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23 de março de 2011

90-A "ferida invisível"

 A "ferida invisível". Consequências psicológicas da guerra colonial


«Calcula-se que em Portugal haja 140 000 pessoas com distúrbios psicológicos crónicos como consequência das guerras coloniais. (Afonso de Albuquerque e outros, in Revista de Psicologia Militar, 1992)
Isso significa que cerca de 1,4% da população portuguesa poderá estar afectada, o que é um índice superior ao número de esquizofrénicos.
(...)
No DSM-Ill[1] considera-se como critério de diagnós­tico da PPTS[2] a pessoa ter experimentado um aconteci­mento fora da experiência humana normal, que provo­caria stress a qualquer indivíduo. Portanto pode contra­ir a PPTS um indivíduo que tenha estado na guerra, ou que tenha sido vítima de uma catástrofe natural, ou que tenha tido a sua vida ou integridade pessoal ameaçadas por qualquer outra forma, para dar apenas alguns exem­plos.
Mas as características da PPTS adquirem contornos especiais para as vítimas de traumas sofridos na guerra e sobretudo nas guerras não convencionais.
Pensamos que os indivíduos que sofrem deste distúr­bio por terem participado nas guerras coloniais que o Governo Português provocou em Angola, Guiné e Moçambique, de 1961 a 1974, são afectados pelas cir­cunstância especiais dessas guerras.
Em primeiro lugar, tratava-se de guerras injustas, anti-patrióticas, de agressão e domínio colonial. Por isso, a natureza da missão dos soldados portugueses era, à partida, extremamente ingrata, não mobilizadora moral e psicologicamente estranha aos interesses do indivíduo.
Este é, logo à partida, um factor de stress. O indi­víduo sofria o conflito entre a necessidade de cumprir o seu dever militar e a estranheza e alheamento dessa missão.
É certo que o salazarismo conseguiu, inicialmente, convencer muitos portugueses que estavam a defender os interesses de Portugal nessas guerras. Sabe-se que a con­denação inequívoca da guerra colonial, a oposição à guerra e a sua rejeição nos primeiros tempos foi feita apenas por um número muito reduzido de portugueses.
Só a pouco e pouco, devido principalmente à eficá­cia da luta dos povo das colónias e da acção das for­ças políticas mais consequentes em Portugal, foi fican­do claro para um número cada vez maior de pessoas que a guerra era impossível de ganhar e que a única solu­ção era a independência das colónias.
As reacções dos ex-combatentes aos resultados da guerra sofrem o impacto desta evolução. Há alguns que absorveram a ideologia racista e colonialista que lhes foi instilada no exército colonial, não se conformando com a derrota da causa em que acreditaram, havendo outros que foram adquirindo a consciência de que os seus in­teresses eram alheios àquelas guerras.
Seja como for, o soldado português que foi arranca­do ao seu lar, à sua terra, ao seu trabalho, para ir com­bater em locais longínquos, em condições geográficas e climáticas completamente inabituais • rodeado do perigo permanente de morrer pelo rebentamento de uma mina ou numa emboscada, enfrentando uma população hostil em que era difícil distinguir o amigo do inimigo mas que, à cautela, era mais realista encarar como inimiga, sente que os sacrifícios que a guerra lhe exigiu foram absolutamente vãos devido ao resultado das guerras ter sido o inverso do perseguido pela política que elas ser­viam.
Este também é um factor que condiciona a sintomatologia da PPTS de ex-combatentes das guerras de África. A completa inutilidade do sacrifício feito.
Este sentimento ainda era mais agravado pelo facto de o ex-combatente, ao chegar a Portugal, não ver re­conhecido o seu sacrifício mas, ante pelo contrário, ser visto com desconfiança pelo resto da população que ia adquirindo consciência que aquela guerra era uma guerra injusta e sem saída.
Aqui pode colocar-se uma questão. Porque é que os indivíduos que passaram pela guerra não foram todos afectados psicologicamente por ela com o mesmo grau de intensidade?
À volta deste problema muito e tem discutido ao longo dos anos. A ideia inicialmente prevalecente, en­tre as duas guerras mundiais, era que a personalidade prévia do sujeito, antes do sofrimento do trauma, predeterminava o impacto deste sobre o seu ego.
