O capitão Alves foi de férias. A vivência da mulher aquando do último ataque teve consequências negativas. Não só ficou afectada psiquicamente por aquela experiência traumática, disse-me ele, como anda apavorada que eu possa morrer, tinha de ir ter com ela. Imaginei a D. Eugénia apavorada e também me apeteceu acalmá-la.
Como era o alferes mais antigo fiquei a comandar a companhia na sua ausência, Houve um dia que fui chamado a Bigene, para ir falar com o major comandante do COP3, disse-me o cabo cripto com a mensagem na mão. Apeteceu-me entrar com ele.
- “Dá cá a mensagem”, e peguei nela. “Onde é que diz aqui que é para ir falar com o comandante? Eu nunca pedi para falar com ele. O que diz é para “estar no gabinete do comandante do COP3 às 10h00 de amanhã”. Parece que ele é que quer falar comigo. Não criptes demais, pá.”
No dia seguinte peguei numas viaturas e no meu pelotão e fui até Bigene. Não picámos o itinerário porque não era costume porem minas nele. Arrisquei, como fizera várias vezes no caminho de Geba para Banjara… até dar o que deu. No gabinete do major estava também um tipo à civil, não o conhecia mas tinha um ar que dizia logo quem ele era. O major, do alto das suas botas de cavaleiro, apontou com o pingalim para um mapa que tinha cheio de sinais coloridos. Falou sem rodeios.
- “O agente Guerra” – sou bruxo, pensei, é um gajo da PIDE – “tem informações que a população aqui de Sano, no Senegal, anda a fazer plantações de arroz e outros produtos na bolanha que está do nosso lado. Eu quero que você vá lá amanhã confirmar isso.”
- “É natural que façam isso, meu major. Antes da guerra as populações de um lado e doutro viviam praticamente em conjunto e exploravam as terras em conjunto. Após começar a guerra os de cá passaram todos para o outro lado, e mais uma razão para continuarem a trabalhar aquelas terras como faziam antes. Além disso, meu major, eu acho que uns reconhecimentos aéreos podiam confirmar isso”.
Pareceu-me, e confirmei que ele não tinha gostado desta parte final. O pide sorria.
- “Ó nosso alferes, eu sei que você andou no seminário e portanto sabe o que quer dizer estar a ensinar o padre-nosso ao vigário. Você é um miliciano quase imberbe e acha que me pode estar a dar conselhos a mim, um profissional com muita tarimba? E sabe, com certeza, que o arroz que eles cultivam é para alimentar os terroristas.”
Fiquei um bocado enrascado, confesso, embora ele não tivesse falado com ar acintoso. Até gostava deste major, era um homem corajoso e sensato, já mo tinha demonstrado numa ocasião em Sambuiá. Mas era o cabrão do pide que me olhava com ar zombeteiro, noutra situação tinha-lhe ido ao focinho.
- “Meu major, peço desculpa. Não era minha intenção, de maneira nenhuma…”
- “É que há mais. Diga lá, ó Guerra”.
O pide endireitou-se na cadeira.
- “Tenho também uma informação que estará em Sano um bigrupo reforçado. Consta que prepara um ataque ou a Barro ou a Bigene. Mas não é uma informação segura, precisa de confirmação.”
- “Este é outro objectivo da sua ida a Sano. É o mais importante. Quero que confirme se está lá, de facto, um bigrupo reforçado.”
-“Mas, meu major, um bigrupo são para aí noventa homens e , se se preparam para atacar um aquartelamento, estão bem armados, com armas melhores e mais poderosas que as nossas. Só tenho três pelotões na companhia, tenho de deixar um em Barro e ir lá só com dois…”
- “Porra, Aiveca! Lá está você outra vez, homem! Eu sei isso muito bem…”
Continuou a falar e eu fui-o ouvindo. Mas ia pensando que fizera bem em levantar dúvidas desde o princípio. Palpitava-me que o major se preparara para me fazer o mesmo que o tenente-coronel do Agrupamento de Bafatá, quando me mandou para Sinchã Jobel de olhos fechados. Só não me tinha ainda dito para levar uma corda… Mas foi-me dizendo que o que queria é que eu conseguisse um prisioneiro para interrogar e que andaria lá num PCV[1] para me orientar. No essencial isto.
