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21 de dezembro de 2011

333-Presença Portuguesa na Senegâmbia

Mamadou Mané *
Algumas Observações Sobre a Presença
Portuguesa na Senegâmbia
até ao séc. XVII **

O tema geral do Congresso oferece-nos a oportunidade de examinarmos certos aspectos da presença portuguesa na África atlântica negra. Abordaremos o tema no seu contexto histórico o dos contactos luso-africanos. Tendo estes contactos (do séc. XV ao XVII) conduzido a uma presença portuguesa relativamente importante, para não dizer hegemónica, pode comparar-se o seu impacto a um outro que o precedeu o dos Muçulmano-árabes, na região do Sahel (Oeste Africano).
Atendendo a este facto rapidamente se proclamou a vitória da «caravela sobre a caravana», embora, mais tarde, se tivesse relativizado a afirmação. De facto, a presença portuguesa, em nome das diversas motivações que a provocaram, não foi, à partida, muito benéfica para os iniciadores a ponto de Jean Devisse não ter hesitado em falar de decepção: o ouro que se ia procurar lá era obtido em quantidade insuficiente; as tentativas de cristianização das populações costeiras, para fazer delas baluartes eficazes contra o expansionismo muçulmano, foram um malogro; as trocas comerciais, no início, eram medíocres, não obstante o carácter pacífi co das relações com os autóctones a partir de 1450.
No entanto, a decepção não levou ao desânimo, e os Portugueses, ao descobrirem as costas atlânticas de África, e ao estabelecerem-se lá, contribuíram muito para o enriquecimento dos conhecimentos daquela época sobre o Continente relativamente ao qual abundavam lendas e afi rmações contrárias à verdade, colhidas especialmente nos escritos antigos de Ptolomeu.
As novas informações fornecidas pelos navegadores portugueses do séc. XV reintegravam então a África no centro das preocupações de ordem geográfico-económica da Europa em expansão marítima. Desde então, e até aos nossos dias, têm sido publicados estudos sobre este assunto, sendo o mais recente (de que tenho conhecimento) o de António Carreira.
O tema da presença europeia, especialmente portuguesa, na África negra, é, pois, actual. Por isso, também nós o abordámos, mas na perspectiva do presente Congresso.
Limitámos o nosso estudo à Senegâmbia, e não foi por acaso que escolhemos esta zona de África. É que ela constituiu o primeiro espaço dos países negros a ser descoberto pelos Portugueses desde os meados do séc. XV.Na sua acepção histórica, a Senegâmbia engloba não só o Senegal e a Gâmbia mas também a Guiné-Bissau até à zona que circunda a Serra Leoa, ao Sul.
No aspecto comercial, os Portugueses tornaram-se progressivamente hegemónicos na Senegâmbia, ao longo do séc. XVI, conseguindo orientar novamente em direcção à Costa o essencial dos circuitos tradicionais do comércio regional inter-africano.
O pontapé de saída foi dado a partir de 1460 com o povoamento e a exploração das Ilhas de Cabo Verde, graças à mão-de-obra servil negra adquirida no Continente em frente, o que deu rapidamente origem a uma produção têxtil, e a impulsionou, com as plantações de algodão de Fogo e Santiago.
Tecidos e tangas eram trocados por escravos, uma parte dos quais começava a ser reexportada para a Europa e já para a América. De modo que, a partir de 1582, se notava em Fogo e Santiago a presença de 1608 Portugueses, 400 escravos libertos e 13 700 escravos.
