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6 de dezembro de 2011

319-As causas do conflito de 7 de Junho de 1998 na Guiné-Bissau

É com muito gosto que trago aqui ao conhecimento dos leitores deste blogue mais um guineense da diáspora com craveira intelectual, o qual, como outros, infelizmente, se vê não (poder?...) estar a exercer as suas capacidades na Guiné-Bissau. Estão lá outros, sem dúvida, mas com mais os que estão "fora" (Julião Soares SousaLeopoldo Amado, Carlos Lopes, Lourenço Ocuni Cá... e mais) não seriam demais para a abertura do caminho do progresso naquele país.



É o autor deste artigo, José Ampagatubó, Licenciado em Sociologia em 1985 e Mestre em Estudos Africanos em 1995 pelo ISCTE, Doutor em Ciência Política pela Universidade Lusófona em 2009. É Professor desta Universidade.



As causas do conflito de 7 de Junho de 1998 na Guiné-Bissau
 Resumo
O conflito na Guiné-Bissau deve-se principalmente às políticas de desenvolvimento erradas durante os anos de governação do PAIGC. Políticas que visavam a reprodução social dos dirigentes do partido e da classe-Estado em geral. Esse objectivo conduziu o PAIGC à implementação de uma estratégia de desenvolvimento que não teve em conta a população. Durante esse período, a maior parte da sociedade, especialmente a residente no interior, foi marginalizada. Na Guiné pós-colonial a marginalização esteve ligada, em parte, à continuidade do modelo centro-periferia herdado do colonialismo. Este modelo rejeita a cultura tradicional, vista pela élite do país como atrasada. Nesse contexto, o Estado tratou a sociedade periférica como sendo-lhe exterior. Por seu lado, a grande maioria da sociedade encarou o Estado como uma simples emanação do centro - uma instituição exclusivamente com raízes na sociedade central. As práticas do Estado pós-colonial na Guiné-Bissau traduzem os principais interesses dos dirigentes do PAIGC e da classe-Estado em geral. Para inverter essa tendência, as Forças Armadas, o elo privilegiado entre a sociedade central e a periférica, reagiu para restabelecer a igualdade e a justiça social no país.
Enquadramento
A Guiné-Bissau teve uma particularidade histórica que foi a obtenção da independência política, depois de 12 anos de luta armada para a libertação nacional. A este propósito Emmanuel Ogbolu afirmava: «O Estado da Guiné-Bissau, mais do que qualquer outro Estado novo independente, deve muito à sua sociedade» (1).
Esta singularidade histórica na Guiné-Bissau, originou fortes expectativas por parte da população guineense e da comunidade internacional, pois esperavam que o processo da condução e gestão da luta armada desenvolvido pelo PAIGC pudesse proporcionar o surgimento de um Estado pós-colonial “ideal”, servindo deste modo de referência “pedagógica” para outros países africanos, porque o poder ia ser assumido por um movimento de libertação caracterizado por um discurso revolucionário e/ou porque o respectivo movimento se reclamava de modelo socialista.
Foi precisamente este discurso político de tendência socializante, utilizado durante o processo da luta armada contra a presença colonial e materializada através de um enorme esforço na tentativa de uma articulação coerente entre a ideologia e a prática política, que muito contribuiu para a mobilização da população e para a sua disponibilidade em aceitar os sacrifícios resultantes da participação na luta. «Nas regiões libertadas da Guiné-Bissau há uma situação concreta e específica que é a existência de um Partido-Estado. Mas de um Estado em desenvolvimento. No território livre da Guiné-Bissau o povo detém o poder nas suas mãos, organiza-se e através do Partido, exerce efectivamente o poder que se consolida. Na realidade são os Comités do Partido que administram as populações e os territórios, dirigem o povo, assumem responsabilidades no plano da educação, da saúde, do estado civil, julgam, reprimem e garantem eficazmente, com os meios de defesa apropriados, a segurança e a liberdade conquistadas. Nas regiões libertadas da Guiné há uma organização administrativa paralelamente ao Partido, tribunais, calabouços, exército, milícia, serviço de segurança, de saúde, de instrução e outras coisas que são órgãos ou partes constituintes dum Estado. Em cada tabanca (aldeia), existe um “Comité de Tabanca” que se encarrega da administração e de controle de todas as actividades respeitantes à vida política e civil da população. Segundo a decisão do PAIGC, em cada “Comité de Tabanca, devem participar duas mulheres ou uma mulher, conforme o número dos componentes do Comité»(2).
