É um opúsculo que encontrei na casa do alfarrabista João Soares, na Rua das Flores, Porto. É um vício meu andar por esses antros bafiosos... estou a brincar: são locais maravilhosos onde a memória se recupera ou vai à memória dos outros, mais além da sua. E é bom.
Foi escrito em Abril de 1957. Não sei quem foi o Fernando Seabra, a quem ele dedicou este exemplar em 1962. Quanto ao seu autor, Pio Coelho de Mendonça, só sei que é (ou foi?...) especialista em direito, com vários livros publicados, o último (Portugal e a cooperaçào com os Novos Paises de Expressào Portuguesa : Um estudo de direito internacional) em 1981, que não conheço, mas depreendo que estará já de acordo com a nova realidade decorrente das independências. Ele estava na Guiné em 1962 como se vê, mas não sei se estaria lá durante a guerra colonial. Da leitura deste opúsculo retrato-o como um homem cheio de contradições, a navegar serena e pacificamente nas águas do regime então vigente. Vão ver por alguns excertos que aqui trago (a obra tem 41 páginas...).
Há vinte e cinco anos, o eminente Dr. René Sand escrevia: «Dans notre monde, fait de contrastes, où l'on compte encore cinq millions d'esclaves, où le péonage et le travail forcé prolongent le servage, il ne faut pas aller bien loin pour revivre toutes les périodes de l'histoire. À deux journées de Marseille, des populations paissent leurs troupeaux, tissent leurs vêtements, préparent leur nourriture frugale comme le faisaient les tribus primitives. Là, nul ne luite contre des maux accablants; l'homme impose sa loi à la femme, traitée en bête de somme; les enfants ne sont ni protégés ni instruits; l'esclavage domestique fournit les serviteurs. Ailleurs, nous retrouvons à peu de chose près l'existence du paysan à l'époque féodale; dans des cabanes de bois ou de torchis, des familles entières, entassées avec les animaux qu'elles élèvent, sont livrées sans défense aux ravages des maladies, à la superstition, à l'ignorance, au dénuement. Les aveugles, les infirmes, les aliénés, les débiles de corps et d'esprit errent par les routes, mendiant leur pain, et se couchent dans un fossé pour mourir. Lorsque l'industrie s'installe dans ces pays, elle soumet les hommes, les femmes, les enfants à d'impitoyables conditions de travail» (René Sand, in Le service social à travers le monde, Armand Colin, Paris, 1931, pâg. 227).
[Tradução minha : No nosso mundo de contrastes, onde há ainda cinco milhões de escravos, onde a peonagem e o trabalho forçado prolonga a servidão, não é preciso ir muito longe para reviver todos os períodos da história. A dois dias de Marselha, as pessoas pastam os seus rebanhos, tecem suas roupas, preparam sua comida frugal como fizeram as tribos primitivas. Aí ninguém luta contra o mal opressor, o homem impõe a sua lei sobre as mulheres, tratadas como burro de carga, as crianças não são nem protegidas, nem educadas ; a escravidão doméstica fornece os servos. Além disso, encontramos quase exactamente a existência do camponês da era feudal ; em cabanas de madeira ou de lama e palha, famílias inteiras, misturadas com os seus animais, estão sujeitas sem defesa à devastação das doenças, à superstição, à ignorância, à miséria. Os cegos, os enfermos, os loucos, fracos de corpo e mente vagueiam pelas estradas, mendigando comida, e deitam-se numa vala para morrer. Quando a indústria se instala nesses locais, submete os homens, mulheres e crianças a cruéis condições de trabalho]
«Há vinte e cinco anos, em Marselha, e, infelizmente, é o ambiente actual de África, onde se faz sentir a necessidade de mais assistência médica, de mais assistência social, de mais cuidados com a penúria, para não dizer miséria do africano.
Esta miséria do africano é física, moral e espiritual, tocando todos os matizes.
E é justamente esta miséria que gera em África uma série de problemas e de situações que, se se localizam em território ultramarino, atingem seguramente fronteiras largas com repercussão em todo o mundo.
São problemas de trabalho, problemas de medicina e higiene industrial, problemas 'de formação profissional, de formação de quadros, de divisão profissional e técnica de trabalho; são problemas de ordem económica, social, política, agrária, etc., um mar de problemas.