- “Percebeu?”
- “Percebi, meu major.”
- “Então venha aqui”. Levou-me ao pé do mapa. “Um pelotão vai até à bolanha de Sano e outro, quero que seja o seu, entra no Senegal e apanha esta picada aqui, está a ver?, a que vai de Cossé para Sano. Está a ver?”. Disse-lhe que sim, senhor. “Podem apanhar alguém na bolanha porque eles vão lá, ou podem apanhar no caminho entre Sano e Cossé, percurso usado. É assim.”
Despedimo-nos. Cumprimentei o major e não liguei ao pide.
Reuni em Barro o Salvado e o Rodolfo e expliquei-lhes ideia do major do COP3.
- Eu tenho de ir porque o major já decidiu que sim. De vocês quem é que quer ir?
Olharam um para o outro e o Salvado decidiu-se primeiro.
- “Vou eu”.
Não me agradou muito, preferia que fosse o Rodolfo, mas este não disse nada, focou calado.
- “Então, já sabes, ó Rodolfo, tens de ficar a tomar conta disto. E tu, ó Salvado, vai falar com os teus furriéis e diz-lhes que têm de ter os homens prontos para sair amanhã às cinco horas. Eu vou fazer o mesmo com os meus. Diz-lhes o que é que vamos fazer mas recomenda-lhes que não falem disso com nenhum dos soldados nem com os outros furriéis. Quando estivermos para sair ou vou dizer a todos qual é a nossa missão. Vamos juntos até à ponta da bolanha de Sano. Separamo-nos aí, eu sigo por Saiamculolo até ao Senegal e tu vais por Saiamcôtoto até ao corpo principal da bolanha ao pé de Sano da Guiné e esperas aí por mim. Quando acabar de fazer o que há que fazer no Senegal vou aí ter contigo. Vou ter de levar o Bailo comigo para me indicar o melhor caminho para aquela picada entre Sano e Cossé. Tu chegas facilmente ao teu local, não é?”.
- “Claro, vou chegar lá nas calmas”.
Fomos falar com os furriéis, depois chamei o Bailo para lhe dizer que estivesse pronto para sair às cinco horas.
É como assistir ao nascer da vida. Os ainda ténues raios de sol que furam por entre as folhas da floresta levam-me a pensar na centelha da vida que Michelangelo representou nos tectos da Capela Sistina. Resquícios da minha formação religiosa. O pipilar ainda suave dos inúmeros pássaros que habitam as árvores maravilham-me como lembranças do despertar dolente e suspiroso da Júlia a acordar ao pé de mim. Mas os grunhidos ruidosos e agudos do macaco-cão é um despertador que me alerta para as passadas que devo dar e o caminho a seguir, que me mantém atento apesar das divagações.
Chegámos ao local da separação e eu aproximei-me do Salvado.
- “Tens o mapa da zona?”
- “Tenho, claro”.
- “Depois de bateres a zona da bolanha, acho que é melhor colocares-te na borda dela do lado de Bucaur. Eu depois atravesso a bolanha um pouco mais abaixo e, se tiver problemas, podes apoiar-me com fogo desse lado. Parece-me que é melhor para eu não ser apanhado entre dois fogos. O que é que achas?”
Os meus furrriéis e os dele estavam connosco, já os tínhamos posto ao corrente dos objectivos da missão, vi que falavam entre eles e pareceu-me que concordavam com a ideia.
- “Está bem, pá, estou de acordo”, disse também o Salvado.
- “Olha, mantém o teu banana[2] sempre atento, eu vou estar com o meu também. É para nos mantermos em contacto e para nos irmos informando do que se passa dum lado e doutro. Além disso, o PCV do major do COP3 deve estar a aparecer e o gajo também vai querer conversa.”