Tudo indicava que o PAIGC viria ser uma inovação no que diz respeito ao funcionamento do Estado pós-colonial em África, assim que assumisse o poder no país. Deve acrescentar-se que, neste contexto, o ideal democrático serviu de base à propaganda política do partido contra a natureza autoritária do Estado e o regime colonial (3).
Paulette Pierson-Mathy dizia a este respeito: «O objectivo principal da luta consistia fundamentalmente em acabar com a dominação colonial e liquidar a ocupação estrangeira, único obstáculo a criação de um Estado independente onde vigoraria a democracia revolucionária»(4) implicando isto o seguinte:
1 - Todos os grupos sociais participariam activamente na elaboração e implementação dos planos de desenvolvimento;
2 - O Estado deveria organizar as suas estruturas e as suas instituições, controlar as suas actividades fundamentalmente económicas de acordo com os interesses da população (5).
Porém os acontecimentos pós-coloniais na história da Guiné, o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, as inúmeras iniciativas de género falhadas, o caso de 7 de Junho de 1998, o balanço geral da governação do regime do PAIGC, tornaram evidente que, pelo menos, reletivamente às grandes linhas, tudo ficou longe de ser concretizado.
O que é que terá falhado ?
É o que iremos tentar analisar seguidamente ao longo da nossa exposição.
1 - A composição da formação e a base social do Estado
A base social do Estado pós-colonial na Guiné é essencialmente constituída pela pequena burguesia organizada como classe-Estado resultante da presença colonial na Guiné. Este segmento é o único grupo social que, devido à sua aproximação aos colonizadores, reunia as condições culturais para apropriar-se do Estado herdado da potência colonial. O anteprojecto de tese relativo ao 1º congresso do PAIGC dizia : "na nossa sociedade não existe burguesia nacional. A pequena burguesia, composta de pequenos proprietários, comerciantes, industriais, empregados, funcionários, trabalhadores e intelectuais, continua a exercer o importante papel no processo da construção nacional, pelo facto de que, devido aos seus conhecimentos, constitui o único grupo capaz de gerir e fazer funcionar o aparelho de Estado (6).
No seu relacionamento com o colonizador e a comunidade internacional em geral, esta classe-Estado utiliza o Português, tanto na linguagem escrita como na oral. Internamente, para uso quotidiano, utiliza o crioulo. A sua sensibilidade, inclui necessidades de consumo que muito pesam na política económica do país cuja extroversão vai de encontro às necessidades do Hemisfério Norte, de escoar os seus produtos.
Nesta ordem de ideias, o “falso luxo”, as despesas de prestígio, os “acessórios artificiais que oneram a economia, etc., não revelam simples taras irracionais, como à partida pode parecerr, mas são sim subprodutos culturais da dominação colonial (7).
Ao fornecer modelos culturais que condicionam a sensibilidade económica e o estilo de consumo, a cultura colonial estabeleceu sobretudo um modo de vida copiado do praticado nos países onde predomina a racionalidade de tipo weberiana(8). É o que caracteriza uma parte da formação social guineense donde o grosso da actual classe-Estado é originária, e que aspira a viver segundo o modo de vida das burguesias ou, pelo menos, burguesias europeias e dos Estados Unidos da América. Esta classe-Estado, não sendo movida por qualquer preocupação ou vontade de acumulação de capital, interessa-se sobretudo em satisfazer a sua necessidade de ostentação relativamente a vivendas sumptuosas, extravagância, automóveis, entre outros. Luxo esse que sai muito caro ao país (9). «Por isso, as políticas pós-independência vieram significar uma nova aliança,uma partilha do poder entre o PAIGC e a burocracia do Estado (10).
