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26 de dezembro de 2011

338-Música indígena da Guiné

«A música é congénita ao homem. 
O homem desde que nasce é um instru¬mento musical pela voz, pelas mãos e pelos pés. A etnografia conhece tribos sem casas, sem o mais ligeiro rasto de indumentária, mas nunca sem música». HABERLANDT. 

ENTRE as manifestações artísticas dos indígenas da Guiné, que são bastantes, aquela que se nos apresenta mais perfeitamente homo¬génea, é a música. 
Vocal ou instrumental, de género monódico, é nada mais, nada menos, do que a repetição constante duma frase quase monótona, inalteravelmente acentuada na tónica, e ordinariamente seguida dum coro sempre composto sobre o canto da voz principal. 
Embora o indígena no tocante à música, como aliás, noutros aspectos da vida mental esteja ainda na sua fase primitiva, já se não limita, con¬tudo, aos elementos de percussão, pois utiliza vários instrumentos de sopro, a flauta de cana com vários orifícios.
É certo que os tocadores destes instrumentos não têm grande canseira em tocá-los, visto que dão uma só nota durante uma frase musical inteira. Cantam ao mesmo tempo que tocam e só mudam de nota quando iniciam nova frase que, geralmente, é sempre igual à primeira. Todavia, os Fulas e os Mandingas, por influência árabe, têm uma concepção artís¬tica mais elevada, fazendo-nos, por vezes, ouvir improvisações musicais já bastante aceitáveis. 
Do que não resta dúvida alguma, é de que todos os indígenas da Guiné têm a sua música: música primitiva, música negra, música da selva, mas incontestavelmente Música. 

