Sem nada justificar, sem qualquer pré-aviso e quebrando a palavra assumida perante Pinto Bull, que, a partir de Dacar, se preparava para se deslocar com uma delegação à capital guineense, Salazar deixou a missão "pendurada" em Bissau com mais um dos seus férreos discursos em 12 de Agosto de 1963. Silva Cunha, Alexandre Ribeiro da Cunha, Luiz Gonzaga Ferreira e o já governador da então colónia Vasco Rodrigues, que também aprovava o projecto de autonomia progressiva, tal como as altas chefias militares então sediadas na região, sabendo todos que o processo culminaria no acto de autodeterminação, tomaram conhecimento de que também eles tinham caído num logro e feito uma viagem infrutífera pelos altifalantes da outrora Emissora Nacional mãe de todas as RDP de hoje.
"A UNGP ousava falar de paz e cooperação e, mais ainda, de evolução política faseada - estávamos em 1963", recorda Luiz Gonzaga Ferreira, acrescentando que Senghor, seis anos mais tarde, iria inspirar-se em dois dos objectivos de Pinto Bull para avançar com um plano de paz para Bissau. Em visita a Casamansa (Março de 1969), Senghor sugeriu a Lisboa: 1) cessar-fogo seguido de negociações sem condições prévias· 2) negociações para um período de autonomia interna entre representantes do Governo português e representantes dos movimentos políticos de Bissau; 3) independência acordada no quadro de uma comunidade luso-africana. Faz lembrar o plano que corre para Timor-Leste ...
Senghor repetiu a proposta várias vezes e já em 1970, recorda o embaixador, Alexandre Ribeiro da Cunha era enviado em missão a Dacar, sendo-lhe reiterada de novo invocada a hipótese de autonomia para a Guiné. "Do que ouviu, foi portador a Lisboa. Era uma das muitas tentativas para sensibilizar os ultraconservadores que mantinham Marcello Caetano prisioneiro da intransigência que Salazar fizera pesar sobre Portugal e as suas instituições desde o seu discurso de 12 de Agosto de 1962."
Luiz Gonzaga Ferreira acredita que se o plano da UNGP não tivesse sido inviabilizado por Salazar, aconteceria "um processo semelhante" nas restantes colónias portuguesas em África.
"A fase crucial da aceitação da UNGP pelo presidente do Conselho começara com a minha chamada em serviço a Lisboa (Gonzaga Ferreira era então encarregado de negócios em Dacar), nos princípios da Primavera de 1963, para discutir com o MNE e o Ministério do Ultramar os contornos da operação "Camaleão" - que poderia representar o fim da ofensiva guerrilheira do PAIGC - as potencialidades que oferecia, as suas virtudes e os vícios que eventualmente contivesse e, caso pesassem aquelas e não estes, qual o faseamento a dar-lhe para atingirmos todos os objectivos pretendidos por uma e outra parte." Até então, diz o diplomata, o assunto da UNGP apenas tinha sido discutido em Lisboa "através de mala diplomática e de telegramas", ao contrário do que acontecia em Bissau, onde a questão "foi discutida até à exaustão", primeiro com o governador Peixoto Correia e depois com Vasco Rodrigues. "A proposta da UNGP parecia uma solução justa. Preparava ao futuro através de uma autonomia, que, uma vez proclamada e dado o arranque, ninguém a poderia deter. E não se podia dizer à partida que o projecto fosse viciado ou condenável, só porque os seus impulsionadores entendiam devê-lo assentar em premissas não necessariamente de esquerda."
Quem queria anexar Bissau?
Contrariamente ao que Salazar pensava com anuência de Franco Nogueira, a GuinéConacri é que tinha propósitos expansionistas
Gonzaga Ferrerira considera que Salazar, ao atribuir ao Senegal propósitos de anexar a Guiné-Bissau por alegado intermédio da UNGP de Pinto Bull, "fazia aí uma extrapolação incorrecta e por de mais injusta". Argumenta o embaixador que "deduzir das intenções senegalesas para com a Senegâmbia, construção colonial abstrusa encravada em plena terra do Senegal, uma (intenção) de igual sinal para a Guiné portuguesa, entrava no domínio do sofisma que se quer atirar a todo o transe para o encurralar e obstruir-lhe toda a retirada digna".