Durante esse tempo, na costa africana, como pontos de apoio de penetração comercial portuguesa, fundaram-se do Norte a Sul, no séc. XVI, as localidades de Portugal (Porto dAle), São Domingos, Cacheu (fundada em 1588), São Filipe (a montante do Cacheu, em 1581), Porto da Cruz (em 1584), no Rio Grande, ao Sul, na Guiné-Bissau. Antigos centros comerciais africanos situados ao longo dos numerosos cursos de água entravam igualmente em posse dos comerciantes portugueses: Joal (na Pequena Costa do Senegal); Barra e Bintan na embocadura do Gâmbia; Kassan, Kantor, Sutuco na Alta Gâmbia; Quinquin, Sarar, Bolor na margem sul do Casamança. Anteriormente, no fi m do séc. XV (em 1488), tentou-se, sem sucesso, a construção dum forte português, na embocadura do rio Senegal.
Estes, alguns dos centros motores de intercâmbio luso-africano no comércio atlântico senegambiano. Até ao fi m do séc. XVIII e no início do XIX, estes centros continuavam a desempenhar essa função, mas com um número cada vez maior de Franceses e Ingleses.
No fi m do séc. XVI, na região do Rio Grande, que era a mais ocupada pelos Portugueses na Senegâmbia, contavam-se 50 casas de brancos e de mais de 100 Portugueses.
É o momento de evocar a acção determinante dos «Lançados-Tangomaos» no êxito dos Portugueses na Senegâmbia. Relativamente a eles, desenvolveu-se uma abundante literatura focando as suas origens, a sua formação e as importantes funções económico-culturais a eles atribuídas na zona aonde fizeram a sua aparição a partir dos primeiros anos do séc. XVI. Na maior parte, eram judeus de origem, cristianizados ou não, lançando-se, a partir das Ilhas de Cabo Verde, na aventura africana. Vivamente empenhados nas trocas com os Africanos, não tardaram, em nome dos interesses comerciais, a integrar-se firmemente no ambiente sociocultural africano, a ponto de perderem por vezes algumas das suas características europeias, casando com as autóctones, surgindo assim uma descendência mestiça que estava na origem da língua e da cultura crioulo-portuguesa bem impregnadas na parte Sul da Senegâmbia.
A maioria dos Portugueses que comerciavam em todos os recantos da região eram precisamente os «Lançados-Tangomaos», criando vínculos estreitos com os soberanos locais que eram seus protectores. O mais célebre desses lançados no séc. XVI chamava-se João Ferreira, a quem os africanos alcunharam de «Genagoga» em virtude de dominar várias línguas da região. Acabou mesmo por casar com uma princesa do reino Denianke, do Norte do Senegal, de quem teve um fi lho.
Os «Lançados-Tangomaos» eram pois Europeus dotados duma facilidade de adaptação extraordinária no meio negro-africano. Esta, uma das razões pelas quais eram espoliados e perseguidos pela administração portuguesa, convencida de que deslustravam assim a imagem de testemunho do Ocidente Cristão entre os povos «bárbaros».
Outro motivo que justificava essa acção contra os «Lançados» de Portugal residia na vontade de autonomia comercial que esses exilados da cultura portuguesa manifestaram relativamente ao monopólio real que a coroa de Lisboa tentava impor ao comércio atlântico senegambiano. Apesar da promulgação de medidas draconianas contra eles, os «Lançados-Tangomaos» persistiam nos seus empreendimentos, se bem que tais medidas tivessem feito diminuir a sua eficácia e sobretudo as fontes de aprovisionamento de produtos europeus. Mas pouco lhes importava.
Ingleses, Franceses e Holandeses começavam a chegar a partir do séc. XVI, e muitas vezes com mais mercadorias para trocar que os Portugueses. Para os «Lançados» não havia escrúpulos de ordem nacionalista ou patriótica: os negócios, acima de tudo. Tanto mais que dificilmente se lhes reconhecia a sua qualidade de Portugueses. Ei-los, pois, a servirem de intermediários aos concorrentes Ingleses e Franceses. Entre os seus descendentes mestiços sulcando o Gâmbia, o rio Cacheu e a Serra Leoa, recordam-se alguns nomes:
Bibiana (ou Viviana) Vaz, uma mulher que geria importantes negócios em Cacheu em 1682 e que tinha frequentemente rixas com a administração portuguesa do Cacheu.
