http://www.youtube.com/watch?v=xF4hMVhN38A
Nessa noite fomos ao Timpanas. Deu-nos as saudades dos nossos fados. Eu sabia que o Norberto era grande amante, lembrava-me bem das vezes em que, em plena caserna 3, nos massacrava até altas horas da noite, só se calando quando os mais dorminhocos se chateavam e armavam zaragata.
Ainda opinei que fôssemos ao Bairro Alto, a mim dava-me mais jeito por ser perto da casa dos meus pais. Mas que não, disse ele, era muito mais caro e ali no Timpanas é que era melhor, era o fado mais legítimo. Tá bem, acedi, porque, embora gostasse de fado, não era nenhum perito nas legitimidades dele.
Lá fomos no seu 2 cavalos até à Rua Gilberto Rola, junto às Docas de Alcântara. Não me lembro bem como era, já lá vão muitos anos e montes de coisas passaram, mas sei é que a entrada não era assim com todas essas luzes que vêem na fotografia. Entrámos para uma sala não muito ampla com várias mesas de madeira quadradas, estava tudo à média luz, menos dois guitarristas e um fadista que cantava em cima de um estrado que estava a um canto. Vimos uma mesa vazia à esquerda e sentámo-nos.
As mesas estavam quase todas ocupadas por casais ou por homens comuns, na mesa ao nosso lado, nem tínhamos reparado antes, estavam duas mulheres jovens, uma loira e outra morena. Reparámos agora, comiam uns jaquinzinhos fritos e bebiam de uma caneca de vinho tinto e riam-se. O empregado chegou-se e pedimos o mesmo. O homem em cima do estrado cantava a "Júlia Florista" no meio do silêncio geral. O Norberto estava intrigado com o riso das vizinhas.
- O homem até nem canta mal.
Percebi o que o Norberto disse ao pé de mim, mas pareceu-me ouvir a loura a responder lá longe.
- Não estamos a rir dele. É que a minha amiga chama-se Júlia e achámos piada.
- E não me diga que também é florista - fui eu agora a rir-me.
Várias caras nas mesas se viraram para mim com ar reprovador e o Norberto deu-me uma cotovelada.
- Não fales tão alto, pá.
Fiquei vermelho, com certeza, de envergonhado. Na mesa ao lado a Júlia ficou séria e a loira deixou de sorrir também. Olhei para as raparigas e ganhei coragem para dizer, procurando que fosse em voz baixa:
- Peço desculpa por ter falado alto. Nós viemos há poucos dias da Guiné, viemos feridos. Estas gazes que tenho enfiadas nos ouvidos é que me fazem falar alto. Houve uma mina que deu cabo deles.
Olharam-nos com espanto e interesse. Estava para continuar, mas o meu amigo aproveitou-se. Era mesmo dele.
- Se calhar, é melhor nós irmos para a vossa mesa, senão ele continua a falar alto e ainda nos expulsam daqui.
Acederam e abancámos na mesa delas. Eu em frente da Júlia e ele em frente da loira. Que se apresentou, era a Gisela.
Olhei para a Júlia e gostei dela. Lábios carnudos, olhos castanhos, cabelo preto liso, um sorriso que me encantou. Contei como foi a história da mina e outras coisas, sempre a olhar para ela, via-a fascinada. O Norberto ia contando as dele também, com olhos grandes e expressivos.
Depois de vários fados, umas tantas canecas de vinho e travessas de janquinzinhos, muitas perguntas e sorrisos e olhares, fez-se tarde.
- Amanhã logo de manhã tenho de estar no hospital. Tenho de me ir embora. Queres boleia?
- Eu não vou ainda, Norberto. Só tenho tratamento depois de amanhã. Vou ficar mais um bocado.
- Eu vou também, – disse a Gizela – não queres vir, Júlia?
- Não, ainda não. Amanhã falo-te.
Saíram os dois e nós ficámos. Houve olhos baixos, copos e cigarros a disfarçar, monossílabos, umas miradas forçadas para o artista que cantava. Estamos a encenar, pensei, não pode ser.
- Isto é muito diferente do que tem sido a nossa vida na Guiné. O ambiente, este convívio, foi-nos tirado. Regressar a isto é uma coisa maravilhosa. É o bom que faz esquecer o mau que lá passámos. Estar aqui consigo é como regressar ao céu depois de passar pelo inferno. Sobretudo porque não há ninguém que queira o inferno, não é?, quando fomos condenados não sei porquê.
- Eu sei. Tive alguns colegas em Letras que tiveram de ir para a guerra, sem mais nem menos. Sei o que eles sentiram.
Foi uma aberta para nova conversa. Ainda não nos tinham dito o que faziam. Foi novidade saber que ela estava na Faculdade de Letras. Mas foi óptimo, disse-lhe que também tinha sido de lá tirado há dois anos, estava em Românicas, ela disse-me que estava também em Românicas mas só há um ano. Falámos do Padre Manuel Antunes da Cultura Clássica, do Lindley Cintra… Sentimo-nos chegados. Já não quisemos nem mais carapauzinhos nem fado.
- Eu sou de Évora, mas vim estudar para Lisboa.
Maravilha! Mais chegados ainda ficámos, falámos do Alentejo, ela de Évora e eu do meu Penedo Gordo da minha meninice e de Beja. Os pais dela eram ricos, segundo percebi, os meus eram pobres, pensei. Mas não fez mal nenhum no final de tudo.
- Olhe, isto aqui já deu o que tinha a dar. Eu vou apanhar um táxi e, se quiser, levo-a a sua casa.
- Estou numa casa que os meus pais têm em Campolide, ao pé da Valenciana. Não é longe para si?
- Não é nada longe, sei bem onde é. Vamos lá que os seus pais já devem estar preocupados.
- Não. Eles só vão lá às vezes, quando o meu pai tem de vir a Lisboa. Vivo lá sozinha.
Tocaram-me uns sininhos, o coração saltou, e não só.
Levei-a a casa e fiquei lá essa noite. Houve explosões, mas não de minas, foram as granadas que eu tinha dentro de mim e que descavilhei. Não houve guerra, só paz.
já vi que tiveste uma boa convalescença em
ResponderEliminarLisboa...como deve ter sido díficil voltar
à Guiné depois desses encontros em casas de
Fado,e o primeiro acabou em beleza...sortudo!
BOM ANO
P.Santiago