Fomos cada um para seu lado. Meti o Bailo à frente para me indicar o caminho até à tal picada entre Cossé e Sano. A fronteira ali era uma linha recta no papel entre o marco 132 e o 133. Nem sabia se os marcos ainda existiam, mas, mesmo que existissem não adiantava nada para saber onde acabava a Guiné e começava o Senegal. Em certo momento tanto podíamos estar cá como estar lá. Por isso é que aquela gente de Sano dum lado e doutro não tinha fronteiras. Era tudo o mesmo.
Estávamos há quase uma hora no meio da mata. O Bailo, por indicação minha, não escolhia carreiros e a progressão não era fácil. Quando comecei a ouvir o ronronar da DO, diz-me o radiotelegrafista:
- “Meu alferes, está aqui o PCV”.
- “É pá, já vi que o Salvado está no local combinado. Você ainda não chegou. Estou a ver daqui o sítio onde devia estar.”
O engraçado quer festa. Espera lá que já vais levar. Esta tarimba sei bem que não tens.
- “Aqui no meio desta mata cerrada não é tão fácil descortinar o objectivo como aí em cima. Tenho tido dificuldades na progressão. Mas o meu guia diz-me que estamos quase a chegar.”
Uns segundos de silêncio. Deve ter acusado o toque, mas não se descoseu.
- “Quando chegar avise-me que vou continuando por aqui. Terminado”. Desligou.
E acabámos por chegar. Emboscámo-nos na berma da picada, a seguir a Dianatu, que o Bailo disse ser a tabanca entre Cossé e Sano.
- “Ninguém dispara nem se mexe, só à minha ordem.”
Avisei o major da minha chegada e liguei ao Salvado para saber como estava. Disse-me que não via vivalma. O PCV deu mais umas voltas e afastou-se. Ainda bem, pensei, senão os tipos começam a desconfiar que há qualquer coisa.
A certa altura segreda-me o Bailo, que estava ao é de mim a espreitar por entre uns ramos:
- “Alfero, vem um jipe”.
Espreitei também.
- “São turras?”
O Bailo observou melhor.
- “Polisia de Senegal[3]”.
Bonito. Só me faltava isto. Tinha de tirar os gajos daqui. O Bailo não usa camuflado, vou ver o que é que dá.
- “Bailo, labanta, papia elis[4]”.
Sabia que era um tipo expedito, às vezes até demais. Levantou-se logo e foi para o meio da picada. O jipe aproximou-se e parou. Os ocupantes sorriram.
- “Bonjour, camarade”[5], disse um deles.
Pensam que é um do PAIGC. Era o que eu queria, que parassem confiantes. Fiz sinal de ordem para todos se levantarem. Fui o primeiro a saltar. Assim que me viram ficaram de olhos esbugalhados e levaram instintivamente as mãos às armas.
- “Bougez pas!”[6], gritei-lhes apontando a G3.
Foram cercados pelo grupo e ficaram quietos. Aperceberam-se que eu era o comandante e um deles virou-se para mim.
- “Banderra de Senegal ami de banderra de Portugal”, disse com voz arrastada e o outro abanava a cabeça de assentimento.
Tinham piada, os sacanas.
- “Ne merdoyez pas. Qu’est-ce que vous faites ici?”[7].
- “Nous avons des femmes amies à Sano…”[8]
Houve uma agitação e vi o Bletche e o Falcão de armas apontadas para a picada do lado de Sano.
- “Ninguém dispara, caralho! Já disse!”, gritei-lhes. Abaixaram as G3.
Um miúdo de sete ou oito anos arrastava apressadamente pela mão um velho. Vinham pela picada, deviam ter visto o nosso grupo e tentavam fugir.
- “Sousa, vá lá buscar aqueles gajos.” Disse aos outros para vigiarem os gendarmes.
A secção do Sousa agarrou-os facilmente. Antes de chegarem ao pé de mim reparei que o velho era cego. O miúdo era o guia dele.