Durante a governação do PAIGC, a classe-Estado não fez de todo, alianças efectivas com a população onde predomina a racionalidade “tradicional”. As consequências desta falta de alianças repercutiram-se num nítido desprezo pelo interior, em matéria de desenvolvimento. As poucas excepções que podem ser apontadas, situam-se no leste do país (o projecto agrícola de cuntubel, praticamente fracassado e um centro cultural islâmico nunca terminado). Trata-se de zonas islamizadas e, como tal, não se pode deixar de supor que o motivo destas excepções foi o interesse em suscitar a boa vontade e subsequentes apoios económicos, da parte dos países árabes ricos. Esta orientação levou muito rapidamente à dissolução da aliança do PAIGC com os camponeses, nomeadamente os do litoral. Sem base económica própria, o Estado (independente do seu povo), ficou cada vez mais dependente da ajuda exterior, e cada vez menos importante no próprio país (11).
Estes factos evidenciam bem como os interesses dos dirigentes do PAIGC e da classe-Estado em geral constituiram parâmetros fundamentais das práticas do Estado, independentemente dos discursos programáticos e ideológicos que defendiam.
2 – Relação institucional entre o Estado, o PAIGC e a sociedade
Nos países capitalistas da Europa onde nasceu a instituição Estado tal como é aceite hoje e onde existe uma separação clara de poderes e de funções, ninguém confunde o lugar e o papel dos partidos políticos e do próprio Estado, pois existe uma “cultura política” que corresponde ao modelo institucional que o torna praticável. Na Guiné-Bissau o processo histórico vivido até à independência não permitiu obviamente, que existisse uma “cultura política” semelhante. As instituições políticas de carácter exógeno, passam por isso a funcionar de maneira extremamente complexa com sistemas de relacionamento cujas práticas se afastaram muitas das vezes do modelo formal. É o que Carlos Cardoso e Faustino Imbali defendem do seguinte modo:«Se, teoricamente, as estruturas de funcionamento destas instituições parecem claras e distintas, na prática torna-se necessário o uso da lupa para compreender a complexa relação que existe entre o político, o económico, o social e particularmente o doméstico (família, parentesco)» (12).
2.1 – O PAIGC e o Estado
É importante recordar que no momento da proclamação do Estado da Guiné-Bissau em 24 de Setembro de 1973, o PAIGC não deixou de exercer o papel de dirigente, como o de partido-Estado, cargo esse que desempenhou durante a luta da libertação. Aliás o art.6º da primeira Constituição dizia: «O PAIGC é a força dirigente da sociedade. É a expressão máxima da vontade soberana do povo. Ele decide a orientação política da política do Estado e assegura a sua realização pelos meios apropriados» (13).
Esse papel do PAIGC, legitimado pela Constituição foi exercido de tal forma que o partido em referência esteve presente na definição de todas as grandes linhas da política do Estado inclusive na elaboração das estratégias de desenvolvimento. O PAIGC tornou-se omnipresente em todas as esferas das actividades da sociedade guineense. Esta omnipresença assim como a lógica patrimonial que se combina e se mistura com as outras lógicas, é acima de tudo justificador da não separação efectiva dos poderes. Para além da subordinação do Estado ao PAIGC, a relação vertical resultou também do fraco relacionamento horizontal entre os diferentes aparelhos de Estado. A situação complexificou-se ainda pelo facto de todos os dirigentes do PAIGC, terem sido ao mesmo tempo quadros-chave dos aparelhos administrativo, militar e económico do Estado. Foi assim posto ao serviço do PAIGC o Estado pós-colonial na Guiné-Bissau. Neste contexto pode citar-se Carlos Cardoso e Faustino Imbali nos seus trabalhos sobre esta matéria: Um outro factor explicativo é sem dúvida o sistema do partido único. Este sistema serviu de organização política comum a todos os Estados africanos (quer fossem eles socialistas, marxistas-leninistas, revolucionários ou de inspiração dita liberal). Teoricamente, o sistema de partido único foi justificado pelos imperativos do desenvolvimento económico e social e sobretudo pela preocupação da unidade nacional (construção da nação). Só que os acontecimentos ocorridos durante os trinta anos findos, mostraram que o sistema de partido único tanto não conseguiu resolver o problema da integração nacional como falhou na tarefa da promoção do desenvolvimento sócio-económico. Este sistema, segundo Abdoulaye N. Souley (Textos II Ap: 1991 ) “ identificou-se com um homem (Bokassa, Bongo, Mobuto, Houaphlhouet Boigny, Eyadema e outros”). Daí tudo começou e o resto é conhecido: pouco importa o ideal nobre sobre o qual se funda a legitimidade do partido único, só conta o acesso aos recursos do Estado. A Guiné-Bissau, infelizmente não constitui a excepção à regra (14).