José Lopes de Moura, neto dum imperador da dinastia dos Manes da Serra Leoa, durante a primeira metade do séc. XVIII
Tomba Mendes também do séc. XVIII, descendente duma mestiçagem com a família real do Niumi (na Baixa Gâmbia).
António Vaz parente e contemporâneo de Bibiana Vaz.
Os Lançados tinham, pois, contribuído para a ruptura do monopólio português no comércio da Senegâmbia, em proveito duma maior diversificação dos parceiros económicos, o que lhes era fácil de realizar, tanto mais que os soberanos africanos optaram também pela mesma política comercial. Pelos fins do séc. XVI já se tinham assinalado pela sua grande receptividade à influência portuguesa áreas como a Baixa-Gâmbia (Niumé, Bintan, Hereges); o reino de Kasa (Casamança), onde um dos seus soberanos, Masatamba, era tão favorável aos contactos com os Portugueses que desencadeou guerras contra os povos vizinhos da Baixa Casamança, que punham entraves a esses contactos (comia à mesa, utilizando louça portuguesa, segundo referências de Álvares de Almada, que o visitou em 1570); os países Papel-Brame (entre os rios Cacheu e Geba) onde, com a construção de algumas capelas, houve tentativas bem sucedidas de cristianização ao nível da classe dirigente; os países Biafad (ao redor do Rio Grande) que serviam de intermediários importantes às transacções comerciais portuguesas entre a Serra Leoa e o espaço da Gâmbia.
Tais aquisições, os Portugueses iam vê-Ias perturbadas no séc. XVII, pela concorrência cerrada de Ingleses e Franceses. Apesar da acção enérgica de Gonçalo Gamboa de Ayala, capitão-mor do Cacheu a partir de 1641, para redinamizar a antiga preponderância portuguesa, era com outras influências estrangeiras que a Senegâmbia, na sua maior parte, entrava em contacto. Já se disse que o sucesso da concorrência inglesa e francesa aos interesses portugueses não deixava de se relacionar com a colaboração dos «Lançados-Tangomaos».
 Esta nova conjuntura dera um grande impulso ao comércio atlântico e orientava-se cada vez mais para a Deportação de negros africanos (vendidos como escravos) de que a Senegâmbia era uma das plataformas giratórias. Esta tornou-se numa grande encruzilhada aonde chegavam não apenas Europeus mas também outras «populações do interior do Sudão Oriental, que se tinham introduzido (como os «Lançados») no comércio atlântico como agentes intermediários. Queremos referir-nos aos comerciantes africanos conhecidos pela designação mandinga de «Juta». Acabaram por rivalizar com os «Lançados», sulcando todos os circuitos comerciais senegambianos, desde a Gâmbia à Serra Leoa. Embora muçulmanos por oposição às populações autóctones ligadas mais à religião tradicional, por vezes ganhavam vantagem sobre os Lançados. Eram facilmente aceites no meio, graças à preponderância, na Senegâmbia, da cultura mandinga, a que pertenciam quase todos. Provenientes do reservatório de escravos em que se tinha tornado o Sudão Ocidental, os «Juta» eram, aos olhos dos negreiros, mais hábeis que os «Lançados» no aprovisionamento do tráfico de escravos.
Tal era, no séc. XVIII, a situação dos «Lançados», vítimas duma conjuntura para cuja origem eles muito tinham contribuído. Viam-se cada vez mais marginalizados em favor dos Julas mandingas, integrados no islamismo que traficavam muitas vezes directamente com os Europeus, na Costa. Acrescentando a estes factores a repressão de que eram vítimas os «Lançados» e os seus descendentes por parte da administração local portuguesa, pode facilmente compreender-se o refluxo comercial e cultural do caso português na Senegâmbia, pois todos esses factores tinham retardado, senão anulado, o processo de aculturação que se desenhava com a formação e o desenvolvimento do crioulo português. Apenas restavam à influência portuguesa as Ilhas de Cabo Verde e o espaço costeiro Guiné-Casamança, onde, até ao séc. XIV, beneficiava ainda das simpatias do reino Kasa, dos países Papel-Brame e Biafad. E não foi um acaso se este espaço acabou por constituir o conjunto das colónias portuguesas da África Ocidental.