***
A música, é antes de tudo, um grito de coração, é o canto natural e espontâneo que o homem traz dentro de si; é como que a exteriorização da alma. Um homem que, ignorando a complicada técnica da música, mesmo os seus mais elementares rudimentos, mas que é dotado de dons criadores e espontâneos, que num descampado por exemplo, sozinho, canta para se distrair, para suavizar o trabalho ou para desabafar o seu estado de alma, pode ser mais sublime, talvez um maior músico, que o autor de sinfonias ou quartetos complicados, se este último tiver menos inspiração do que aquele. 
A inspiração não se vai buscar às Academias; a cultura sem ins¬piração é absolutamente secundária; a inspiração sem cultura, devida¬mente lapidada, pode produzir mimos de bom gosto. 
Quantas vezes o excesso de cultura atrofia a inspiração, havendo por vezes criaturas que, absorvidas ou assoberbadas - Deus o sabe! - pela sua incontestável cultura musical, só têm tendência para truncar, complicar e substituir a inspiração por um luxo técnico, no qual a maioria das vezes não se encontra mais do que uma música desprovida de seiva e de gosto melódico. 
Longe de nós a ideia de pretender contestar a grande importância da técnica na arte musical ou a sua maravilhosa história, a qual nos deu até hoje um grandioso monumento de obras de arte; e foi precisamente com a técnica musical, aliada à inspiração ou vice-versa, que os grandes Génios do século passado arquitectaram algumas das mais extraordinárias obras de que se pode orgulhar o género humano.
Contudo, necessário é reconhecer-se, que ela tomou um lugar muito exclusivo ao ponto de, em seu nome, se desprezar e condenar a impro¬visação e, de uma maneira geral, a música baseada na tradição, isto é, a mais directa e a mais natural. 
Conquanto sejamos pela música para músicos, também o somos pela música• para os que não são músicos. É uma arte tão rica, tão transcendente e tão vasta, que felizmente chega para todos os gostos. Há que ter em atenção que nos leigos está a maioria... De resto, um gosto não prejudica outro.
Os naturais da Guiné compõem-se de várias tribos, em número supe¬rior a dezasseis, que mutuamente se antipatizam, cada uma com a sua língua e costumes próprios, mais ou menos dissemelhantes, tendo somente de comum a música, exactamente como no mundo civilizado, à parte, claro está, o folclore regional de cada país. 
Entre fulas e mandingas, a música está confiada a uma classe de homens especiais dentro de cada tribo, chamados judeus (1), os quais são, de pais a filhos, músicos improvisadores e compositores de cantos religiosos, heróicos ou fúnebres, segundo as cerimónias em que tomam parte. 
Enquanto nalguns países mesmo hiper-civilizados os músicos são, por assim dizer, considerados os párias da sociedade (com excepção dos privilegiados), na Guiné, merecem todo o respeito e consideração, em virtude de antigas lendas ensinarem que a música é um prémio divino concedido ao homem. 
É aos músicos que compete tocar o tambor para as grandes reuniões, para os batuques e para anunciar o falecimento de algum parente (2), competindo-lhes também cantar durante as festas de homenagem aos homens grandes, quer se trate dos seus próprios chefes quer de homens brancos, mas neste caso só com o fim de lhes apanhar lava-remos (gorgeta). 
Se acontece que algum chefe sente o seu prestígio em declínio, logo trata de procurar maneira de fazer exaltar a sua própria glória, contratando os músicos da sua tabanca (aldeia) ou mesmo os de uma outra, os quais, rodeados de todos os seus habitantes, mulheres de um lado, homens do outro (não gostam de mistura de sexos...), se sentam no chão em frente do chefe a homenagear, de preferência à sombra dum poilão, árvore sagrada para eles. Os músicos improvisam em sua honra, vários cânticos, exaltando os seus feitos e as suas virtudes. 
Esta música compõe-se ordinariamente de cantos heróicos, marchas de guerra de um ritmo nervoso e sacudido, ares de dança e cânticos de amor, predominando nestes imitações de animais, tais como o mugir do boi o balir da cabra, etc., soltados ora pelos tocadores, ora pela assistência. 
Verdade seja que toda esta música se assemelha, especialmente na sua melodia: frase triste, longa e langorosa, interrompida aqui e ali por uma espécie de escalas mais ou menos acidentais, partindo de notas agudas para descer bruscamente até aos extremos baixos da voz humana, suspendendo-se em seguida como um queixume, durante mais dois ou três compassos marcados pelo tambor. 
O negro também tem o hábito de cantar quando trabalha, mas é sobretudo ao caír da tarde, no abandono total do esforço físico, a meia voz, que ele se põe em contacto com Apolo. As melodias, como dissemos, são tristes, muito primitivas, incompreensíveis às vezes, mas o seu ritmo é impressionante, difícil e complicado. 
Muitas vezes também as mulheres actuam nas festas de louvor aos homens qrandes, tocando um instrumento, se assim lhe podemos chamar, que consiste numa meia cabaça esférica, tendo previamente metido nas falangetas de todos os dedos (excepto nos polegares), uns anéis de metal com os quais tamborilam no flanco da cabaça, regulando o som ora encostando-a ao corpo ora afastando-a, consoante a voz se vai elevando ou abaixando, desempenhando mais ou menos o papel da nossa pandeireta.
São estes os traços característicos da arte musical indígena, inferior talvez, mas seguramente natural, impulsiva, pura e muito diferente da nossa, 
De todas as tribos da Guiné, é incontestavelmente nas tribos Fula e Mandinga que se encontram os melhores músicos da Colónia. 
Predomina na vida material e religiosa destas duas tribos a influên¬cia árabe, mas é sobretudo na sua música, que essa influência mais se acentua.
De facto, quem assistir a uma festa abrilhantada por músicos das duas tribos, e ouvir uma das suas nostálgicas ou fatalísticas improvisa¬ções, acode-lhes logo ao espírito frases de alguma composição árabe - de Albeniz ou de Granados - que nós, ibéricos que somos, facilmente com¬preendemos por termos também sofrido outrora a mesma influência.
Dito isto, vamos tentar descrever os instrumentos usados na Guiné, procurando tanto quanto possível, ser exactos na sua descrição, evi¬tando, contudo, aprofundar o assunto que, para tanto, nos falece a com¬petência. 
Os instrumentos músicos usados pelos indígenas da Guiné, pelo que temos observado, são muito Limitados; o seu total compõe-se somente de um instrumento de sopro, de instrumentos de corda friccionada e dedi¬lhada, do xilofone e de vários instrumentos de percussão, dos quais só falaremos de três, que são os padrões de todos os outros. 