Disse o Ocha para saber o que andavam a fazer e para onde iam. Falou algum tempo com eles. O rapazito, via eu, estava cheio de medo. O cego abria os olhos baços e franzia a boca receosa. O mal invisível.
-“Iam para Dianatu onde têm família. O velho é avô do miúdo e é cego. Quando nos viram tentaram fugir.”
Já tinha ouvido a DO, agora já estava por cima de nós. E o radiotelegrafista trazia-me o banana.
- “O que se passa aí em baixo, alferes?”
- “É um jipe com dois gendarmes do Senegal, apareceram aqui. Parece-me que é melhor irmos embora, já não dá para o que viemos fazer.”
- “Eh, pá!... Mande os gajos embora, e sem uma beliscadura, não podemos arranjar problemas desses. Depois pode retirar.”
- “Oscar Kilo”[9].
Virei-me para os gendarmes.
- “Et allez donc. Prenez l’aveugle et le gamin avec vous. Mais pour Dianatu, non pour Sano.”[10] Ficaram encantados, nem lhes notei qualquer contrariedade por não irem ter com as “femmes amies”. Elas lá estariam à espera por outra altura, certamente. ”Agarrem nos dois e metam-nos no jipe”, disse para os que cercavam o avô e o neto.
Quando partiram dei ordem de abandono da posição. Não era bom continuar ali,pois tinha a certeza que aqueles gajos iam avisar o PAIGC. Metemos pela mata em direcção a Sano portuguesa. Estava abandonada, com alguns restos de moranças[11] ainda, muito mato rasteiro, mas havia um grupo de bananeiras ao pé da mata.
- “Está ali uma mulher!”, gritou o Ocha ao pé de mim.
Todos viraram a cara para lá. Ela ouviu e virou a cara para nós,viu-nos e desatou a correr para a mata. Levava uma criança às costas no bambaran[12]. Logo uns poucos levantaram a G3 para disparar.
- “Quietos!”, gritei saltando para a frente deles. “Mato o primeiro que disparar! Clode, Falcão, vão atrás dela!”
A morte da Abess não me saía da cabeça e não queria ter outra situação idêntica.
Vi que o bambaran se soltou e a criança caiu no chão. A mulher virou-se angustiada a ver a criança a chorar mas olhou com terror para o Clode e o Falcão que corriam para ela e continuou a fugir.
De repente o silvo de um rocket. Os homens do Fernandes atiraram-se para o chão. O rocket passou-lhes perto e rebentou atrás perto das palmeiras.
- “Clode, Falcão, tragam a criança! Saiam da clareira! Todos para a mata!”
Começou o fogachal do lado do Senegal. O Code corria com a criança nos braços. Já abrigados na orla da clareira disse aos furriéis:
- “Fernandes, atravesse já a bolanha atrás de nós. Eu fico aqui com o Sousa e a bazuca para os reter. Lindolfo, coloque a sua secção 10 metros à minha direita, Pedro vá 10 metros à minha esquerda. É que eles podem tentar cercar-nos. Daqui a cinco minutos, vejam as horas, vamos todos atravessar a bolanha. Fernandes, quando vir que estamos a atravessar mande umas morteiradas para trás de nós. Radiotelegrafista, ficas aqui comigo. Andem.”
- “Os filhos da puta dos polícias foram avisar os gajos”, rosnava o Sousa por entre as rajadas.
- “O que é que esperavas?”
- “Devíamos ter limpado o sebo aos gajos”.
- “E arranjavas um trinta e um do caraças”.
As bazucadas do Benhanté e os dilagramas do Ocha mantinham os gajos em respeito. Disse ao radiotelegrafista para ligar o alferes Salvado.
- “Já está”, e deu-me o banana.
- “Ó Salvado, estás a ver o que está a suceder?”
- “Estou, pá, bem as oiço. Estou a ver que tens festa.”
- “Mas ouve lá: tu aí de Bukaur podes dar uma ajudinha. Tens o mapa, os gajos estão do outro lado da clareira da Sano portuguesa, faz os cálculos e manda-lhes umas morteiradas”.
