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13 de março de 2011

80-Além de sangue, suor e lágrimas, além da juventude perdida... que mais de nós lá terá ficado?

Tinha feito há pouco 23 anos quando cheguei à Guiné, aos 20 saíra do seminário. Tinham sido três anos a procurar libertar o amor amordaçado com acenos de futuras delícias celestiais, às vezes, e, as mais das vezes, com ameaças de eternos tormentos infernais.  As palavras aprisionadas e apertadas em sapatos de normas e mandamentos divinos apenas serviam para dançar nos lotus do jardim do senhor e embevecer-lhe o olhar. Era o que ele desejava, que eu dançasse bem perante o seu olhar.
Depois, naqueles três anos, já não deram para quem eu queria então deslumbrar com os meus talentos. Vi, com amargura, que não tinha nenhum para o que verdadeiramente precisava. A Natércia, filha da burguesia empresarial, trocou-me por um contabilista da Standard Eléctrica, a eurasiática Ângela e minha colega de Letras, filha de um coronel, achou que eu não tinha nível e deixou-se enredar por um gajo de Direito.  Aqueles gajos do outro lado vinham muito ao bar de Letras, ali é que havia caça, e houve um que me levou a Ângela. Foi depois a Dinora, já eu estava em Mafra, que me puxou para trás de um reposteiro da casa dos pais, era terrível mulher, mas veio a mãe dela e descobriu-nos em situação que não gostou. Fui escorraçado e nunca mais me quiseram ver. Nessa fase da tropa veio também a Alexandrina.  Boa moça e bonita, mas era demasiado religiosa, teve até a ideia de me oferecer uma estatueta de Santo Expedito, é o patrono dos militares, disse-me toda entusiasmada. Mas eu não gostei, santos nunca mais, e decidi acabar. Os bares que frequentei e as suas mulheres, a orgia que fizemos antes de embarcar serviram-me para desforra.
Fui, então, para a guerra, da primeira vez, sem deixar saudades a ninguém nem levar lembranças para me entreterem a alma. Conheci em Geba duas miúdas fantásticas, a Maria e a Gabi, duas cristãs. Houve amor, muito amor, amor que eu desconhecia, amor doação sem outro interesse.  Não sei, talvez o meu ar juvenil e débil as cativasse, sabendo que eu andava horas e dias no mato.
- “Alfero, ka fudi, ka pudi panha bariga” (alferes, foder não, não posso ficar de barriga), diziam-me quando lhes tirava o lope (pano que substitui as cuecas, envolvendo as pernas e as nádegas; cobre-sexo).
- “Oh, não…”, eu decepcionado… e já excitado.
- “Oi, manga dele, alfero! (Oi, está grande, alferes)”, e riam-se a olhar para o meu estado, “disinketa, bu pudi fika diskansadu, bo sikidu. Maria (ou Gabi) fasi manga de coisas boa. (está calmo, podes estar descansado, está quieto, Maria (ou Gabi) vai fazer-te muitas coisas boas)”
Eram maravilhosas. O carinho que eu precisava no meio daquilo.
Da segunda vez fui para Barro, graças ao Quecuta, conheci a Uace e a Signi. Mulheres de fanado, eram mais calmas, menos excitáveis. Eu falava com elas e elas gostavam, de certeza que o Quecuta não lhes dava muita conversa na cama.
- “Alfero es bom (o alferes é bom)”, diziam-me.
Um dia saltou-me uma ideia à cabeça. E se uma delas engravida? Vai ser um bico de obra.  Achei por bem falar com o Quecuta.
- “Quecuta, ka problema si mindjer di bo ten fidju di branco? (Quecuta, não há problema se a tua mulher tiver um filho de branco?)”
Riu-se:
- “Uace, Signi ka ten  fidju di bo (Uace, Signi não vão ter um filho teu)”.
Fiquei espantado com tanta certeza.
- “O quê!? Como é?”
- “Quecuta ieki  dungut ris di bambu in liti di kabra (Quecuta desfaz uma raiz de bambu em leite de cabra).