Começaremos a descrevê-los pela ordem acima indicada, e dar-lhes-emos os nomes em crioulo, que é a língua comum a todos os homens cultos das várias tribos.

F L A U TA:
 - Instrumento feito de cana, semelhante ao usado pelos nossos pastores, mas muito mais rudimentar. Tem só três orifícios, um para soprar e os outros dois para tocar tudo. Não se consegue com ele dar sequer um fragmento de escala. Contudo tocam-no como por milagre, todas as tribos, e cada uma dá-lhe um nome próprio. Há-os trabalhados com desenhos rectilíneos a pirogravura de bom deito ornamental.

C A L A N D E:
 - Instrumento composto de uma meia cabaça, pequena, que forma a caixa de ressonância, coberta com uma pele na sua abertura, e com um buraco rectangular no seu flanco, ligada a um braço de tamanho variável de instrumento para instrumento, e provido de uma só corda de tripa, sendo friccionado com um arco também provido com corda de tripa. Imita de perto o nosso violino. Como a única corda que tem nunca é premida contra o braço, que está muito' afas¬tado dela, só toca nos harmónicos, em virtude de ser premida muito levemente. Provavelmente os executantes desconhecem que se premissem a corda contra o braço, o instrumento daria muito maior rendimento.É só usado pela tribo Fula que lhe dá o nome de Calande. A sua extensão está condicionada ao fenómeno harmónico. 

VIOLA:
 - Instrumento muito  elegantee bastante sóbrio de linhas. Compõe-se de uma caixa-de-ressonância de madeira, coberta de pele, com cerca de 40 a 4j centímetros de comprimento e 10 de largo. A caixa tem um orifício na extremidade inferior, e é provido de um braço onde se prendem as cordas que são em número de três, quatro e cinco, sendo estes os mais usados. Tambérn é dedilhado e o mais curioso é que os bordões, ou seja, as cordas mais grossas, estão intercaladas pelas primas.As cordas são premidas contra o braço. o que não acontece com o Calande. Pode-se, por isso, com ele tocar melodias harpejadas. o que dá um efeito interessante, É usado pela tribo Fula, que lhe dá o nome de Toucron. Por vezes é tocado com uma surdina igual à do K01'á que lhe altera em parte o som, aumentando-lhe o deito musical, corno a seguir teremos ocasião de ver.
Eis as notas produzidas pelas suas cordas soltas e de baixo para cima: 
KORÁ:
 - Instrumento também composto de uma mela cabaça. maior do que a do Calando e com o mesmo dispositivo deste. Como os instrumentos são sempre construídos pelos seus próprios tocadores, cada qual adorna-os a seu gosto e fantasia. adaptando-lhes o número de cordas consoante a habilidade que tem. Há ins-trumento; com oito, doze e mais cordas, predominando os de vinte e uma. 
As cordas estão fixas ao instrumento como as dos nossos instrumentos, excepto o emprego das cravelhas, apenas com a diferença de o cavalete medir cerca de 25 centímetros de altura. Este cavalete tem nos seus flancos um sistema de encaixes intercalados, por onde passam as cordas, que por sua vez se vão prender ao braço. 
Tem ainda um acessório muito importante e ao qual poderíamos chamar surdina, que se compõe de uma folha de alumínio ou mesmo de lata, oval, e com uns orifícios em toda a sua volta, onde estão emitidos uns elos de arame. 