- “É pá, mas eu já não estou em Bukaur, estou a caminho de Barro.”
- “O quê!? Foda-se! Tínhamos combinado que ficavas lá à minha espera!”
- “Mas vi que não estava lá a fazer nada.”
- “Vai pró caralho!”, e deliguei.
O Sousa apercebeu-se da conversa no meio do tiroreio.
- “O alferes Salvado tem fama de sacaninha”.
- “É mas é um grande filho da puta”, estava mais que furioso.
Passaram os cinco minutos. Disse ao Benhanté para mandar mais uma bazucada e ao Ocha mais um dilagrama e começámos depois a ir em direcção à bolanha. Verifiquei que do lado direito e do esquerdo também vinham.
- “Sousa, diz a três homens para não atravessarem já. O da bazuca não, é melhor ir já. Quando já estivermos lá eles que atravessem que nós vamos cobrir.”
O Fernandes já começara com as morteiradas. Chegámos. O Abna , o André Gomes e o Bidinté, que tinham ficado para trás acabaram por se juntar a nós sem problemas. Foi quando ouvi a DO. Fui eu que liguei logo.
- “Estamos aqui com um problema.”
- “Já sei. Estava na pista de Barro e ouvi. Era o tal bigrupo?.
- “Parece-me que não há lá nenhum bigrupo. Os gajos que nos atacaram não tinham esse poder de fogo, além de que não tiveram capacidade para uma manobra de envolvimento que nos lixasse.”
- “Podem não o ter querido mostrar. Mas não interessa agora. Retire-se que eu vou pedir uns T6 para despejarem aí umas bujardas.”
- “É óptimo, para ver se não vêm atrás de nós. Além disso podem dar cabo de uns diques e umas plantações de arroz que eles têm na bolanha. Mas isso o meu major já sabe, claro”.
Uns segundos para engolir, como era hábito.
- “Toca a andar, homem. Eu vou para Barro e falamos lá.” Não explodia facilmente, é verdade.
Não íamos muito longe quando os T6 apareceram. Despejaram umas tantas e foram-se embora. Mas deu para que não viessem no nosso encalço a chatear-nos. Durante o caminho cheguei-me à secção do Fernandes, onde o Clode continuava com a miúda ao colo.
- “Nome di bo?[13]”, perguntei-lhe. Mas ela não disse nada e chorou.
- “Ó Fernandes, que dia é hoje?”
- “É dia 20 de Agosto”.
- “Não. O dia da semana”.
- “É terça-feira”.
- “Então, a gaja não quer dizer o nome, vamos chamar-lhe Terça.”
O pessoal ouviu, cochicharam entre eles e acharam piada. Era normal para eles, havia muitas Sábado e Segunda, conforme o dia da semana em que tinham nascido. Não era novidade.
Quando cheguei a Barro o primeiro que vi foi o Salvado. Foi o primeiro porque era quem eu queria ver. Estava com o Rodolfo. Dirigi-me a ele de G3 em riste, apetecia-me dar-lhe um tiro.
- “Ouve lá: se me fazes aquilo outra vez fodo-te o coiro!”
O Rodolfo olhou-me espantado.
- “Tem calma. Que merda é essa, pá?”
- “Pergunta a este cabrão”, e fui para o quarto tomar banho.
Vieram dizer-me que o major estava na secretaria à minha espera. Fui. Estava com um capitão, devia ser do seu staf do COP3, e o piloto da DO.
- “Então, nosso alferes, conte lá como é que foi aquilo”.
- “Fiz tudo aquilo que estava planeado. Quando estávamos na picada de Cossé para Sano apareceu um jipe de gendarmes do Senegal. Tive de os mandar parar.”
- “Mas não os podia ter deixado seguir e continuar emboscado?”
- “Tive receio que eles dessem pela nossa presença. Gerar-se-ia uma confusão e eu tenho a certeza que os meus homens os iam matar. Gorava-se a nossa missão na mesma e denunciávamos a nossa presença”.
