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9 de dezembro de 2010

14-A mina da minha vida


De manhã muito cedo tinha saído uma coluna para o destacamento mais longínquo. Eu e o capitão ficámos no snack-bar da companhia (ver que beleza na fotografia) a tomar o pequeno -almoço: uma fresquíssima garrafa de vinho verde e uns cachorros. Maravilha, o nosso frigorífico a petróleo funcionava mesmo bem! Era o menu matinal do capitão, não o meu habitualmente, mas nesta altura acompanhava-o.

Eis se não quando chega o radiotelegrafista a correr todo agitado:
“Meu capitão, a coluna encontrou uma mina!”
“Deflagrou?”, perguntou o capitão com preocupação.
“Dizem que não. Os picadores detectaram-na e agora estão lá parados.”
“Então, vou lá ver isso aqui com o nosso alferes. Vamos?”
“Claro, vamos lá.”
Ainda eram alguns quilómetros, saímos num unimog com uma secção do meu pelotão. Eu próprio já tinha feito várias vezes aquele percurso para o tal destacamento, quer para levar abastecimentos quer para operações na sua zona. Quando chegámos lá estava a coluna parada, o alferes comandante desta, o Domingos Maçarico, e alguns soldados e milícias picadores à volta da mina. Era uma TMD, uma anti-carro. O capitão deu ordem para se afastarem todos para longe. Ficou ele e eu e os nossos guarda-costas. Virou-se para mim:
“Vamos oferecer esta mina ao nosso comandante de batalhão. Além disso isto dá dinheiro.”
Não sabia quanto é que dava e não estava nada interessado em ganhar dinheiro dessa maneira. Como estava fodido com os mandões do batalhão e do agrupamento, porque me tinham antes mandado para a boca do lobo abusando da minha ingenuidade, também não estava nada virado para lhes oferecer prendas.        
Mas, enfim, a prenda era dele, que se lixe.
Ajoelhámo-nos os quatro, peguei na minha faca de mato e comecei a escavar à volta da mina. Chegou-se, entretanto, um furriel ao pé de nós e tirou uma fotografia. O capitão enxotou-o:
“Já disse para saírem daqui, caralho!” Continuei a escavar. Quando já não havia terra nenhuma à volta da mina, levantei-me e achei por bem dizer-lhe:
“Não vejo nada aqui à volta. Mas eu não sou especialista nestas coisas e parece-me que é melhor rebentá-la com uma granada ou puxá-la de longe com uma corda. É melhor não arriscar.”
“Nada disso, pá. Vai ser um ronco e quero oferecê-la ao comandante de batalhão. Vamos levantar isto.”
O meu guarda-costas já se tinha levantado também, estava ao pé de mim e olhava-me com aprovação. Disse decididamente:
“Então não sou eu que pego nisso.”
Ficou o capitão mais o seu guarda-costas ajoelhados ao pé da TMD. Quando o guarda-costas dele começou a levantar a mina eu e o meu recuámos dois passos.
É outra dimensão. O trovão e a faísca rápidos que nos lançam no vazio,sem passado nem presente, nem nada pela frente. Não se sente, nem há qualquer pensamento, nem dor ou sofrimento. Forma rápida de sair da vida para o nada.
Só sei que dei por mim deitado na mata, fora da picada. Levantei-me e vi ao pé o capitão também deitado. Não se mexia, a farda tinha desaparecido quase toda, a perna direita estava pegada ao joelho por uma tira de pele, os testículos estavam desfeitos. Mais à frente estava o meu guarda-costas, que se tinha levantado e parecia não ter nada. Perguntei-lhe como estava. Disse-me que só tinha uns estilhaçositos. Fui até ao buracão da mina, olhei para o fundo e vi lá bocados de uma granada de morteiro. Tinha sido assim, um rebentamento por simpatia. Vários elementos da coluna tinham-se aproximado. O alferes comandante olhou para mim estarrecido:
“Estás a deitar sangue dos ouvidos.”Ouvi-o mal mas ainda percebi e levei lá as mãos. Vieram cheias de sangue.
“E o guarda-costas do capitão?”, perguntei-lhe.
“Já o procurei mas não o encontro.”Decidimos colocar o capitão em cima dum poncho e levá-lo para a sede do batalhão, onde havia um médico. Na nossa companhia não havia. Ainda pensámos que podia estar vivo. Por isso vimos que não havia tempo de procurar o homem que levantara a mina, o qual, concluímos, devia ter os bocados espalhados no meio da mata. Depois se veria.
Ouvia-me ao longe, mas sei que fui todo o caminho a chamá-los turras filhos da puta, cabrões, hei-de fodê-los… e montes de impropérios, misturados com várias lágrimas.
O médico do batalhão disse que o capitão estava morto. Viu o meu guarda-costas e confirmou que tinha dois pequenos estilhaços, retirou-os e tratou dele. Com dificuldade, mas ouvi-o a dizer-me que tinha dois estilhaços no peito, tirou-mos e olhou-me:
“Estes não têm importância. Mas olhe que você teve uma sorte do caraças. Há um que lhe passou na virilha direita, deixou aí um traço mas não atingiu nada de importante.” Sorriu-se mas eu não achei piada nenhuma.
“De qualquer modo tem de ser evacuado porque tem os dois ouvidos furados.”
E fui. Veio um helicóptero e levou-me para o HM241, em Bissau. Fiquei lá uma semana, tratado a mais de 15 comprimidos por dia. Hão-de ter-me feito bem a alguma coisa, não duvido, mas ao fim de alguns dias o meu estômago nem a água aguentava. No fim dessa semana fui evacuado para o HMP, para Lisboa.
Mas isso é outra história



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