Peremptoriamente, Gonzaga Ferreira garante que "Salazar sabia-o bem, quer de fontes várias quer dos meus telegramas".
O embaixador lembra que, semanas antes da sua chamada a Lisboa para a avaliação das negociações com a UNGP, informara a capital portuguesa que ao embaixador Fragnito (da Itália, em Dacar) fora dado ler documento que relatava o último encontro de Senghor com Sékou Touré em Conacri, quando o Chefe de Estado senegalês ali fez escala a caminho de Cotounou, onde ia assistir à Conferência da UAM.
Quando Senghor quis propor a Touré que apreciassem em conjunto o problema da Guiné portuguesa "para estarem preparados para o momento em que os portugueses dali saíssem", o dirigente de Conacri "cortou cerce e com inusitada brusquidão qualquer veleidade do seu interlocutor nessa matéria. E disse a Senghor: "Se a Guiné portuguesa se denomina portuguesa agora, mas retirando-se os portugueses, e deixa de ser portuguesa, continua a ser sempre Guiné." E que "visse bem Senghor que era Guiné portuguesa e não Senegal português", pelo que este assunto em nada dizia respeito a Senghor "e que ele, Sékou Touré, é que dele teria de ocupar-se, chegado o momento apropriado" .
Gonzaga Ferreira garante que Sékou Touré "opôs sistemática recusa a tratar o assunto sempre que Senghor quis a ele voltar".
Se a confiança, que graças à UNGP se recuperara em muitos meios guineenses da região senegalesa do Cabo Verde e de Casamansa - lembra o embaixador Luiz Gonzaga Ferreira -, começava a ser algo abalada com as notícias alarmantes sobre a incapacidade das forças portuguesas para se oporem à penetração do PAlGC no Sul, a partir das bases na Guiné-Conacri, "Senghor, que acompanhava os acontecimentos na Guiné, sentia-se cada vez mais atormentado com o espectro de um triunfo de Amílcar Cabral, que em seu entender seria antes uma vitória para Sékou Touré, pois respondia aos seus desígnios expansionistas, com todos os riscos de vir a assistir-se à formação de uma coligação, senão a uma verdadeira integração radical ao sul de Casamansa".
Carta de Amílcar Cabral reforçou apoio à UNGP
Líder do PAIGC não poupou elogios ao governador
Uma carta de Amílcar Cabral entregue em 1962 a Gonzaga Ferreira com destino ao governador da Guiné, Peixoto Correia, acabou por reforçar a aposta do governador na UNGP. Peixoto Correia, que pouco depois seria nomeado ministro do Ultramar "ganhou-se um ministro normal, perdeu-se um governador excepcional", comenta Gonzaga Ferreira -, recebe inusitados elogios do líder do P AlGC, que define a iniciativa como "uma inegável confiança na sua inteligência e no seu amor consciente à terra ao povo a que pertence" e refere que "a adopção de uma atitude positiva e construtiva por parte das forças colonialistas depende principalmente das autoridades coloniais, da consciência, do bom senso e do patrotismo que elas forem capazes de dar prova. Isso também depende, em particular, de Vossa Excelência ... ". E acrescenta: "O nosso partido propõe-se estudar e discutir com V. Ex3 um plano para a libertação do nosso povo do jugo colonial sobre a base do direito à autodeterminação e à independência." Mas antes referiu "a política criminosa e suicida de Salazar" ... Comenta obviamente o embaixador que a carta estava ferida à partida de um non recevoir. Com isto, Peixoto Correia acabou por apoiar a UNGP, "que se propunha atingir a independência por fases".
Bull quis a via da negociação
Missão em Bissau preparava reconhecimento oficial da UNGP, que tacticamente omitiu a autodeterminação dos estatutos. Notáveis do PAIGC viam já com bons olhos uma solução faseada
A União dos aturais da Guiné Portuguesa (UNGP), criada a meio do ano de 1962 por entre sucessivos ataques dos outros movimentos nacionalistas, distinguia-se de todos por estatutariamente defender a paz e a conciliação.
Umaro Gano, primeiro impulsionador do movimento inspirado pelo pensamento de senegaleses como Lamine Gueye e Senghor, foi quem pela primeira vez procurou o embaixador Luiz Gonzaga Ferreira, em Dacar.