A omnipresença do PAIGC nas estruturas do Estado decorrente do sistema monopartidário assim como da luta das elites então no poder, pelo acesso aos recursos estatais, e a própria indiferenciação de poderes, foi uma das principais causas da “confusão” que se instalou entre as diferentes instituições. Ao mesmo tempo, e com consequências porventura ainda maiores, houve uma diluição dos limites entre o público e o privado, de tal modo que se pode, na linguagem de Jean-François Médard, falar de um Estado “neo-patrimonial: «No Estado neo-patrimonial não é só a indiferença entre o domínio privado e público que se observa, mas existe também um conflito entre as normas privadas e públicas principalmente interiorizadas. Ora, importa distinguir as duas situações: nos casos em que se ignora a existência de normas, a ideia mesma de corrupção não faz nenhum sentido; quando se reconhece a existência de normas, mas não se as respeita, a ideia de corrupção então tem sentido. A mesma prática de natureza patrimonial não tem o mesmo significado nas outras situações. O neo-patrimonialismo, corresponde a esta situação híbrida, na qual a lógica patrimonial combina-se e mistura- se com as outras lógicas»(15). É o que de facto caracterizava o PAIGC durante a sua governação da Guiné.
2.2 – A sociedade e o PAIGC
Durante todo o período de governação do PAIGC, a sociedade guineense, sobretudo aquela onde vigora a racionalidade “tradicional”, foi marginalizada. Essa marginalização deve-se de certo modo à continuação na Guiné pós-colonial do modelo centro- periferia, que está na base de um certo desprezo da cultura tradicional, tida geralmente como atrasada por parte da elite do partido em referência. O relacionamento entre ambos, caracterizava-se por um certo “paternalismo” no âmbito da política de enquadramento implementada pelo partido. A estrutura partidária estava muito centralizada. A sede do PAIGC encontrava-se em Bissau e os comités de tabancas e outras células do partido não passavam de instrumentos de legitimação do PAIGC, como força dirigente da sociedade e do Estado.
2.3 – A sociedade e o Estado
A distância que separava a sociedade central das sociedades periféricas durante o período colonial, não diminuiu significativamente com a independência do país. No âmbito do modelo centro-periferia o Estado via as sociedades periféricas enquanto “exterior”; e estas por sua vez, viam o Estado como emanação do centro; isto é, uma instituição cujas raízes encontram-se exclusivamente na sociedade central. Este ponto é consensual entre os autores guineenses e não guineenses que estudaram a matéria.