Isto é, um sujeito com um ego forte e bem estruturado suportaria melhor o impacto do stress de guerra e ficaria imune às suas consequências. Pelo con­trário, indivíduos com uma personalidade pré-mórbida, teriam mais probabilidade de contrair a doença.
Os estudos feitos durante a 2." Guerra Mundial e posteriormente, levaram a pôr em causa esta teoria e a dar mais ênfase à natureza do trauma - qualidade e in­tensidade - que explicaria as diferentes consequências nos sujeitos.
Em nossa opinião há que encarar o problema de forma complexa, considerando existir uma constelação de causas que levam a um impacto diferente do stress de guerra sobre o sujeito: a preparação psicológica para a guerra, a motivação para o combate, a natureza e inten­sidade do trauma, a existência ou não de um grupo contentor, coeso e com normas e valores que o sujeito compartilhe e, sobretudo, a fase de desenvolvimento da identidade em que o sujeito se encontrava quando foi para a guerra.
Existem fortes indícios de que a prevalência da neu­rose de guerra é muito menor em militares de carreira do que em militares do contingente. E isso, quanto a nós, porque os primeiros tem uma preparação militar e, sobretudo, psicológica para a guerra muito mais eficaz.
Com efeito, sabe-se que ao militar do quadro per­manente é incutida a ideia de que é um técnico, que não lhe compete discutir as ordens nem pôr em causa a decisões respeitantes à guerra que são tomadas pelos políticos. A ele compete-lhe fazer a guerra e ser eficaz na sua execução.
Assim, o militar profissional habitua-se a isolar os sentimentos ligados aos actos vividos ou praticados du­rante a guerra.
Quando surgem sentimentos de culpa (e veremos mais adiante que eles aparecem muito entre os veteranos de guerra ex-soldados do contingente geral), o mi­litar profissional consegue facilmente «pôr a culpa fora de si», dizendo e pensando que ele foi um mero execu­tor e se alguma coisa de errado houve a culpa é dos superiores ou dos políticos.
Ao passo que o jovem português que foi mobiliza­do para fazer o serviço militar nos anos da guerra foi arrancado muito jovem, no fim da adolescência-começo da idade adulta, do seu ambiente de paz, com as sua normas e valores de que a máxima principal é «não matar», para um ambiente de guerra em que o valores são completamente subvertido e invertidos, tornando-se a norma de «matar para não morrer» o princípio orientador básico da guerra.
Assim, há uma passagem brusca de uma identidade ainda pouco madura e estruturada, formada nas normas da sociedade civil, para um ambiente de guerra em que se adopta um papel completamente contraditório com o anterior. Há pois uma primeira inversão brusca e bru­tal de valores.
Depois, durante a guerra, o jovem era mergulhado num mundo em que, muitas vezes, era levado a pratic­ar acto absolutamente estranho e aberrantes em rela­ção àquilo a que estava habituado.
Muitos destes ex-combatentes assistiram ou partici­param em actos que contrariavam todas as normas mais elementares da convivência humana e até as normas internacionalmente aceites de condução da guerra.
Casos de barbaridades gravíssimas contra a popula­ção civil, torturas de prisioneiros, tratamento desumano da população africana, eram o dia-a-dia para muitos destes soldados.
O jovem, com uma identidade em formação, mal sabendo ainda bem quem era, via-se com espanto a pra­ticar actos que não imaginava ser capaz de fazer. Ele tomava contacto com o «lado sombrio» da natureza humana que o deixava espantado pela sua barbaridade.
E ao voltar à pátria, ao regressar à sociedade civil, tinha novamente que se adaptar a um papel a que já não estava habituado, a seguir normas de vida absolutamen­te contrárias às da guerra. Tinha, pois, que fazer uma nova inversão radical de valores.
Será, pois, de estranhar, a enorme dificuldade de adaptação destes sujeitos, a distorção da sua identidade, a dificuldade visível de integração entre a identidade anterior à guerra, a vivência de guerra e a sua vida posterior a ela?
Será de estranhar que estes indivíduos tenham recalcado a sua experiência de guerra de tal maneira que as emoções negativas associadas a esses acontecimentos se mantenham vivamente no inconsciente, provocando um enorme sofrimento?