Atolado neste complexo, o africano procura, naturalmente, uma orientação, um destino na sua vida. É sabido de todos que nos últimos anos se tem vindo a acentuar a presença europeia em África. A época da ocupação militar está superada e hoje caminha-se sobre o duplo trilho da ocupação científica e da presença económica e demográfica.
A África é objecto de estudo; o continente africano é a reserva de amanhã; é o escoadouro natural de uma Europa cansada.
Aí se buscam as reservas económicas e industriais, aí se começa a formar um «clima» de coisas que, se é certo ser produto do trabalho humano europeu, não é menos certo ficar sempre com a marca do meio ambiente.
É neste ambiente que o africano, o trabalhador africano procura um apoio, um arrimo e cuida havê-lo encontrado no sindicato, na organização sindical, esteio dos fracos perante um mundo industrial acelerado no seu desenvolvimento. Será esperança fagueira ou realidade sensível?»
Estende-se depois, por várias páginas, em explanações sobre a revolução industrial, a origem dos sindicatos, os operários e os não operários, o cariz marxista da luta de classes, o corporativismo implantado em Portugal como forma de conciliar interesses do patronato e dos trabalhadores, e os direitos destes perante o sistema. Avança de seguida sobre os direitos e condições dos "indígenas" em relação aos direitos dos europeus para discordar da sindicalização daqueles.
(...) Segundo o artigo 2.º do Decreto-Lei n." 39:666, de 20 de Maio de 1954 (Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique), consideram-se indígenas os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nas referidas províncias, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integrai aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses; são igualmente indígenas os indivíduos nascidos de pai e mãe indígenas em local estranho àquelas províncias, para onde os pais se tenham temporariamente deslocado.
Quer dizer, pelo corpo deste artigo 2.º é indígena o indivíduo de raça negra, ou seus descendentes, que, tendo nascido ou viva habitualmente naquelas províncias, não possua ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais.
Por outras palavras, um indígena deixa de o ser desde que esteja identificado com o teor de vida daqueles que não são indígenas. .
Há, neste conceito legal, três elementos que contribuem para a definição de indígena: a raça, a cultura e o território. O segundo elemento é predominante.
No artigo 64.º está indicada a única hipótese de perda da qualidade de não indígena (Não interessa, aqui, descer a minudências sobre o conceito de indígenas. A hipótese deste artigo 64.º refere-se ao não indígena assimilado; a qualidade originária de não indígena, ou cidadão, imutável Para desenvolvimentos sobre esta matéria veja-se o Prof. Adriano Moreira, in Administração da justiça aos indígenas, Lisboa, 1955, pág. 21.).
(...) Para efeitos de nacionalidade, ao conceito civil de domicílio acrescenta-se algo mais: basta o viver habitual em território português sujeito a indigenato. No Código Civil, fala-se em permanência; no Estatuto, fala-se em habitualidade.
Resta-nos falar dos direitos políticos dos indígenas. Para se tomar posição sobre este problema, temos de pôr um problema mais vasto: os povos colonizados devem ser encaminhados no sentido da independência politica, ou da autonomia administrativa conexada com o princípio da unidade nacional, ou da autonomia constitucional?
Eis o «punctum pruriens» [ponto incómodo do juízo, contestação – termo jurídico] da questão.
Na hipótese do primeiro caminho, reconhecia-se a um povo colonizado o direito de ser um sujeito de direito internacional público. Neste caso não há que falar em direitos políticos de indígenas, a menos que por esta expressão se queira significar o indivíduo natural de um determinado território. E são, então, indígenas, num território africano, tanto os indivíduos de raça negra como os de raça branca ou epiderme não negra (Cfr. Georges Le Brun Keris, in Mar! des Colonies, Paris, Le Centurion, 195õ, pág. 9, nota 2.). É, por exemplo, o caso na África do Sul.[onde os brancos eram indígenas diferentes, é sabido...]
Nesta tal hipótese, ter ou não ter direitos políticos é pura questão de direito constitucional, direito público interno.
Todo este problema, porém, é complexo, entronca em última análise, com um problema de fundo: o fim de uma colonização («Toda a colonização coroada de êxito tende a criar condições que tornem a sua continuação supérflua e impossível. É este o seu fim e de certo modo a sua justificação moral». Assim se exprime E. F. Gautier, in Le Sehere, Payot, Paris, ~. pág. 141.).
Procuremos, antes, precisar a posição portuguesa nesta matéria dos direitos políticos dos indígenas.