Analisámos certos aspectos da presença portuguesa na Senegâmbia e igualmente as potencialidades de que ela dispunha e que podiam ter tomado maior amplitude, se não fosse o conjunto de circunstâncias a que se fez referência. No entanto, estas observações sobre o caso português não devem levar-nos a pôr entre parêntesis, e menos ainda a negar, a existência e o dinamismo interno das formações sociais africanas nesses locais. Os Portugueses do séc. XV encontraram-nas já bem estruturadas, controlando os seus espaços respectivos no plano administrativo, político, económico e cultural.
Apesar da sua dependência relativamente a produtos fornecidos pelo comércio europeu, era como parceiros livres e soberanos que as suas aristocracias reinantes acolhiam os europeus, aos quais exigiam o pagamento de taxas e de impostos diversos. Se bem que, a respeito do que se ia passar no séc. XIX com a penetração colonial, o tráfico negreiro, do qual elas tiravam lucro, cavasse antecipadamente o seu próprio túmulo.
A verdade é que, à sua chegada no séc. XV, os primeiros navegadores portugueses ficaram surpreendidos pelo grande número de espaços territorializados na Senegâmbia (reinos, impérios, etc...), que aí existiam desde há muito e que tinham dado à zona uma fisionomia uniforme. Do rio Senegal, ao Norte, ao Rio Grande, ao Sul, passando pelos rios Gâmbia, Casamança e Cacheu, tinham-se afirmado como entidades políticas autónomas os espaços Peul-Denianke, Wolof-Serer, Kaabunke (Kaabu), Kassanga (Kasa), Papel-Brame, Biafad, etc.Não obstante este grande desmembramento de Estados, podiam notar-se, com Álvares de Almada, três principais focos motores políticos: o conjunto Folof-Salum (entre os rios Senegal e Gâmbia); o Kaabu, controlando a Gâmbia, o Alta Casamança e o rio Geba; o Kasa, que deu o nome ao rio Casamança. Estas três entidades estavam ligadas entre si por trocas comerciais e culturais Norte-Sul-Norte, no quadro dum tráfi co inter-regional activo, também ele ligado ao comércio de longa distância na direcção Este-Oeste, que punha em comunicação a Costa e a parte interior do país sudanês. Eram estes circuitos que os Portugueses tinham integrado antes de os desviarem para o novo centro de gravidade a Costa. A Senegâmbia constituiu, pois, durante muito tempo, uma aposta importante. Mas estava longe de aparecer como um finisterra passivo onde vinham exercer-se todas as influências, visto ter a sua personalidade histórica e política que tentava fazer prevalecer nas relações com o exterior, quer fosse europeu ou africano ocidental.
Vamos observar, nas linhas seguintes, a reacção da Senegâmbia ao caso português, em paralelo com o interior do Sudão Ocidental, que vivia a influência muçulmano-árabe.
No Sudão Ocidental, o impacto muçulmano-árabe manifestara-se nitidamente durante os séc. 13, 14 e 15. A prosperidade económica e o prestígio intelectual de cidades como Tombouctou, Djenné e Gao deviam-lhe muito. O que se passou, portanto, no Sudão, era de longe anterior à penetração europeia na Senegâmbia. Atendendo a este facto, poderiam de repente contrapor-nos o factor-tempo que interviera amplamente a favor da influência do Maghreb no Sudão. De facto, foi daí (do Magherb) que se desencadeou, durante toda a Idade Média, a dinâmica muçulmano-árabe no início do comércio transariano, judiciosamente posto em paralelo pelos historiadores com o comércio atlântico europeu que se estabeleceu somente a partir do séc. XV.O factor tempo actuou eficazmente em todos os processos de aculturação. Tem de se reconhecer este facto. Para o conjunto da Senegâmbia, os Portugueses apenas dispuseram de século e meio (da segunda metade do séc. XV até ao fi m do séc. XVI), em comparação com os três séculos, pelo menos, de comércio transariano.