Com efeito, pensamos que em muitos ex-soldados da guerra colonial com PPTS existe um forte sentimento de culpa pelas enormes barbaridades e crimes que foram levados a cometer.
De um pequeno número de doentes (comparado com os 800 000 homens que se calcula que tenham passado pelas colónias durante a guerra) ouvimos experiências de guerra horrorosas, que dão um retrato bastante mais realista desta guerra do que as narrações que estamos ha­bituados a ouvir ou a ler.
Assim, era comum soldados portugueses vingarem-­se na população africana mais próxima, quando sofriam baixas de companheiros a que estavam ligados por la­ços de amizade. Isto é dito como um facto trivial por ex-soldados em qualquer dos três teatros de guerra.
Dizer que a população civil era tratada com desu­manidade é uma afirmação muito pálida em relação à realidade. Um ex-soldado comando conta: «Quando che­guei a Moçambique, uma das primeiras cenas a que assisti foi ver um soldado armado mandar um preto sair da cubata e violar a mulher. Não gostei de ver aquilo e achei que era mal feito. Mas era o que todos faziam.»
Se este homem era católico, o que é provável numa população portuguesa maioritariamente crente, como se pode coadunar esta acção com a máxima «não cobiça­rás a mulher do próximo», quando se vê os companhei­ros «apoderar-se da mulher do próximo?» É difícil de calcular todos os prejuízos morais que tais práticas po­dem ter tido sobre jovens, muitas vezes idealistas e chei­os de nobres intenções.
Outro ex-soldado conta que certa vez uma negra foi presa, interrogada, e como não confessasse o que queri­am foi amarrada e levada para uma avioneta donde foi lançada em voo.
Este mesmo soldado conta que, no seu aquartelamen­to no Leste de Angola, os prisioneiros da UNITA e do MPLA eram mantidos no quartel para fazer pequenos trabalhos de faxina. Diziam que os tinham «na engorda». Depois fingiam que lhes davam fuga para os abater.
Outro ex-soldado, muito perturbado psiquicamente, relata que no começo da guerra, no Norte de Angola, queimaram muitas cubatas porque diziam que as mulhe­res que viviam nelas protegiam os guerrilheiros. «Fica­vam lá queimadinhas, coitadinhas», comenta.
Depois de participar nestes massacres a sua compa­nhia foi enviada para Malange para fazer campanha «psicossocial».
Como é possível que um jovem soldado que parti­cipou em massacres da população civil e depois foi en­viado para outro lado abrir estradas, construir escolas para essa mesma população civil, não se sinta profun­damente perturbado com a ambiguidade desta situação, não sinta o carácter absurdo e irracional desta guerra em que se dá com uma mão para se tirar com a outra?
Esta é uma situação típica de mensagem ambígua profundamente perturbadora para qualquer cidadão que não esteja dentro dos desígnios dos chefes militares, que costumam justificar este tipo de práticas com argumen­tos de guerra psicológica altamente discutíveis.
Finalmente, queremos contar o caso de um ex-com­batente que fazia parte de um grupo de reconhecimento que actuava na fronteira do Leste de Angola, com fardamento diferente da do exército português, sem do­cumentação para não ser identificado e com toda a pro­babilidade controlado pela PIDE.
As ordens que tinha eram peremptórias: «Abater tudo o que fosse vivo.))
Certa vez, este homem participou na chacina de mais de 200 habitantes civis de uma aldeia, em que aba­teu friamente a tiro um civil que lhe implorava de joe­lhos que não o matasse porque não tinha nada a ver com aquilo (cena que lhe aparece constantemente em sonhos), em que se lembra de ver uma velha a correr em chamas e depois morrer carbonizada (imagem que igualmente recorda frequentemente) e que depois rece­beu um louvor «pela forma valorosa como actuou na operação», «demonstrando possuir ao longo da referida operação e sobretudo na fase do assalto a um acampa­mento inimigo, grande determinação, coragem indestemida e vontade inquebrantável de vencer» ( ... ) «pela natureza arriscada da missão e principalmente pelos excelentes resultados obtidos sobre o inimigo» ...
Não é difícil de constatar que muitos dos «feitos militares» das tropas portuguesas nas colónias não pas­saram de simples chacinas da população civil.