«No direito português, orientado pelo princípio da unidade nacional, o problema dos direitos políticos dos indígenas define-se em função do conteúdo e validade pessoal e territorial das garantias constitucionais. A tal respeito, o artigo 25.0 do Decreto-Lei n. o 59:666, de 20 de Maio de 1954, que aprovou o Estatuto dos indígenas portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, diz expressamente o seguinte: «não são concedidos aos indígenas direitos políticos em relação a instituições não indígenas. § único: os indígenas terão representantes escolhidos pela forma legal. nos Conselhos legislativo ou de governo de cada província.
«Deste modo, atribuindo à expressão direitos políticos o sentido que antes se definiu, em face da doutrina corrente, para os Estados que se orientem pelo princípio da unidade nacional, como entre nós acontece, e reservando a palavra cidadania para designar o estado jurídico caracterizado precisamente pela detenção dos poderes jurídicos pertinentes à intervenção no exercício da soberania, os indígenas integram uma categoria de nacionais que não são cidadãos, como não o são os não indígenas que não reunam as condições fixadas por lei.»
(...) Dissemos, atrás, que, após a definição de indígena, procuraríamos determinar a sua capacidade jurídica.
Ora, pelo que respeita a direitos políticos, o artigo 23.° do Estatuto dos indígenas diz que não são concedidos aos indígenas direitos políticos em relação a instituições não indígenas (metropolitanas).
Preferentemente a direitos civis, o artigo 3.º é claro: os indígenas regem-se pelos usos e costumes próprios das respectivas sociedades, devendo contudo as autoridades procurar harmonizá-los com os princípios fundamentais do direito público e privado português ( parágrafo 2.º).
O nosso Código Civil diz que só o homem é insusceptível de direitos e obrigações, isto é, ele tem a faculdade de praticar ou deixar de praticar certos factos, e a necessidade moral de praticar ou de não praticar certos factos (arts. 1.º e 2,°); e, se se estabelecem relações entre homens, como simples particulares, ou entre os homens e o Estado, dizemos que o homem tem capacidade jurídica, está integrado na ordem jurídica fixada no Código Civil (art. 3,°).
Quer dizer, o homem da Metrópole portuguesa tem personalidade e capacidade jurídicas. E o artigo 4.º do Código Civil diz que esses direitos e obrigações, de que o homem é suporte, derivam-lhe da sua própria natureza humana.
Numa palavra. não há coincidência entre o artigo 3.º do Estatuto e os artigos 1.º, 3.° e 4.° do Código Civil.
Temos, assim, a capacidade jurídica plena para o cidadão metropolitano integrado na grande ordem jurídica portuguesa, e temos o reconhecimento de uma situação jurídica particular a certos indivíduos integrados num dado meio social. No primeiro caso, está o natural da Metrópole; no segundo caso, está o natural do Ultramar, o indígena compreendido no artigo 2.° dos Estatutos.
Aquele cidadão da Metrópole tem capacidade de exercício de direitos; o indígena sofre de uma incapacidade de exercício de direitos, isto é, daqueles direitos compreendidos no Código Civil. Dizendo de outro modo, do facto da sua natureza humana não resulta para o indígena o reconhecimento quer da sua personalidade, quer da sua capacidade jurídica em pé de igualdade com o natural da Metrópole. O indígena sofre uma série de limitações à sua capacidade jurídica tal como vem nas diversas secções do Capítulo II dos Estatutos.
Os indígenas não têm personalidade jurídica, não têm capacidade jurídica à luz do Código Civil e da Constituição Política, mas estão para as ter. Isto é, o indígena e o cidadão metropolitano movem-se em esferas jurídicas que se penetram, por forma que, com o decorrer de uma evolução social e jurídica cautelosa (§ 2.° do art. 5.º dos Estatutos), na esfera jurídica deste se dá uma consumpção da esfera jurídica daquele; uma dilui-se na outra. Esta penetração significa integração.
(...) E se, dentro de uma sociologia corporativa, vemos, além do indivíduo, a pessoa humana, a verdade é que o trabalhador africano (indígena), como homem, está ainda, no domínio social, fortemente marcado pelos seus hábitos tribais e pela sua raça.[Isto é, os hábitos tribais e a raça limitam-no como pessoa humana...]