- “Assim sucedeu o mesmo. Andei por aí e ouvi dizer que apanharam lá um velho e um miúdo mas deixaram-nos ir embora. E na bolanha apanharam uma miúda e deixaram fugir a mãe. Fez mal porque podíamos colher deles muitas informações sobre as movimentações do PAIGC em Sano.”
Era o vale tudo. Mas não comigo.
-“Meu major, nunca pensei que a minha missão fosse apanhar cegos, o velho era cego, sabe?, e miúdos. E a mulher fugiu-nos quando eles nos começaram a atacar.”
- “Mas apanharam a criança dela…”
- “Meu major, não podia deixar a criança no meio do tiroteio ou correr o risco de lhe cair uma morteirada em cima”.
Olhou-me zombeteiro.
- “Você, nosso alferes, está muito mole para esta guerra.”
- “Estou com certeza, meu major, mas não sei se conseguirei estar mais duro”
- “Vai ter que estar, com o tempo vai ter que estar, vai ver. Mas diga lá: acha que eles não têm em Sano um bigrupo?”
- “Já disse ao meu major que achava que não. O poder de fogo dos que nos atacaram não era nada semelhante ao de um bigrupo. Além de que estiveram muito fixos no terreno, nada da actuação duma unidade desse género, nem sequer nos perseguiram quando fomos para a bolanha. Parece-me mais que seria o conjunto de indivíduos que estariam esporadicamente na tabanca.”
- “Pode ser isso, é uma ideia. Vamos ver. Bem, vou-me embora. Quando é que o capitão Alves regressa?”
- “Vem para a semana. Já agora queria pedir-lhe um favor, meu major. Se estivesse de acordo, pedia-lhe mandasse vir uma DO para levar a miúda que trouxemos para Bissau. Há-de haver lá instituições para cuidar dela. Aqui não temos condições.”
- “Tá bem. É verdade.” Virou-se para o capitão. “Ó Silva, tome nota disto para falarmos para Bissau.”
A avioneta foi-se e, já depois do jantar, apareceu-me o Quecuta.
- “Alfero tem badjudasinhu di matu?”.[14]
- “Io[15]”.
- “Quecuta pudi toma konta”[16].
Malandro. Tomava conta dela para mais tarde ganhar dinheiro com o casamento dela. Estive para lhe escarrapachar isso na cara. Mas pensando melhor, e na Uace e na Signi, despachei-o-
- “Impusivel. Major COP3 misti badjudasinhu em Bissau[17].”
- “io de[18]”.
E foi-se embora.
[1] Posto de Controlo Volante.
[2] Nome que dávamos ao rádio emissor-receptor AVP, por ter esse formato.
[3] Polícia do Senegal (crioulo)
[4] Baulo, levanta-te e fala com eles” (crioulo).
[5] Bom dia, camarada” (francês)
[6] Não se mexam! (francês)
[7] Deixem-se de tretas. O que é que fazem aqui? (francês)
[8] Temos uma amigas em Sano… (francês)
[9] OK
[10] Vão-se lá embora. Levem o cego e o miúdo convosco. Mas para Dianatu e não para Sano (francês).
[11] Habitações (crioulo)
[12] Peça de pano utilizado pela mãe para trazer a criancinha às
costas.
[13] Qual é o teu nome (crioulo).
[14] O alferes tem um bajuda bebé que veio do mato? (crioulo)
[15] Sim (crioulo)
[16] O Quecuta pode tomar conta dela (crioulo)
[17] Não pode ser. O major do COP3 quer a bajuda bebé em Bissau (crioulo)
[18] Está bem (crioulo)
Marque Lopes, gostei muito de ler este episódio. E o que aconteceu à bajudinha ? foi para Bissau ?
ResponderEliminarAbraço,
Rui Esteves
Si. Foi para Bissau e entregue a uma instituição relogiosa, não sei qual. Deve andar por lá...
ResponderEliminarAbraço