ali, a cem passos da antiga fonte, no sítio em que nascia a antiga vila. A muralha já lá não estava, nem tampouco o fortim que outrora lhes barrava o passo com o uivar mortífero de suas bocas de fogo. Tinha sido ali Bissau-a-paludosa, boa estação que fora para o resgate de escravos, covil de negreiros mestres na arte de quartejar.
Em vez de soldados via gente pacífica, um estranho carnaval de tipos e cores entregues a duros misteres; em vez de árvores gigantes, do célebre «Poilão de guerra» em cuja base os homens de armas antes da luta iam depor oferendas votivas, havia prédios altos, sobradados, lojas de vitrinas aliciantes, cheias de tudo quanto um bom preto pode cobiçar; e ali adiante em lugar do carreiro abafado pela erva alta, embaraçado pelo arvoredo, seguia a estrada de bom piso por matos antes inacessíveis. O antigo guerreiro, pungido de curiosidade, confessou para consigo o espanto que o deixara boquiaberto e lhe dera o ar infeliz e acanhado de quem se sente despaísado.
Meteu pés a caminho, cruzou com gente da mesma tribo que fazia reparo no seu trajo, e ao longe distinguiu novos aldeamentos desconhecidos de seus olhos. Depois de se orientar afoitou-se por um atalho, cobriu alguns quilómetros e foi sair numa clareira em que vinte anos atrás erguera a palhota. Dali tinham desertado a mulher e o filho. Para onde? Acercou-se de uma «tagarra», observou-lhe os ramos cimeiros, e em seguida tocou-lhe o tronco com os dedos trémulos, afagou-lhe a casca rugosa com uma espécie de carícia, foi como se tivesse encontrado uma velha amizade, porque Biagà reconhecera pela árvore o local por ele escolhido para construir a palhota quando recebera a primeira mulher. Cansado, sentou-se. De olhos no vago, prazido nas relembranças, as imagens que lhe eram queridas perpassaram-lhe pela retina. Estava saciada a sede de regresso e extinta a dúvida que lhe trouxera a alma doente, pois sempre temera morrer longe, ser seputado em terra estranha sem o ritual fúnebre devido a um homem de sua condição.
Meteu pés a caminho, cruzou com gente da mesma tribo que fazia reparo no seu trajo, e ao longe distinguiu novos aldeamentos desconhecidos de seus olhos. Depois de se orientar afoitou-se por um atalho, cobriu alguns quilómetros e foi sair numa clareira em que vinte anos atrás erguera a palhota. Dali tinham desertado a mulher e o filho. Para onde? Acercou-se de uma «tagarra», observou-lhe os ramos cimeiros, e em seguida tocou-lhe o tronco com os dedos trémulos, afagou-lhe a casca rugosa com uma espécie de carícia, foi como se tivesse encontrado uma velha amizade, porque Biagà reconhecera pela árvore o local por ele escolhido para construir a palhota quando recebera a primeira mulher. Cansado, sentou-se. De olhos no vago, prazido nas relembranças, as imagens que lhe eram queridas perpassaram-lhe pela retina. Estava saciada a sede de regresso e extinta a dúvida que lhe trouxera a alma doente, pois sempre temera morrer longe, ser seputado em terra estranha sem o ritual fúnebre devido a um homem de sua condição.
A noite caíra há muito quando o ex-degredado se levantou. Vendo uma luz ao longe endireitou para lá o passo.
-Quem és tu?
-Quem és tu?
Ouvida a resposta dada na mesma língua as feições do outro distenderam-se, e foi com uma palavra amigável que lhe ofereceu de comer.
- Lembras-te de Biagá?
- Lembras-te de Biagá?
Os olhos do interpelado cresceram com pasmo visível.
- Sou eu. Como vês, estou de volta.
- Sou eu. Como vês, estou de volta.
O outro não respondeu todo entregue ao sabor da inesperada revelação.
- Dize-me para onde foram minha mulher e o filho. Sim, a Nhintimo Recordas-te dela? Não havia por aí corpo mais bem feito nem seios mais rijos ...
- Se me lembro! exclamou ele fazendo que sim com os lábios repuxados para diante e com a cabeça de cabelos já grisalhos.
Ficou um momento ensimesmado. Depois acendeu o cachimbo, deu algumas fumaças e passou-o ao hóspede.
- Depois da guerra com os de Antcla em que perdemos muitos homens, as aldeias deste lado do rio foram atacadas e muita gente levada como refém. Entre ela ia a Nhintimo e o teu filho. Nunca mais se soube o que deles fizeram os outros.