Ora, torna-se evidente que esta estruturação, e solução nela contida, não se pode ajustar a um meio africano que viveu alheio, senão indiferente à história social da Europa, um meio em que as infraestruturas se não constituíram ainda; com mais correcção, uma infraestrutura apegada ainda à natureza tribal e aqui e ali simplesmente perturbada pela presença fugaz de uma sociedade europeia flutuante.
A caracterização de uma classe média está longe de ter sido sequer iniciada.
Conclui-se, assim, não ser viável pensar-se em transplantação de um sistema corporativo para território africano; não é viável a criação de instituições sindicalistas em terrifórios de África (Mussolini disse que o Fascismo, é "une marchandise qui ne peut pas être exportée", apud M. Manoilesco, op. cit., pág. 14. BOA CITAÇÃO!!). É que estes não possuem a sua Idade Média, esse cadinho admirável de formação das nacionalidades europeias.
Entende-se, deste modo, que a existência de sindicatos corporativos ou socialistas, em África, além de significar obliteração do seu próprio sentido, traduz ainda o desconhecimento da realidade social e histórica do meio. Seria uma experiência antecipadamente condenada a descrédito. Não esqueçamos, a luta sindical é fruto sobretudo daquela Revolução Industrial do sécúlo XVIII. A África está longe de haver atingido um tamanho grau de desenvolvimento industrial.
O sindicalismo. quer na sua forma socialista, quer na sua expressão corporativa, tem um longo tempo de elaboração.
Não se pode aplicar à África o que lhe é estranho [e a civilização europeia e cristã?!...]: seria pretendermos dar a territórios irnpreparados, em evolução, soluções definitivas de nações civilizadoras.
Vimos atrás a função dos sindicatos e ressalta, à evidência, que é absolutamente impossível esperar dos sindicatos africanos, à moda europeia, o desempenho daquelas mesmas funções. Falar, nesse caso, de sindicatos ou de organização sindical é o mesmo que dizer arremedo.
Quando se quisesse dizer que o sindicalismo era uma solução social afirmávamos a sua própria condenação. Tudo requer o seu meio adequado.
Não devemos esquecer que o trabalhador africano, ao contrário do operário europeu, não tem atrás de si um passado de trabalhador: o seu antepassado é a escravidão, é a servidão, é o trabalho forçado [e na Europa não foi?...]; não tem, ao invés do europeu, um passado de formação profissional e, por isso mesmo, ele não sabe ainda desprender de seus olhos a visão de que o dono da empresa é um ser todo poderoso a quem tudo deve sacrificar [isto é que é civilização!...] - inclusive a solidariedade com o companheiro.
[Mas parece que já havia sindicatos "indígenas"...]
(...) De igual modo dizemos que o sindicalismo corporativo não pode de maneira alguma mitigar sequer os sofrimentos, as necessidades e o mal-estar do trabalhador africano, porque aquele é fruto. de um labor secular num meio social evoluído, fonte da própria civilização que se dilata ensinando em África.
Rejeitamos, assim, a ideia de um Sindicato dos Empregados do Comércio e Indústria, um Sindicato Nacional dos Operários da Construção Civil, um Sindicato Nacional dos Motoristas (Estes Sindicatos foram criados, em Moçambique, pelas seguintes respectivas Portarias: Porrerie n.º 7:467, de 14 de Agosto de 1948, Portaria n.º 7:466, de 14 de Agosto de 1948 e Portaria Ministerial n.º 10:422, de 22 de Junho de 1943. Não havia indígenas em Moçambique?...), porque não só se fundem num mesmo sindicato trabalhadores de ramos profissionais diferentes, como ainda esses sindicatos abrangem apenas os cidadãos, deixando de fora os trabalhadores indígenas. É a própria negação do espírito corporativo português.
Se alguma coisa se quer fazer para a protecção das classes trabalhadoras, criem-se antes ASSOCIAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA CONSTRUÇÃO CIVIL, ASSOCIAÇÃO DOS EMPREGADOS DO COMÉRCIO, ASSOCIAÇÃO DOS EMPREGADOS DA INDÚSTRIA, etc.: aqui o espírito será cristão, mais tradicional português e os interesses de todos são protegidos.
E, no fundo, a grande solução dos problemas sociais dos trabalhadores africanos, ou em África, está na observância dos ensinamentos de Deus.
Sejam os homens servidos do espírito do Evangelho, fonte inexaurível, e aí poderão aprender a amar-se reciprocamente, como filhos de Deus.»
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