Philip J.Havik dizia assim ao citar Carlos Lopes: «Lopes, arguindo também ele de uma perspectiva socialista, toma como ponto de partida a contradição entre a análise racional burocrática e a étnica. Nota que o partido, outrora instrumento de mobilização do campesinato, se tornou politicamente subserviente em relação ao Estado, transformando-se assim, após a independência, em instrumento de um grupo restrito de privilegiados, institucionalizando o nepotismo, a corrupção e o autoritarismo afastando-se da sua base militante camponesa. Ao abandonar a sua função mobilizadora, o PAIGC converteu-se num veículo ao serviço da vanguarda pequeno-burguesa instalada em Bissau, mancomunada com uma classe média burocrática e mercantil herdada da era colonial – os “assimilados” – e oposta aos interesses dos camponeses, fomentando deste modo a luta de classes. Este seccionalismo divisionista com implicações étnicas deixou a mais militante das forças políticas, a Forças Armadas (FARP), com a sua ampla base camponesa, como única instituição unificadora dentro do Estado» (16). E acrescentava ainda assim ao citar o trabalho de P. Chaval sobre esta matéria: « A centralização do Estado em Bissau, o monopólio do partido único e a subsequente repressão exercida sobre a população rural em nome dos interesses de uma burocracia burguesa e maioritariamente caboverdiana, são essencialmente vistos como o insucesso dos dirigentes do PAIGC após a morte de Cabral, em 1973»(17)
Paralelamente a esta situação, o próprio reconhecimento pela “comunidade internacional” do Estado pós-colonial, como o único interlocutor válido, originou fissuras de natureza diversa no seio do partido e da classe-Estado em geral. Essa fissuras manifestaram-se na existência das clivagens relacionadas com a constituição da respectiva formação social, assim como nas formas de clientelismo político verificados durante o regime do PAIGC. As consequências daí resultantes, não afectaram porém a dinâmica da reprodução da classe-Estado, assim como as lógicas a ela associadas.
Neste contexto, Philip J. Havik dizia ao citar Joshua B. Forrest: «Sem que houvesse qualquer tipo de contactos regulares e organizados entre o Estado e a população, o primeiro esforçou-se por captar os agricultores e a sua capacidade de produção, ao mesmo tempo que obtinha empréstimos do estrangeiro, com o objectivo de tornar-se institucionalmente autónomo da segunda e, assim, reforçar o controle burocrático, o poder económico e os privilégios dos seus próprios membros». E acrescentava ao referir os trabalhos de Rosemary Galli: «Ao estudar o contexto histórico de cujo seio o Estado independente da RGB emergiu, Galli analisa as raízes da estratégia de desenvolvimento do PAIGC, as suas semelhanças com as políticas introduzidas pela administração colonial a partir dos anos de 1920 (período do Estado Novo) e as razões do seu fracasso. Examinando pormenorizadamente a estrutura social passada e presente da RGB, identifica o modo como ela regula o acesso de grupos e elites aos recursos essenciais, descrevendo os meios de que o Estado pós-independência (através de uma continuada cobrança de impostos e da imposição de um sistema de preços e de mercado monopolista, num estilo claramente neocolonial) se serviu para explorar os camponeses, minando assim a base da sua própria sobrevivência»(18).
3 – A política económica durante o regime do PAIGC
Sobre a política económica implementada pelo PAIGC, há duas observações a fazer: uma relacionada com a presidência de Luís Cabral e a outra no tempo de João Bernardo Vieira.
Durante a presidência de Luís Cabral, o PAIGC optou por uma estratégia de desenvolvimento económico autónomo das populações. Estimulado pela reputação internacional de que o PAIGC gozava aquando da independência, o partido dispensou a ajuda da população para a resolução dos problemas económicos do país e contentou-se com o apoio que recebia do exterior. Os únicos meios de contacto entre a população e o PAIGC eram nos períodos de cobrança do então chamado “imposto da reconstrução nacional”e na altura das colheitas do amendoim, com o preço deste, assim como o de outros produtos agrícolas, a ser controlado pelo Estado. Só pontualmente o contacto entre as duas entidades era feito, sobretudo aquelas vezes que o PAIGC sentia a necessidade de sensibilizar a população para algo do seu interesse. Enquanto fazia isto preparava ao mesmo tempo um alargamento da base de reprodução da classe-Estado em formação, através da nacionalização de importantes sectores da economia.
A tentativa de industrialização do país, durante a presidência de Luís Cabral, foi estimulada pela ajuda externa que, por sinal, não era desinteressada, pois permitia a exportação para a Guiné do correspondente equipamento. De qualquer modo, e uma vez que as empresas industriais seriam sempre estatais, esta forma de “cooperação internacional” fortalecia a classe-Estado e o seu domínio sobre a restante sociedade. É precisamente a vontade de auto-reprodução da classe-Estado que explica a sua preferência por tecnologia sofisticada durante a tentativa de industrialização do país. Estas tendências levaram algumas vezes a projectos fora de proporção e sem qualquer viabilidade num país de dimensões reduzidas como a Guiné-Bissau. Um exemplo disto foi o complexo agro-industrial do Cumeré. Criado pelo Estado pós-colonial na Guiné, como forma de substituir as importações foi claramente megalómano em relação à capacidade real da produção e do consumo do país.
