Stress de guerra
"doença envergonhada"
António Melo
Os sentimentos são contraditórios. Querem protagonismo, mas hesitam no instante da afirmação. Solicitam um difuso anonimato, receando o confronto com uma sociedade que sabem pouco receptiva aos fracos. Estão debilitados. querem apoio, mas recusam a piedade. São doentes, alguns inválidos, de uma guerra que lhes atordoou a memória.
O nome é críptico. A "perturbação pós-traumática do stress" foi diagnosticada pelos médicos norte-americanos que acompanharam os soldados que estiveram no Vietname, mas nos países europeus há ainda uma certa relutância em compreender o diagnóstico desta afecção.
O momento agudo, crítico, do stress é facilmente identificado, mesmo por um leigo. Um choque emocional é visível Mas, à volta da vítima, todos esperam que ela possa recuperar - ou pelo menos "esquecer". Assim acontece até que um dia, 20 anos mais tarde, num momento de crise da meia-idade, por insucesso profissional ou pessoal, a "ferida encoberta" reabre-se.
A nossa memória é um armazém labiríntico onde todo o passado se guarda. o fiel desse armazém - 'ego', 'espírito' ou 'consciência' - encarrega-se de seleccionar as recordações que envia à superfície. Por hábito escolhe as imagens felizes e galhofeiras, que sabe serem as mais gratificantes no convívio social. "Tristezas não pagam dívidas", é a expressão popular desta conduta, que deixa o eficiente fiel com frequentes problemas de arrumação dos stocks. Obrigado a responder às diversas solicitações da vida social, sabe que as recordações que provocam "frisson" são as de maior sucesso na assistência e fazem do seu mestre o centro (momentâneo) das atenções. O problema é quando tem que re-arrumar a "tralha" da noite, finda a festa
Sozinho consigo, longe do vozear familiar que entontece mas também dá segurança, as imagens recusam a autocensura e impõem-se na mente que tanto fez para as esquecer. O que elas dizem é que a realidade foi dolorosa, inesquecível, que o medo foi algo de fortíssimo, que a comoção nervosa deixou marcas indeléveis no cérebro, que a fractura invisível é pior do que a mutilação física
Quantos reagem assim, a evidenciar os sintomas da "perturbação pós-traumática do stress", sintomas recorrentes de uma guerra que travaram há 20 ou 30 anos? O psiquiatra Afonso de Albuquerque sustenta que na sociedade portuguesa há entre 100 a 140 mil cidadãos nos quais a experiência das guerras travadas no então ultramar, contra os movimentos de libertação das colónias provocou um estado crónico de "perturbação pós-traumática do stress" (PTSD).
Ao interlocutor externo, o primeiro contacto revela-se banal. A troca de palavras é a usual, talvez haja uma certa crispação, que tanto pode ser devida ao PTSD como ao formalismo da apresentação, sendo o local aprazado para o encontro o Hospital Júlio de Matos, em Lisboa. Só mais tarde, num contexto de quase terapia de grupo, com o psiquiatra Afonso Albuquerque e a psicóloga Fani Lopes presentes, esta formalidade se desfaz. Citam-se, mesmo assim resvés, as experiências traumatizantes que ainda hoje são origem de pesadelos. Um tormento que pode surgir no sono ou ser desencadeado por um ruído, um ambiente que faz saltar de um canto da memória um reflexo instintivo de autodefesa
É num estado de excitação, quase de raiva, que um dos presentes solta o grito da angústia que nunca mais o deixou de há 30 anos a esta parte. Vê e revê o acto que lhe trouxe o louvor por feitos em combate. Não quer louvor que o obriga a ter que aceitar um acto de coragem que foi obrigado a praticar. Um que o fez passar por uma situação indesejada e da qual guarda recordação traumatizante: a de um fuzilado que regressa ao mundo dos vivos.
Episódios
R. Marques tinha 20 anos quando partiu para a guerra. Meses depois viu-se envolvido na emboscada que não esquece, Ia numa Unimog, sentado com o resto do pelotão na banqueta transversal. Logo que começou o tiroteio saltaram para se proteger, incluindo o motorista, que nem sequer parou a viatura. Marques quis saltar, mas um dos arreios prendeu-se na armação do assento e lá foi ele, alvo fácil, levado pela camioneta rega, atravessar a zona emboscada. Só sabe que esvaziou os carregadores nos minutos eternos que durou aquela travessia. Parece que a sua intervenção, completamente desatinada para olhares exteriores, levou a que a emboscada malograsse, com a retirada dos atacantes. Quando finalmente o Unimog embateu numa elevação e parou o tiroteio, o seu solitário estava vivo mesmo se nos primeiros momentos nem ele próprio nisso quisesse acreditar.