Fiquei a saber que a raiz de bambu molhada em leite de cabra era uma espécie de anticonceptivo que usavam quando não queriam que as mulheres tivessem filhos. O Quecuta dava-lhes a comer dessas raízes.
Mas porque estou eu a divagar sobre isto? Aqui, sentado à varanda da D. Berta, não vejo nada porque Bissau não tem electricidade, deve ter faltado mais um vez o petróleo para os geradores. Só dá para pensar, e deu-me para isto porque cheguei esta tarde de uma visita a Barro, onde tomei conhecimento de duas situações que me tocaram muito.
Em conversa com o Bala Sani, filho do Quecuta Seidi, e depois de saber que o pai dele já tinha morrido, ele disse-me que havia na tabanca um “filho de branco”.
- “Manda-o chamar, que eu gostava de falar com ele”.
Disse a uns miúdos para o irem buscar, mas estes regressaram a dizer que ele não queria vir.
- “Então, vou lá eu”.
E fui, levando os miúdos todos atrás de mim.
Envergava uma berrante camisola do Benfica e pareceu-me de trinta e poucos anos. Achei-o pouco à vontade mas deu para falar.
Jorge Gomes
- “Chamo-me Jorge Gomes, tenho trinta e três anos. O meu pai é  Fernando Gomes, foi ele que me deu o nome”.
- “Mas ele sabe que tu existes?”
- “Sabe. Às vezes manda-me coisas”.
- “E porque não vais ter com ele?”
- “Ele não quer que eu vá para Portugal”.
Não quis aprofundar esta recusa do pai dele, mas interroguei-me interiormente sobre que razões poderá ter um pai para deixar um filho tão longe e não querer tê-lo perto de si.
- “E a tua mãe? Qual a etnia dela?”
- “Não conheci a minha mãe. Ela foi embora da tabanca quando eu nasci, os mandingas não a quiseram cá. Ela era mandinga.”
Imaginei, pela idade do Jorge Gomes, que o pai dele devia ser de uma das últimas companhias que esteve em Barro, senão mesmo da última. E talvez já depois do 25 de Abril. Fácil de calcular que o Quecuta Seidi, chefe da tabanca, não teria perdoado a esta mulher, certamente em idade casadoira e, se calhar, já prometida. Gostava de ter tido mais tempo para saber mais pormenores deste caso, mas o grupo que eu acompanhava estava com pressa e tivemos que partir.
Fomos a Bigene. Não sei se por transmissão de pensamento, se por mensagem de bombolon, se por telemóvel, sei lá como foi, mas em Bigene deparou-se-me um caso idêntico.
Bacar Turé
Tinha trinta e poucos anos.
- “Olá, eu sou o Bacar Turé”.
- “Viva, Bacar”.
- “Vocês estiveram em Barro. Eu também sou filho de branco, como o Jorge de Barro”.
Estava à espera de qualquer pedido, não disto. Mas deixa lá ver.
- “Quem é o teu pai?”
- “É o imediato Varela, médico do destacamento 21 dos fuzileiros que estavam em Ganturé (porto no rio Cacheu, a sul de Bigene)”.
- “Mas como é que sabes que ele é teu pai?”
- “A minha mãe disse-me. Já morreu, mas o comandante também sabe”.
- “O comandante?”
- “O comandante Calvão”
- “O Alpoim Calvão?”
- “Sim”.
Os marinheiros têm um amor em cada porto por onde passam, dizem. Mas Ganturé não foi um porto de passagem. O Alpoim Calvão não deve ter tratado este caso da melhor maneira.
- “Mas tu chamas-te Bacar Turé…”.
- “O imediato Varela foi-se embora e não me quis dar nome.”
Desta varanda da D. Berta olho para a avenida em escuridão total. E vi escuridão, além da guerra, em casos da nossa passagem pela Guiné. Será que o Fernando Gomes e o imediato Varela não tiveram a sorte que eu tive ou as precauções que me foram impostas? Ou assumiram relações, sem pensar nas consequências, porque sabiam que eram passageiras. Deixar para trás as consequências? Eu não faria isso. Talvez porque não tinha saudades de ninguém nem lembranças que me amarrassem. Eles teriam-nas, se calhar. Mas mesmo assim…

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