Tomou novamente o cachimbo da mão do recém-chegado e depois de espertar o lume, segredou-lhe como um desabafo:
- Era a lei da guerra, Biagá!
- Era a lei da guerra, Biagá!
O homem qce trabalhara nas roças ouviu-o e ficou calado a reflectir.
- Não há maneira de comprar bom tabaco. Por lá havia melhor…, Biagá fez um gesto vago
- Não há maneira de comprar bom tabaco. Por lá havia melhor…, Biagá fez um gesto vago
Na manhã seguinte, quando o outro apareceu embrulhando a nudez numa manta vermelha encontrou Biagá a afiar cuidadosamente a lâmina de uma espada que encontrara pendurada na palhota. Ficou a observá-lo com curiosidade, um sorriso nos lábios ao reconhecer que ninguém o faria com melhor jeito. Estava ali um guerreiro dos bons tempos das razias. Só quando Biagá passou um dos dedos pelo fio e correu o olhar ao longo da lâmina é que ele o interpelou.
- Que estás fazendo?
- Vou matá-lo. Hei-de perguntar, saber quem ma levou. Queres vir comigo?
O outro pareceu a princípio não compreender. Quando atentou, porém, no trajo de Biagá é que se recordou estar na presença de um homem que fora apartado daquela terra, que despira a camisa, experimentara os músculos do braço, firmara-se nos jarretes como um corredor que parte para uma prova de velocidade. Em seguida lançara um grito de guerra, despedira em carreira veloz pelo mato e, ao acercar-se da primeira árvore, saltou para cortar de um golpe rápido, que fez relampejar a lâmina, o ramo que lhe parecera mais robusto. Dentro de si acordara subitamente o selvagem abrasado em febre de desforra. Haviam-se manifestado deste jeito todos os complexos psicológicos que lhe faziam o carácter.
- Bom braço tens ainda, Biagá!
- Vou partir, disse este com naturalidade.
- Não. Senta-te e escuta.
- ??
- Senta-te, repetiu o outro com energia. Vê-se bem que desconheces a nossa vida. Tudo isso já passou. Que seria de ti, de mim, de todos nós se tal fizesses! Vinganças, correrias pelos matos para presar haveres dos fracos, lutar por um arrozal ou por uma mulher de lindos peitos, boa para ter filhos, são hoje histórias que se ouvem à luz das fogueiras. Agora é o branco quem decide tudo, Biagá. Os tempos mudaram. Se quiseres reaver a mulher e o filho terás de ir ao Comando apresentar a queixa. De contrário voltarás a essa terra para onde te mandaram. Ouviste? A nós, homens de outras idades, só nos resta a fogueira para aquecer o reumatismo e as lembranças.
E, ante o espanto do outro, acrescentou:
- Tem paciência. Dá cá a espada.
- Que estás fazendo?
- Vou matá-lo. Hei-de perguntar, saber quem ma levou. Queres vir comigo?
O outro pareceu a princípio não compreender. Quando atentou, porém, no trajo de Biagá é que se recordou estar na presença de um homem que fora apartado daquela terra, que despira a camisa, experimentara os músculos do braço, firmara-se nos jarretes como um corredor que parte para uma prova de velocidade. Em seguida lançara um grito de guerra, despedira em carreira veloz pelo mato e, ao acercar-se da primeira árvore, saltou para cortar de um golpe rápido, que fez relampejar a lâmina, o ramo que lhe parecera mais robusto. Dentro de si acordara subitamente o selvagem abrasado em febre de desforra. Haviam-se manifestado deste jeito todos os complexos psicológicos que lhe faziam o carácter.
- Bom braço tens ainda, Biagá!
- Vou partir, disse este com naturalidade.
- Não. Senta-te e escuta.
- ??
- Senta-te, repetiu o outro com energia. Vê-se bem que desconheces a nossa vida. Tudo isso já passou. Que seria de ti, de mim, de todos nós se tal fizesses! Vinganças, correrias pelos matos para presar haveres dos fracos, lutar por um arrozal ou por uma mulher de lindos peitos, boa para ter filhos, são hoje histórias que se ouvem à luz das fogueiras. Agora é o branco quem decide tudo, Biagá. Os tempos mudaram. Se quiseres reaver a mulher e o filho terás de ir ao Comando apresentar a queixa. De contrário voltarás a essa terra para onde te mandaram. Ouviste? A nós, homens de outras idades, só nos resta a fogueira para aquecer o reumatismo e as lembranças.
E, ante o espanto do outro, acrescentou:
- Tem paciência. Dá cá a espada.
Fausto Duarte
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