Reencontrei-o à esquina da última noite. Apresentava-se. a assobiar a parte final de uma cantata de um conhecido autor dos anos 30. Trazia as mãos enfiadas nos bolsos e a gola do casaco arrebitada até à nuca. Pensei: sempre o mesmo. E a mesma ária de anos antiquíssimos e esta gola levantada para o pescoço como Se pretendesse com ela tapar o frio que nâo existia naquela noite quente.
Este homem conheci-o há muitos anos em Coimbra. Fomos companheiros na mesma e.escola; ambos percorremos juntos os mesmos espaços e perseguimos idênticos objectivos. A distância de muitos anos vem-me hoje à lembrança algumas das mais belas recordações que estabeleceram o primado da nossa amizade.
Recordo as circunstâncias em que nos conhecemos.
Tinha acabado o ano lectivo quando foram organizados em Coimbra uns torneios de atletismo. Eu tinha uma forte paixão pela prática do desporto, mas faltava-me de técnica e de força o que me sobejava de vontade; o meu amigo tinha a estrutura de atleta, nascera para ser campeão. E nisso eu o invejava. Na corrida para a meta - conhecendo como conhecia a minha debilidade física - tentei fazer batota: por duas vezes arranquei antes de soar o tiro de partida. Fui, naturalmente, eliminado. Perdera, assim, a secreta esperança de ver o meu nome nas crónicas desportivas dos jornais. Sem batoteiros a corrida logo se fez e o meu amigo ganhou a partida. Subira depois ao podium com o ar mais humilde deste mundo para receber a medalha de campeão. O seu nome passou para as páginas dos jornais definitivamente.
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Outono chegara rápido e com ele Coimbra repovoava-se. Encontrei de novo o meu amigo junto aos portões da nossa escola, de mãos enfiadas nos bolsos a assobiar o antiquíssimo «Jumpin'g Jack». Falámos das corridas, das vitórias e das derrotas e concluímos ser para nós uma alegria imensa pertencermos à mesma turma. Iria principiar um outro campeonato para o qual eu partia desta vez em posição de vantagem: trazia do ano anterior uma nota distinta, enquanto o campeão dos estádios não dispunha mais do que a classificação que comporta o sofrível. Nada mais.
Os meses vararam os anos e a nossa posição nesta corrida escolar nunca se alterou, como nunca se alteraram em nós os sentimentos da amizade que em nós também moravam.
Um dia deixei de ver o meu amigo. Não voltara de férias. Este homem, filho de gente honrada, nascera no seio de uma família de grande abastança, cujas raízes assentavam nas terras da beira interior. O insucesso escolar nos últimos anos atirara-o para Mafra.
Certo dia - dia de muito inverno - recebi na minha velha casa de Coimbra um telefonema. Era a sua voz, uma voz que eu reconheceria nem que viesse do fim do mundo: «Estou lixado, pá! Vão mandar-me para a guerra».
Que poderia eu responder? Que poderia eu fazer pelo meu amigo? Decerto tinha razão para estar desencantado.
Meu pai era um velho general do Exército, combatente da rectaguarda de uma guerra que estava de nós tão distante como a lonjura do oceano. Os pedidos para as cunhas eram quase sempre pessoais e intransmissíveis. Conhecia bem meu pai, o seu feitio e o seu temperamento, e por isso sabia que não era fácil convencê-lo a aceitar o modesto pedido de um filho subalternizado. Ele tinha, de resto, a sua intervenção preparada para me libertar do pesadelo da guerra quando concluísse o meu curso - o curso que a família desejava e me impunha.
O tempo girou de novo e o meu amigo lá partiu. Sabia-o na guerra, mas não o seu paradeiro. Em Coimbra eu prosseguia a mesma vida, mantinha a mesma pedalada escolar sob os aplausos da família envaidecida, mesmo à beira de promoverem a doutor um elemento do clã. Mas nunca mais fui aos estádios: perdera há muito tempo as esperanças de me tornar vedeta, nem que fosse à custa da batota; e, já não tinha para aplaudir o verdadeiro campeão e gritar-lhe: «Força companheiro! és o maior».
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Um dia cheguei a Lisboa e na mesma noite em que a esta cidade arribei dei por mim a percorrer sozinho as ruas do Bairro Alto e de S. Bento, de mãos enfiadas nos bolsos, a assobiar o velho «[umping'[ack». Lembrei-me do meu amigo que regressara há vários anos de Africa, que suportara ao longo de longos meses uma guerra da qual - eu, pequeno beirão - não consegui libertá-lo. Não lhe bastou só essa afronta: perdera nesse período, à distância de mais de 20 dias de barco, a mulher que amava, também nossa companheira de escola. Depois nunca mais subiu aos podia e até da candidatura ao título académico foi afastado.
Encontrei-o um dia, pouco antes de o reencontrar à esquina da última noite, sentado num bar, de copo na mão. Tal como eu, também o meu amigo começa a ter as têmporas grisalhas e uns finos vincos ao canto dos olhos como se fossem traçados por unhas ponteagudas.
A separação da mulher e dos filhos e o desaparecimento repentino do pai, cuja morte chegou na hora mais trágica de uma certa noite, abalaram violentamente a alma frágil deste velho companheiro. A conversa, entre um copo que se esvazia e outro que se enche, fui-lhe dizendo da minha compreensão sobre os seus problemas. E, com a autoridade intelectual que um "«dr» me confere, quase lhe falei do alto da cátedra - e esse o meu erro - para lhe explicar a existência de outros caminhos longe dos atalhos que percorre.
Para mim tornava-se difícil perceber a razão pela qual o velho campeão, meu companheiro de escola, se refugia na noite à procura da luz artificial dos bares e tem horror à solidão. Explicou-me que é por causa da crise da identidade. Não entendi ainda bem o que queria dizer com isso. Mas percebi que este homem, como tantos outros, tem a habitá-lo angústias que em mim não moram.
Tive um pai general que me ofereceu um posto na rectaguarda da guerra e não passei pelas vicissitudes porque passou um milhão e meio de cidadãos deste país. Durmo bem, escuso de recorrer a soporíferos para vencer insónias, tenho emprego estabilizado, possuo uma casa, virada para o mar e, quando em dias de festa vou aos bares, bebo apenas do melhor wishky. E o meu amigo, esse, que não teve um pai general, continua a beber, todos os dias, cerveja nacional. E todos os dias assobia a mesma ária.
in jornal "O diário", de 12 de Setembro de 1981

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