O efeito produzido por esta surdina é interessante, pois as vibrações das notas são acompanhadas de uma ténue trepidação dos elos da folha; semelhando guizos tocados ao longe. 
O instrumento é dedilhado com ambas as mãos como a harpa e toca-se sentado no chão. Supomos, e com visos de verdade, que a sua afinação esteja entregue ao gosto do executante; contudo, pelo que temos ouvido e observado, parece estar baseada na escala árabe, porquanto, os músicos, não concebem a escala diatónica e muito menos a cromática, tal como nós a concebemos. Isto, pelo menos, quando cantam. É só usado pela tribo Mandiga, que são, quanto a nós, os melhores músicos da Colónia. 
As suas cordas são em número de vinte e uma, sendo onze do lado esquerdo do cavalete, e dez do lado direito. Tem a seguinte extensão:
B A L A F O N:
 - É exactamente do feito do nosso xilofone ou sistro. Até mesmo o material empregue na sua construção é idêntico, pelo que se torna inútil descreve-lo. Também tocado com dois martelos, e a sua extensão varia segundo a tribo do seu construtor e do seu tocador. Usam-no os Fulas e os Balantas, estes com vinte e quatro notas e aqueles com dezassete. A sua afinação é quase perfeita; observamos um destes instrumentos tocados por um Fula, e conseguimos ouvir uma escala de Fá Maior rigorosa, como se pode ver pelo exemplo que a seguir damos. As notas imediatamente inferiores e superiores à escala de Fá Maior, embora seguidas, são um tanto ou quanto semitonadas, razão pela qual não podemos considerar o instrumento perfeito. 
Eis a extensão de um Balafon Fula - «Balangi» como lhe chamam - ou «Bálá», nome por que é conhecido entre os Balantas.
CUMURA: 
- Instrumento de percussão semelhante aos nossos timbales ou tímpanos, de vários feitios e tamanhos, apenas com a diferença de que os grandes são tocados com duas baquetas, os médios com uma baqueta e com uma mão, e os pequenos com ambas as mãos. E comum a todas as tribos.

GILÁ: 
- Instrumento de percussão de som mais seco e cavo que o do Cumura, composto de um tronco de árvore oco por dentro, de comprimento variável que vai ii mais de dois metros e meio, e com uma pele na extremidade mais larga. É tocado com ambas as mãos e posto a tiracolo, sendo comum a todas as tribos.

BOMBOLON:
 - É este o mais importante instrumento indígena de percussão. E construído de um grande tronco de árvore bastante grosso e escavado por dentro, com o comprimento variável de um a dois metros, com uma estreita abertura longitudinal (um pouco mais pequena do que o seu comprimento), sendo tocado com dois paus - que servem de baquetas - por um ou mais tocadores. Já o vimos tocar por seis homens, três de um lado e tês do outro, sendo somente utilizado para transmitir notícias importantes. ou em cerimónias de grande transcendência. 
Poderíamos chamá-lo telégrafo indígena. 
Toda a gente conhece o seu som cavo e especial. 
Tem também uma outra função muito importante, que consiste em chamar o vento. Todos os barcos à vela estão providos dele. Quando há necessidade de fazer uma viagem c o vento falta, os marinheiros tocam-no, na persuasão de que, assim, chama o vento. É comum a todas as tribos. 

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Aqui ficam, caro leitor, os apontamentos que nos foi possível colher através de uma rápida passagem pelo interior da Colónia. Lamentamos não ter podido fixar algumas composições indígenas para completar estas notas. Todavia, com os magros elementos colhidos, e o estudo dos instrumentos músicos usados pelos nativos, já podemos fazer um juízo mais ou menos acertado da mentalidade da população indígena da Guiné Portuguesa. 
Abílio Gomes 
(Chefe da Banda de Música 
da Guarnição Militar da Colónia)
(1) Tem este nome só entre tribos islamizadas. 
(2) Por parente deve entender-se os amigos e conhecidos da mesma tribo c não somente as pessoas de família, como geralmente se supõem
(*) A Domingos Fernandes Canhão, mestre nestes assuntos e particular Amigo. 

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