No que diz respeito à presidência de “Nino” Vieira, esta apresentou-se como resposta aos erros da estratégia económica adoptada na década dos anos 70. Notou-se sobretudo nos primeiros anos, um discurso ideológico que dava prioridade ao sector agrícola dentro da economia nacional por forma a contrariar a extrema dependência externa em matéria de produtos alimentares, nomeadamente do arroz. Todavia o discurso ideológico não correspondeu à prática política do governo; pois havia uma atitude ambígua em termos de modelos de desenvolvimento o que levou até há pouco tempo, a não se saber que estratégia económica estava a ser implementada.
As infra-estruturas de prestígio, criadas no primeiro governo de Luís Cabral, foram na sua totalidade deixadas de lado com o argumento da sua inadequação. Em seu lugar, não se fez nada de importante, mesmo a nível da própria agricultura. Esta situação fez com que a população, sobretudo a do mundo rural, se apercebesse muito cedo de que a suposta questão dos “burmedjus” (mestiços de pele clara) apresentada pelo regime, como uma das causas de golpe de Estado de 1980, assim como a política da “concórdia nacional”, não passavam de formas de mobilização da sociedade guineense em defesa do acto consumado e de estratégias de legitimação do poder de então. Mais uma vez a população ficou frustrada nas suas esperanças de uma maior justiça social; esperanças que o próprio golpe de Estado suscitou e que não passaram de um sonho.
Esta análise é extremamente fecunda para a compreensão das lutas políticas pelo controlo dos aparelhos do Estado, mas também da recusa quase sistemática dos camponeses em colaborar com as políticas propostas pelo governo no âmbito das suas estratégias de desenvolvimento económico do país. O que estava em causa para os camponeses ou melhor ainda, para aquela sociedade onde vigora a racionalidade “tradicional”, não era só o problema da distribuição equitativa de recursos e oportunidades, mas a sobrevivência ou desaparecimento do seu mundo sócio-económico e cultural perante as incertezas trazidas pelas omissões e práticas do Estado e da classe-Estado.
4 – Os militares
Os militares, anteriormente heróis da luta de libertação nacional, também foram marginalizados pelos dirigentes do PAIGC. Durante os primeiros anos da conquista do poder por parte do PAIGC, foram os que mais sentiram os custos da independência. Entre os finais do ano de 1974 e meados de 1975, não receberam nenhum salário digno desse nome; e quando o recebiam era sempre tardiamente. Até hoje os salários permanecem baixíssimos e manifestamente insuficientes para sustentar as famílias. Facilmente via-se nas ruas de Bissau comandantes a transportar às costas para os bairros da capital, o seu saco de 50kg de arroz ou soldados a pedir cigarros na rua.
Simultaneamente, houve no primeiro e no segundo regime do PAIGC uma certa instrumentalização das forças armadas na luta pelo poder entre fracções no interior do partido. As clivagens que este envolvimento provocou, repercutiram-se inclusivamente nas promoções no seio das forças armadas, transformando-as num foco de instabilidade política.
A instabilidade nas forças armadas agravou-se subitamente quando a Guiné-Bissau foi obrigada a enveredar por um liberalismo económico desenfreado que lançou o país numa “verdadeira anarquia económica “que tem servido para abrir caminho a todas injustiças sociais, criando condições para a consolidação da classe-Estado e do grupo ligado aos homens de poder em particular. Tanto a classe-Estado como os homens ligados ao poder, aproveitaram-se da situação para fazerem em pouco tempo verdadeiras fortunas pessoais em detrimento da população e inclusive da maioria dos militares.
5 – Duas racionalidades em disputa: a “tradicional” e a “moderna” de tipo weberiana
Na sequência da nossa exposição anterior, conclui-se que uma das causas do conflito de 7 de Junho de 1998, deve-se à coexistência de duas historicidades fulcrais que condicionam as atitudes e os comportamentos económicos, culturais, religiosos, étnicos e sócio-políticos guineenses: a historicidade do litoral e a do interior do país.
