Os acontecimentos que se desenrolaram na Capela do Rato, nos últimos dias de 1972, enquadram-se num movimento crescente de contestação à guerra colonial que alastrava na sociedade portuguesa, sobretudo nos sectores mais politizados ou mais directamente afectados pela sua continuação, como era o caso da juventude. A vigília do Rato teve, aliás, como precursora a ocupação da Igreja de S. Domingos, em Lisboa, em 1 de Janeiro de 1969, também feita por um grupo de católicos, conhecidos então por «progressistas». A data de 1 de Janeiro de cada ano fora escolhida pelo papa Paulo VI como dia dedicado à Paz, na sequência da célebre encíclica de João XXIII Pacem in Terris. Naquela igreja, após a missa da meia-noite da passagem do ano, celebrada pelo cardeal Cerejeira, um grupo de fiéis comunicou-lhe, através de um texto que lhe foi lido, a sua decisão de permanecer no interior da igreja até ao dia seguinte, em clima de reflexão sobre a paz, na situação de guerra como era a de Portugal. Para esta vigília a poetisa Sophia de Mello Breyner tinha composto o poema que depois se celebrizou «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar». Ouviram-se muitos testemunhos de vários dos presentes, entre eles jovens que tinham combatido nas colónias, e sustentou-se um vivo debate com o pároco da igreja, que também permaneceu, com a intenção de impedir a vigília. Na manhã seguinte, os fiéis saíram da igreja já sob a vigilância da PIDE, que todavia, para não dar alarde ao caso, não efectuou prisões.

A escolha da Capela do Rato, situada na Calçada Bento Cabral, para esta acção ficou a dever-se ao facto de se tratar de um local de culto dirigido pelo padre Alberto Neto, frequentado pelos meios mais inquietos da comunidade católica, e que se tomara conhecido pelas inovações litúrgicas e pelas preocupações de ordem social promovidas e proclamadas por aquele sacerdote.
Para o dia 1 de Janeiro de 1972 a palavra de ordem de Paulo VI era imperativa: «A paz é possível, a paz é obrigatória.»No decurso da sua mensagem, o Papa proclamava que era através do diálogo, e não da guerra, que se deviam procurar as soluções para os conflitos. Tal como em ocasiões anteriores, e perante a atitude da hierarquia católica portuguesa que silenciava as directivas de Roma nesta matéria, o grupo de católicos que promoveu a vigília assumia por inteiro aquela palavra de ordem e propôs-se tirar dela consequências práticas.
Nos dias 30 e 31 de Dezembro as portas da capela estiveram abertas de par em par, sem prejuízo no entanto para os oficios religiosos habituais nos fins-de-semana. Centenas de pessoas improvisaram assembleias de discussão, testemunhando o seu ódio à guerra, dissertando sobre os inconvenientes morais e materiais que ela produzia e proclamando a necessidade urgente de lhe pôr cobro, sublinhando o seu carácter injusto. Afixados nas portas, diversos cartazes transcreviam números relativos aos mortos em combate, às populações das colónias dizimadas e aos estropiados de ambos os lados.
Mas a repressão não tardou.
Ao fim do dia 31, perto da hora do jantar, fez-se uma pausa nas discussões, enquanto cerca de cinquenta pessoas permaneciam na capela. Foi nesta altura que se começaram a ouvir ruídos de carros da polícia de choque, acompanhados do latido de cães-polícias, e fez-se o cerco ao local. Os polícias penetraram no templo e, arrastando à força algumas pessoas que resistiam, levaram todos os assistentes para a vizinha esquadra do Rato, onde foi feita uma primeira triagem. A maior parte foi levada para os calabouços do Governo Civil, onde se deu a passagem do ano. Na manhã do dia seguinte, dezasseis de entre eles foram entregues à Pide que os levou para o Forte de Caxias. Foram aí submetidos a interrogatório, mas não torturados e ao fim de um máximo de quinze dias libertados sob caução. Estes processos não tiveram seguimento, talvez com o intuito de não empolar o caso.
Entretanto, e devido à importância pública que os acontecimentos tinham provocado, a Censura não os pôde calar, reproduzindo os jornais uma nota oficiosa cheia de diatribes contra os manifestantes, acusando-os de subversão, traição à Pátria, etc.
Alguns dias depois o caso foi mesmo levantado na Assembleia Nacional, onde se assistiu a um acalorado combate verbal entre o deputado ultra Casal-Ribeiro e o da Miller Guerra. Este deputado teve a coragem de dizer que não se tratava apenas de um pequeno grupo de agitadores, mas que os ocupantes da capela traduziam um mal-estar crescente e alargado acerca da guerra, e que eram tão fiéis da Igreja como outros. No entanto, a repressão não ficou por aqui: cerca de quinze pessoas que foram identificadas pela polícia e que eram funcionários públicos, entre os quais o professor de Economia Pereira de Moura, foram alvo de processos disciplinares conducentes ao seu despedimento.
O cardeal-patriarca publicou um comunicado criticando a ocupação e demitiu de capelão o padre Alberto Neto, não obstante este não se encontrar presente durante os acontecimentos, por motivo de doença. Por uma trágica coincidência, nestes dias da ocupação da Capela do Rato, o Exército português em Moçambique massacrava as populações civis das aldeias de Wiriyamu e Chawola, uma operação militar que havia de custar caro à sua credibilidade internacional. Estes massacres foram conhecidos apenas alguns meses mais tarde, através de denúncias feitas por missionários. O caso da Capela do Rato, como ficou conhecido, não deixou de ser referência para acções posteriores de combate à guerra em Africa e teve projecção internacional, manifestando o descontentamento de parte da população portuguesa contra o seu prosseguimento. Tratou-se de uma acção que se inscreveu na actividade dos chamados «católicos progressistas*» contra a guerra colonial, que se vinha desenvolvendo desde 1963 com a publicação do jornal clandestino «Direito à Informação» e continuada no final da década com os «Cadernos GEDOC», animados pelo padre Felicidade Alves, demitido de pároco de Belém. Por esta altura, o mesmo grupo, que se alargara a vários pontos do país, nomeadamente à cidade do Porto, onde também se desenvolviam acções de consciencialização face ao problema da guerra, criou em Lisboa um centro clandestino de informação e divulgação que deu origem, a seguir ao 25 de Abril, ao CIDAC, organização não governamental de cooperação com as antigas colónias. E de salientar neste contexto a acção do padre Mário de Oliveira, pároco de Macieira da Lixa, capelão militar que recusara a guerra, e que foi por duas vezes preso e julgado em Tribunal Plenário. Toda esta acção tinha em vista abrir uma brecha nas posições da hierarquia católica, que não ousava confrontar-se com o Governo, ignorando sistematicamente as directivas do Vaticano acerca dos problemas da paz e da guerra.
Dicionário da História do Estado Novo – Fernando Rosas, J.M Brandão de Brito

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