Aqui levanta-se o problema das responsabilidades das autoridades militares fascistas na realização destas atrocidades. Será que não sabiam? Fechavam os olhos? Encorajavam?
Este é um problema bastante delicado e sabemos que há muitos oficiais que não caucionaram tais acções e não podem ser acusados de responsabilidade directa nestes crimes. Mas será assim para a instituição militar de en­tão no seu todo? Será possível que se dessem acções da envergadura das que citamos (ainda por cima com lou­vores oficiais) sem que se dessem conta do que se es­tava a passar?
O princípio que ouvimos enunciar a pessoas que estiveram na guerra em locais e circunstância muito diferentes de que, «quando viam um rapaz de 10 anos, negro, calculando que daí a mais 10 anos poderia ser um guerrilheiro, na dúvida o melhor era abatê-lo logo», não seria a doutrina de parte considerável das Forças Arma­das da altura?
Quando um doente conta que o hino da sua unida­de era: «Os pretos rastejam na mata como víboras, mas nós vamos esmagá-los até ao último», não implica isto a responsabilidade da própria instituição militar na men­talidade racista de que ficaram imbuídos muitos milita­res que passaram pelas fileiras durante a guerra coloni­al?
Será de estranhar, que jovens portugueses com uma identidade pessoal ainda mal consolidada depois de te­rem passado por duas mudanças de papel extremamen­te rápidas e brutais, tenham perdido o fio natural da evolução da sua personalidade?
Será de admirar a difusão da identidade, a perda de coesão do ego, a confusão de valores, as dificuldades de intimidade, o embotamento afectivo, as dificuldades de relacionamento de toda a ordem que estes ex-combaten­te experimentaram ao chegar da guerra?
Uma hipótese para o carácter diferido da manifesta­ção da PPTS é que o ex-soldado, a seguir à guerra, conseguia mais ou menos «organizar-se» psicologicamen­te por ter de planear a sua vida, criando expectativas de sucesso, o que o isolaria do trauma.
Mas a sua memória ficava lá. Existia qualquer coi­sa de não integrado na personalidade do sujeito, de «não digerido» psicologicamente, que ao ser reprimido cria uma tensão interior pela grande energia psíquica que tinha que ser mobilizada para reprimir os afectos dolorosos. E mais tarde, quando qualquer acontecimento sua vida lhe provocava um stress acrescido, as memórias de guerra podiam ser reactivadas e os mecanismos de defesa psicológicos cederem e instalar-se a PPT.
Finalmente, apenas algumas palavras sobre o processo de tratamento destes doentes.
Já vimos que o grande problema aqui existente é que o doente não consegue conciliar a sua identidade antes da guerra, a experiência traumática e a sua vivência do mundo depois da guerra.
Existe uma carga muito grande de experiência dolorosa ligada com a guerra que o ego do sujeito não consegue assimilar, integrar na sua consciência, porque essa experiência é contraditória com o conceito que sujeito tinha de si mesmo e a sua admissão consciente torna-se insuportável.
Mas a resolução deste conflito só é possível pela verbalização dessas experiências e a ab-reacção dos afectos a elas ligados, de forma a permitir transformar a atitude mental consciente e acomodar a experiência. dissonante com o ego.
A resolução completa do conflito exige a transfor­mação das estruturas cognitivas e afectivas existentes.
É claro que isto é um processo penoso, que  faz. emergir sentimentos dolorosos de culpa, de vergonha, de remorso, aquela carga insuportável de responsabilidade que o sujeito sente pelos actos que praticou. Mas a emergência desses sentimentos permite um maior acesso ao self e um aumento do autoconhecimento e cria maior espaço de liberdade para efectuar mudanças.
O sujeito tem que compreender que aqueles lhe pertencem, tanto os bons como os maus e ter a coragem de admitir o «lado negro da natureza humana».
Não se trata tanto de esperar que os outros o desculpem do que fez, mas tem que ser ele próprio  a aprender a viver com a sua culpa, a aceitar-se e desculpar-se a si próprio.
(...).»


Fernando Myre Dores, in revista "Vértice", Janeiro/Fevereiro 1994


[1] DSM: Diagnostic and Statistical Mannual of Mental Disorders
[2] PPTS: Perturbação post-traumática de stress. 

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