Mas o factor tempo, embora muito importante, não é sufi ciente por si só. Há que acrescentar outros parâmetros igualmente válidos: as modalidades pelas quais se estabeleceram os contractos, a sua permanência, as reacções do meio de acolhimento, a posição geográfica da influência estrangeiram, o ambiente geral do espaço de acolhimento, enfi m, as personalidades socioculturais de cada uma das entidades em contacto. E a respeito da influência muçulmano-árabe no Sudão? É preciso notar que os comerciantes do Maghreb tinham sido duplamente bem-sucedidos nos seus contactos com o Sudão medieval: no plano económico, abriram caminho ao comércio transariano que assegurava os seus aprovisionamentos em ouro e escravos, essencialmente; no domínio religioso, conseguiram a conversão pacífica ao islamismo dos grandes soberanos locais, especialmente no Mali e no Songhay, onde se instaurou, a partir do séc. XIV, o hábito da peregrinação a Meca com o que isso trazia de irradiação à civilização muçulmano-árabe.
Recorda-se ainda a célebre peregrinação a Meca do imperador do Mali, Kanku Musa, no séc. XIV. Regressou ao seu país aureolado de glória e acompanhado de letrados e sábios muçulmanos, sendo de destacar o arquitecto Es-Sahéli, que muito contribuiu para a afirmação da arquitectura tão típica de Tombouctou e de Djenné.
No entanto, a originalidade da penetração muçulmana no Sudão Ocidental da Idade Média não reside apenas no seu carácter pacífico e aristocrático. Aparece também na emergência progressiva duma camada social africana seguidora de Marabu que, muito mais que os Brancos muçulmanos, assegurou o sucesso da difusão do Islão. Foram esses especialistas do Islão (os marabutos) que realizaram ao nível popular a islamização no Sudão Ocidental e até mesmo em certos enclaves da Senegâmbia. Repartidos em famílias, esses marabutos tinham-se espalhado por quase todo o Oeste africano, sendo focos de início da sua acção a curvatura do rio Niger (Tombouctou, Gao, Djenné).
Eram essencialmente de etnia saracolé ou mandinga, exceptuando o grupo étcnico marabútico que surgiu muito cedo também no vale do rio Senegal, no Tékrour, da etnia dos Peuls. Não é pois de surpreender a predominância do impacto muçulmano-árabe no Sudão Ocidental, bom fundamento nestes factos, alguns não hesitaram em falar do Islão negro antigo. Ora, nada disto se produziu verdadeiramente nas relações luso-africanas da Senegâmbia, onde o acolhimento aos Portugueses era apenas comercial.
Apesar da existência das Ilhas de Cabo Verde em que se tinha aclimatado a cultura portuguesa, apesar do aparecimento e da afirmação do crioulo português em certas regiões, o processo de aculturação iniciado pelos Portugueses permaneceu em estado embrionário. De facto, quase não houve conversões de soberanos locais ao Cristianismo. Nas raras ocasiões em que se verificaram, foram devidas mais à táctica política para prepararem um apoio militar da parte dos Portugueses contra uma ameaça de invasão, ou para eliminarem uma tribo rival. Em todos esses casos não houve referências a africanos que tivessem manifestado a sua vontade de proselitismo religioso, como fizeram os marabutos no espaço sudanês. É que o Cristianismo, nessa época, raramente tentou adaptar-se às realidades culturais e espirituais dos povos autóctones. Foi um pouco demasiado iconoclasta, incompreensivo e intolerante relativamente às práticas religiosas do meio. Era muitas vezes uma tal atitude que guiava a acção da maior parte dos missionários na Senegâmbia. A grande preocupação dos missionários do início do séc. XVI, como Baltasar Barreira, Manuel Álvares, Vitoriano Portuense e tantos outros, era primordialmente salvar as almas dos colonos portugueses em contacto com a África, ainda que levantassem de tempos a tempos e em certos locais conversões ao nível dos autóctones.