Ambas, traduzem-se na existência de respectivas racionalidades: uma de tipo weberiana e a outra de tipo “tradicional”.
A racionalidade de tipo weberiana não se adaptou durante toda a governação do PAIGC à racionalidade de tipo “tradicional” e esta, por sua vez, não compreendeu a primeira. Esta constatação foi demonstrada ao longo da nossa exposição pelos vários fracassos das políticas económicas e sociais implementadas pelo partido em referência.
O fracasso fez com que as duas racionalidades vivessem de costas voltadas duma da outra; isto, porque o Estado teve a sua origem no sector da sociedade onde predomina a racionalidade de tipo weberiana que considera as outras racionalidades como “exteriores” e estas por sua vez vêm o Estado como emanação do centro.
Esta constatação deve-se ao facto, como temos vindo a evidenciar ao longo da nossa exposição, de que os interesses (percebidos) do sector onde prevalece a racionalidade weberiana (centros urbanos), constituiram-se quer desde início, quer passo a passo, como parâmetros do Estado pós-colonial.
A justificação deste comportamento deve-se fundamentalmente à formação social muito complexa (heterogénea) que surgiu na Guiné a partir da última fase da era colonial; formação essa cuja estrutura básica corresponde essencialmente ao modelo centro-periferia; isto é a existência de uma “sociedade central” “moderna” com base nas cidades e nos seus prolongamentos e “sociedades periféricas” geralmente rurais e “tradicionais”.
Ora então o que justifica o conflito e o papel assumido pelas forças armadas nessa mesma guerra civil?
A resposta a esta questão é simples: é que as forças armadas guineenses constituem o importante elo de ligação entre as duas racionalidades em disputa; pois, o grosso dos elementos das forças armadas vem da outra sociedade que obedece a outras lógicas (racionalidade tradicional).
Ora, numa disputa de racionalidades em que a racionalidade “tradicional” é vítima das estratégias de reprodução social da sociedade central e da classe-Estado em particular, os militares (elo de ligação das duas sociedades: central e periférica, e a mais militante das forças políticas), eles próprios maioritariamente originários da sociedade periférica e também marginalizados pelas mesmas razões acima apontadas, tiveram que reagir como sempre, para reporem a igualdade e a justiça social naquele país. De resto tudo caberá aos partidos políticos e à sociedade civil em geral, continuar o trabalho feito na consolidação da democracia na Guiné-Bissau.

Notas
(1) Ver Emmanuel Ogbolu, 1986, pág.13
(2) Ver PAIGC, 1974, págs.159-160
(3) Ver Emmanuel Ogbolu, 1986; ver ainda, Yves Benot, 1975; Rob Buijttenhuijs & Elly Rijnierse, 1993; Paulette Pierson-Mathy, 1980
(4) Ver Paulette Pierson-Mathy, 1980, pág.39 (tradução do autor)
(5) Ver Jean Ziegler, 1978; PAIGC, 1974.
6) Ver Lars Rudebeck, 1982; Gertrud Achinger, 1986
(7) Ver Jaques Bugnicourt, 1973; Hassan Ibn Talal, 1989; Pereira Jacquemont, 1988 e C.Meillassoux, 1970
(8) Ibid.
(10) Ver Jaques Bugnicourt, 1973; Hassan Ibn Talal, 1989; Pereira Jacquemont, 1988; C.Meillassoux, 1970
(11) Ibid.
(12) ver Carlos Cardoso e Faustino Imbali, 1993; Franz W.Heimer, 1990
(13) Ver PAIGC, 1973
(14) Ver Carlos Cardoso e Faustino Imbali, 1993; Franz-W.Heimer, 1990; Pierre Jaquemot, 1988 e Isac G. Shivji, 1980
(15) Ver Jean-François Médard, 1991,(tradução do autor).
(16) Ver Philip J.Havik, 1982
(17) Ibid
(18) Ver Philip J. Havik, 1993


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