Gonzaga Ferreira fixou a primeira ideia que teve da organização como visando "uma autonomia interna musculada, em essência voltada para a preparação aprofundada e acelerada da guinenização dos quadros e das profissões de todo o tipo e nível", com uma "comunidade de interesses quanto à política externa". Benjamim Pinto Bull, que se juntou ao grupo de Gano, tomou-se pouco depois secretário-geral da nova organização nacionalista a principal influência da UNGP vinha do próprio Senghor.
"Ouvi-o e logo abracei a ideia proposta" confessa o embaixador para quem era evidente na ocasião, para quem observasse o quadro das instituições nacionalistas na Guiné-Conacri e no Senegal "que uma nova organização teria de distanciar-se de todas as demais para poder ganhar espaço e audiência" e que, "no fundo, Umaro Gano e Pinto Bull diziam, cada um à sua maneira, a não aceitar a via do diálogo que a UNGP propunha, seria Portugal a preparar a sua própria derrota e expulsão da Guiné".
Gonzaga Ferreira garante que, em Bissau o governador Peixoto Correia "comungava" das sua aposta na "via autonómica na Guiné portuguesa como precursora a um outro mais elevado estatuto". O embaixador toma evidente que a UNGP omitiu tacticamente nos estatutos uma qualquer referência à autodeterminação e assevera que, com o modelo da UNGP, "o Senegal munia-se de um instrumento que, a ser experimentado no terreno - e isso já era connosco -, pelo qual seria possível opor ao guerreirismo do PAIGC uma força de paz e aos movimentos sediados em Dacar, e com algumas ramificações em Casamansa, uma organização credível pela seriedade dos seus propósitos", pois "a organização de Gano e Pinto Bull (UNGP) criara-se com o objectivo claro e incontornável de se sentar à mesa com o Governo português para negociar a autonomia imediata para a Guiné". Peixoto Correia, Silva Cunha, Vasco Rodrigues, José Manuel Fragoso (director político do MNE) sabiam muito bem que, "ao falarem de autonomia avançada, os homens da UNGP nunca por aí se lhes deteria o pensamento e a vontade, que aquela jamais os satisfaria".
"O que estava em causa, o que se ia jogar em Bissau a meados do mês da Agosto de 1963, era uma tentativa de passagem de testemunho ordeira e organizada" e a UNGP, que, entretanto havia já estabelecido compromissos com diversos outros chefes nacionalistas "com destaque para três dos altos responsáveis militares do P AlGC, segundo o embaixador, "não se amoldaria a uma fachada de autonomia ou um simulacro de autoridade local e muito menos se deixaria manipular por agentes deste ou outro departamento português, como sucederia não passado muito tempo com um dos notáveis do agrupamento de Amílcar Cabral".
Gonzaga Ferreira reitera que "alguns responsáveis militares, e dos mais notáveis, que logo começaram apalpando terreno e se decidiram a certa altura, fins de 1962 e primeiros meses de 1963, por não se limitarem a sondagens e avançar com um programa que, de haver sido aceite, significaria a adesão pura e simples não tanto à iniciativa de Umaro Gano Samba Baldé e Benjamim Pinto BulI, mas ao seu ideário, e ao mesmo tempo uma fractura importante do PAIGC em toda a região norte, e não só posto que a sudeste algo mexia na mesma direcção".
Fora de Dacar, sublinha Gonzaga Ferreira, não houve confrontação entre a UNGP e o PAIGC e "a que houve em Dacar, no plano político, a UNGP levou a melhor, pelo que a tese da inevitabilidade da solução Amílcar e do PAIGC não está provada".
A missão chefiada por Silva Cunha com o objectivo expressamente consentido por Salazar, mas pouco depois traído pelo ditador, para negociações formais com uma delegação da UNGP em Bissau tinha em vista o reconhecimento oficial da organização por Portugal, admtindo-se que, na direcção da reclamada autonomia, Benjamim Pinto Bull fosse empossado como secretário-geral do governo da colónia.
Com a falta de Salazar à palavra dada, Benjamim Pinto BulI anuncia de imediato a convocação de uma assembleia geral da UNGP "a fim de rever radicalmente os seus estatutos", acrescentando que "não pode aceitar o convite para enviar uma delegação a Bissau para discutir a aplicação da lei-quadro" e numa segunda fase decreta a dissolução da organização. »
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