Este balanço da parte de Portugal não estava à altura dos trunfos de que dispunha à partida. É esse um dos grandes paradoxos do caso português na Senegâmbia. Sabemos que noutros locais, nos reinos Kongo da África Central atlântica, por exemplo, não se observa este paradoxo. A admiração dos soberanos Kongo pelo modelo ocidental cristão a partir do séc. xvi, se não tivessem sido posteriormente os incidentes nefastos do desenvolvimento do tráfico de escravos, poderia ter conduzido a um exemplo extraordinariamente fecundo de cooperação entre Portugal e a África negra. Também aí a experiência se modificou repentinamente para ter tomado uma orientação demasiado mercantilista da parte dos Portugueses. Não eram, pois, as oportunidades nem os trunfos que faltavam aos Portugueses na África atlântica para lá se estabelecerem e desenvolverem acções duradouras do tipo das que se verificaram no Sudão Ocidental medieval sob a influência muçulmano-árabe.
Na Senegâmbia, apontámos as contradições do fenómeno Lançados-Tangomaos, a repressão que sofreu da parte da Metrópole e dos agentes coloniais portugueses. E, no entanto, a presença portuguesa manifestou-se lá rapidamente pela constituição dum embrião de património edificado, com os fortes, as feitorias, especialmente ao longo da Costa que vai da Gâmbia, ao Norte, até S. Jorge da Mina, ao Sul, passando pela Serra Leoa.
A história continuará a interrogar-se sobre essa presença portuguesa na Senegâmbia no decurso dos sécs. 15, 16 e 17, onde dominou o comércio, servida pela sua colónia de povoamento das Ilhas de Cabo Verde, onde forjou uma língua e uma cultura crioula relativamente popular, onde beneficiou de simpatias políticas locais, graças às suas testas-de-ponte que eram os Lançados, sem que tudo isso fosse dar a algo de notável no plano arquitectural, por exemplo. Não dizemos que não haja absolutamente nada. Temos a toponímia, em uso ainda nos nossos dias; há também, a partir dos séc. 18-19, o aparecimento da habitação rectangular africana munida de varanda, de inspiração portuguesa.
Mas julgamos que, deste ponto de vista, a Senegâmbia poderia ter sido o primeiro Brasil dos Portugueses. De facto, a explicação, em última análise, de semelhantes paradoxos, aparentes ou reais, atribui-se ao facto de a África atlântica, ao contrário do Brasil, não ser de uma maneira geral uma tábua rasa política e demográfica. Há ainda a acrescentar que, aos olhos dos Portugueses da época, o continente, durante todo o período do Tráfico dos Negros, era considerado unicamente um reservatório donde se ia extrair mão-de-obra servil para o desenvolvimento das plantações das Américas.
Foi esta concepção estritamente economista da administração e dos colonos portugueses que anunciou o fim iminente duma fase importante das relações luso-africanas na Senegâmbia.

* Director do Património Histórico e Etnográfico no Ministério da Cultura, Dakar, Senegal.
* * Comunicação ao 1.º Congresso sobre o Património Construído Luso no Mundo, Março 1987.

Referência
Mané, M. — Algumas Observações Sobre a Presença Portuguesa na Senegâmbia até ao séc. XVII. Revista ICALP, vol. 18, Dezembro de 1989, 117-125.

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