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28 de novembro de 2011

307-Regressado...

Reencontrei-o à esquina da última noite. Apresentava-se. a  assobiar a parte final de uma cantata de um conhecido autor dos anos 30. Trazia as mãos en­fiadas nos bolsos e a gola do casaco arrebitada até à nuca. Pensei: sempre o mesmo. E a mesma ária de anos antiquíssi­mos e esta gola levantada para o pescoço como Se pretendesse com ela tapar o frio que nâo existia naquela noite quente.
Este homem conheci-o há muitos anos em Coimbra. Fo­mos companheiros na mesma e.escola; ambos percorremos juntos os mesmos espaços e perseguimos idênticos objecti­vos. A distância de muitos anos vem-me hoje à lembrança algu­mas das mais belas recordações que estabeleceram o primado da nossa amizade.
Recordo as circunstâncias em que nos conhecemos.
Tinha acabado o ano lectivo quando foram organizados em Coimbra uns torneios de atle­tismo. Eu tinha uma forte pai­xão pela prática do desporto, mas faltava-me de técnica e de força o que me sobejava de vontade; o meu amigo tinha a estrutura de atleta, nascera para ser campeão. E nisso eu o inve­java. Na corrida para a meta - conhecendo como conhecia a minha debilidade física - tentei fazer batota: por duas vezes ar­ranquei antes de soar o tiro de partida. Fui, naturalmente, eli­minado. Perdera, assim, a se­creta esperança de ver o meu nome nas crónicas desportivas dos jornais. Sem batoteiros a corrida logo se fez e o meu amigo ganhou a partida. Subira depois ao podium com o ar mais humilde deste mundo para receber a medalha de campeão. O seu nome passou para as páginas dos jornais definiti­vamente. 
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Outono chegara rápido e com ele Coimbra repovoava­-se. Encontrei de novo o meu amigo junto aos portões da nossa escola, de mãos enfiadas nos bolsos a assobiar o anti­quíssimo «Jumpin'g Jack». Fa­lámos das corridas, das vitórias e das derrotas e concluímos ser para nós uma alegria imensa pertencermos à mesma turma. Iria principiar um outro cam­peonato para o qual eu partia desta vez em posição de vanta­gem: trazia do ano anterior uma nota distinta, enquanto o campeão dos estádios não dis­punha mais do que a classifica­ção que comporta o sofrível. Nada mais.
Os meses vararam os anos e a nossa posição nesta corrida escolar nunca se alterou, como nunca se alteraram em nós os sentimentos da amizade que em nós também moravam.
Um dia deixei de ver o meu amigo. Não voltara de férias. Este homem, filho de gente honrada, nascera no seio de uma família de grande abastan­ça, cujas raízes assentavam nas terras da beira interior. O insu­cesso escolar nos últimos anos atirara-o para Mafra.
Certo dia - dia de muito in­verno - recebi na minha velha casa de Coimbra um telefone­ma. Era a sua voz, uma voz que eu reconheceria nem que viesse do fim do mundo: «Estou lixa­do, pá! Vão mandar-me para a guerra».
Que poderia eu responder? Que poderia eu fazer pelo meu amigo? Decerto tinha razão para estar desencantado.
Meu pai era um velho gene­ral do Exército, combatente da rectaguarda de uma guerra que estava de nós tão distante como a lonjura do oceano. Os pedi­dos para as cunhas eram quase sempre pessoais e intransmissí­veis. Conhecia bem meu pai, o seu feitio e o seu temperamen­to, e por isso sabia que não era fácil convencê-lo a aceitar o modesto pedido de um filho subalternizado. Ele tinha, de resto, a sua intervenção prepa­rada para me libertar do pesa­delo da guerra quando con­cluísse o meu curso - o curso que a família desejava e me impunha.
O tempo girou de novo e o meu amigo lá partiu. Sabia-o na guerra, mas não o seu paradei­ro. Em Coimbra eu prosseguia a mesma vida, mantinha a mes­ma pedalada escolar sob os aplausos da família envaideci­da, mesmo à beira de promove­rem a doutor um elemento do clã. Mas nunca mais fui aos es­tádios: perdera há muito tempo as esperanças de me tornar ve­deta, nem que fosse à custa da batota; e, já não tinha para aplaudir o verdadeiro campeão e gritar-lhe: «Força compa­nheiro! és o maior».
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Um dia cheguei a Lisboa e na mesma noite em que a esta ci­dade arribei dei por mim a per­correr sozinho as ruas do Bair­ro Alto e de S. Bento, de mãos enfiadas nos bolsos, a assobiar o velho «[umping'[ack». Lem­brei-me do meu amigo que re­gressara há vários anos de Afri­ca, que suportara ao longo de longos meses uma guerra da qual - eu, pequeno beirão - não consegui libertá-lo. Não lhe bastou só essa afronta: per­dera nesse período, à distância de mais de 20 dias de barco, a mulher que amava, também nossa companheira de escola. Depois nunca mais subiu aos podia e até da candidatura ao título académico foi afastado.
Encontrei-o um dia, pouco antes de o reencontrar à esqui­na da última noite, sentado num bar, de copo na mão. Tal como eu, também o meu amigo começa a ter as têmporas grisa­lhas e uns finos vincos ao canto dos olhos como se fossem tra­çados por unhas ponteagudas.
A separação da mulher e dos filhos e o desaparecimento re­pentino do pai, cuja morte che­gou na hora mais trágica de uma certa noite, abalaram vio­lentamente a alma frágil deste velho companheiro. A conver­sa, entre um copo que se esva­zia e outro que se enche, fui­-lhe dizendo da minha compre­ensão sobre os seus problemas. E, com a autoridade intelectual que um "«dr» me confere, quase lhe falei do alto da cátedra - e esse o meu erro - para lhe ex­plicar a existência de outros ca­minhos longe dos atalhos que percorre.
Para mim tornava-se difícil perceber a razão pela qual o ve­lho campeão, meu companhei­ro de escola, se refugia na noite à procura da luz artificial dos bares e tem horror à solidão. Explicou-me que é por causa da crise da identidade. Não en­tendi ainda bem o que queria dizer com isso. Mas percebi que este homem, como tantos outros, tem a habitá-lo angús­tias que em mim não moram.
Tive um pai general que me ofereceu um posto na recta­guarda da guerra e não passei pelas vicissitudes porque pas­sou um milhão e meio de cida­dãos deste país. Durmo bem, escuso de recorrer a soporífe­ros para vencer insónias, tenho emprego estabilizado, possuo uma casa, virada para o mar e, quando em dias de festa vou aos bares, bebo apenas do me­lhor wishky. E o meu amigo, esse, que não teve um pai gene­ral, continua a beber, todos os dias, cerveja nacional. E todos os dias assobia a mesma ária.

in jornal "O diário", de 12 de Setembro de 1981

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