Não mais esta viagem alucinante lhe abandonou a memória, mesmo se à sua volta todos diziam que era “um tipo com eles no sítio”, capaz de matar a própria morte. Títulos que ele não reivindicou e não lhe vão com o corpo franzino. Mas não é o aspecto exterior que dá solidez interior. Não é o corpo, mais ou menos imponente, que faz a vítima.
A. Almeida tem dotes de líder natural, reforçados de plácida bonomia. Para ele, falar do que foi a sua guerra é um exercício doloroso. Ainda hoje está dividido pelo impulso da deserção, que o pai lhe terá chegado a sugerir, e o sentimento de um dever a cumprir. Dever não para com o regime salazarista, que detestava mais visceralmente do que por postura ideológica. Dever de homem, dever para si mesmo, para que se visse que não havia ali ponta de cobardia - "quem há-de fugir à guerra sendo homem como eu sou" dizia o "Canta Camarada, Canta", entoado pelos meios estudantis em rebelião. E certo que esta guerra que cantava a solidariedade, era precisamente contra quem o obrigava a fazer uma outra guerra, que não queria. Mas envolvido por sentimentos contraditórios sentiu que devia cumprir o dever.
Há uma reserva quase atávica em falar do assunto. E outro caso de coragem, A companhia ficou a admirá-lo - "mas ninguém podia saber corno estava por dentro quando me estendi numa cama".
A granada de morteiro ficara cano, desafiando quem a fosse lá tirar. Mas não havia outro processo senão ajudar o angustiado apontador de tiro, ansiando por poder fugir, mas sem poder. Para encurtar explicações, a ejecção não se dera: porque a pastilha detonadora estava deteriorada ou mal colocada? Se fosse esta segunda hipótese, bastava um deslizar mínimo, uma trepidação mais forte, para que o peso do morteiro accionasse a pastilha e explodisse no aquartelamento. Foi preciso serenar o apontador de tiro, dar-lhe confiança de que tudo ia correr pelo melhor. Era só uma questão de sangue-frio: fazer descair milímetro a milímetro o cano, de modo a que o peso do morteiro o fizesse deslizar para a boca. Nessa altura o apontador de tiro puxá-lo-ia cautelosamente, até que se pudesse retirar a pastilha detonadora. De facto tudo correu bem. Ali. O pior foi quando se "estendeu numa cama".
A perturbação
Os exemplos exteriores de coragem não são uma norma na sintomatologia do PTSD. Pode ser a visão do camarada morto, ao lado de si, quando de um lado e de outro estoiram tiros e morteiros. Pode ser a expectativa de um campo de minas que teve que se atravessar, um interrogatório de um prisioneiro que terminou em tortura e morte...
Muitas causas podem determinar um estado idêntico de perturbação. O que ressalta no contacto próximo é uma agressividade latente, sempre pronta a irromper, por motivos aparentemente menores. "Baixa afectividade, baixa comunicação e alta hostilidade" são atitudes que orientam a conduta das pessoas atingidas pelo PTSD.
No interior do indivíduo, os fenómenos que provocam este estado são mais complexos. Caracterizam-se por pesadelos frequentes, uma vez por semana ou mais, trazendo as mesmas imagens de angústia. Mesmo em estado de vigília é habitual surgirem essas imagens, em "flashback", mas revelando-se cerebralmente com tanta nitidez que o indivíduo assume comportamentos de autodefesa. Tudo isto apesar das mil e uma cautelas para evitar tudo o que faça recordar aquela situação, sejam filmes, séries televisivas ou fotos de revistas.
Em relação aos seres mais próximos, designadamente a família, assiste-se a um embotamento afectivo, a uma efectiva dificuldade de relacionamento, a um cada vez menor, senão nulo, investimento emocional nas relações com o cônjuge,
"Nunca disse o que vi e vivi" - o que se viveu realmente, não as histórias de virilidade contadas em grupo de ex-combatentes e regadas com cerveja ou whisky. J. Santos explica que só com o tratamento de terapia de grupo, sob a orientação de Afonso de Albuquerque e Fani Lopes, principiou a desfazer-se desta reserva que o impedia de contar o que "vi e vivi".
A possibilidade de falar com outros sobre o que realmente viveram abriu algumas portas de serenidade. Converteu-se até numa "necessidade" mesmo sem sessão de terapia. Multiplicar os pretextos para isso pode ser um bom sistema, criar objectivos comuns melhor ainda. […]
O tratamento da "ferida encoberta", na expressão de Afonso Albuquerque, não a vai sarar completamente. O regresso à tranquilidade, à paz de si e consigo, o regresso a um relacionamento afectivo, à actividade profissional a cem por cento, são objectivos longínquos, talvez não alcançáveis. Mas, pelo menos, recupera-se um certo autocontrolo, uma capacidade de diálogo que recentra o indivíduo no meio familiar e torna amável o seu convívio. Em resumo, traz-lhe de volta uma qualidade de vida que já esquecera, agradável para o próprio e útil para a sociedade.
Jornal "Público", 29 de Junho de 1994
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