Artigo de Pedro Pezarat Correia* no Jornal de Notícias de 6 de Setembro de 1997
SABE QUEM COMBATEU QUE HOUVE CRIMES DE GUERRA
A.
Recusando-me, por uma questão de princípio e de honestidade intelectual, a analisar a problemática dos "crimes de guerra" numa perspectiva jurídica - porque não sou jurista - limitar-me-ei a situá-la nos campos militar e político, que, afinal, como a história recente nos tem demonstrado, se tem em geral sobreposto ao campo político.
1. O julgamento dos "crimes de guerra", muito mais do que a apreciação de comportamentos de indivíduos enquanto combatentes, tem-se traduzido num exercício de poder de vencedores sobre vencidos. Em todas as guerras se têm verificado actos tipificáveis como "crimes de guerra", de ambos os lados das barricadas mas, salvo raras excepções, apenas aos vencedores tem cabido o "direito" de julgarem os "crimes de guerra" praticados do lado dos vencidos. Não há memória da constituição de tribunais independentes e supranacionais que, terminado um conflito, julgassem, de forma descomprometida, os "crimes de guerra" praticados em ambos os lados.
O recente caso da Bósnia, cujos julgamentos foram cometidos ao Tribunal Penal Internacional das Nações Unidas, com sede em Haia, aquele que mais poderia aproximar-se deste posicionamento de isenção e neutralidade, não foge totalmente aos vícios atrás apontados. Porque aqui, se entre os contendores bósnios não houve claramente vencedores e vencidos, acabou por haver um vencedor militar exterior: a OTAN e a sua potência hegemónica, os EUA, e um derrotado militar preferencial: os sérvios bósnios. E os dedos acusadores dos "crimes de guerra" não deixaram de reflectir esta lógica.
2. Uma segunda questão prévia se impõe. É que as acusações de "crimes de guerra" tendem a incidir sobre os agentes imediatos de actos como tal classificáveis, isentando ou ignorando os responsáveis pela criação das condições que tornaram esses actos possíveis, por vezes mesmo inevitáveis, ou seja, a própria guerra. E não são os militares quem desencadeia as guerras. Como salienta Samuel Huntington, "é o povo e os políticos, a opinião pública e os governos, quem desencadeia as guerras. São os militares que têm de combater" (1).
E certo que nem todas as guerras podem ser classificadas de criminosas. Isto nos remete à velha questão das "guerras justas" e "guerras injustas". Erasmo considerava como justa uma guerra de "( ... ) defesa contra a agressão ( )" (2). E no mesmo sentido se pronunciou Bertrand Russell, ao considerar que "( ) justa é toda a resistência a uma agressão ou invasão ( ... )" (3).
3. Seja justa ou injusta a guerra, o combatente pode envolver-se em atitudes condenáveis, isto é, em "crimes de guerra". Mas não pode alienar-se o ambiente desumanizado em que o combatente actua. Segundo Hegel "( ... ) o estado de guerra é um estado em que reina a contingência e em que as relações não são reguladas pelo direito mas sim pela força" (4). E, judiciosamente, François de Fontette escreveu que "os massacres de populações civis pela tropa em campanha são, sem dúvida, horríveis e injustificáveis. Mas acontecem em momentos paroxísticos das guerras, que surgem, então, com o seu inevitável cortejo de abjecções, e não como consequência de actos friamente premeditados e longamente amadurecidos" (5). E, regressando a Erasmo, também este humanista reconhecia que qualquer guerra "( ... ) arrasta atrás de si um infinito cortejo de crimes e infelicidades ( ... ) que vitimam sobretudo os inocentes" (6).
Assim, admitindo que num conflito haverá uma parte que enfrenta uma "guerra justa", e outra que trava uma "guerra injusta" - se bem que não sejam poucos aqueles em que ambos estão envolvidos em guerras injustas - só terá sentido o julgamento de "crimes de guerra" dos combatentes se, prioritariamente, for julgada, como "crime de guerra", ou talvez até como "crime contra a humanidade", a responsabilidade pelo desencadeamento da "guerra injusta".
4. Por fim, nestes considerandos de ordem geral, há ainda que ter em conta que o acto último do "crime de guerra" a sua execução, envolve sempre um problema de comando e o(s) comandante(s) não pode(m) ser isentado(s) da sua responsabilidade. Um excesso desumano de um combatente, quando não é impedido ou imediatamente reprimido, tem, quase sempre, na sua origem, ou o exemplo negativo do seu comandante, ou o seu incentivo, ou a sua indiferença, ou a sua incapacidade. De qualquer forma, sempre, uma demissão ou distorção da sua acção de comando.
B.
A experiência portuguesa na guerra colonial de 1961 a 1974 inscreve-se perfeitamente no quadro acima traçado.
1. Na guerra colonial verificaram-se "crimes de guerra" dos vários lados das barricadas. Deles acabou por não haver julgamentos porque, no campo militar, o 25 de Abril ainda veio a tempo de evitar que se definissem vencedores e vencidos. Mesmo assim, casuisticamente, nos países recém-chegados à independência, não deixaram de se verificar casos de represálias de vencedores políticos sobre os seus vencidos, compatriotas comprometidos com o antigo país colonizador, o que corresponde à lógica do julgamento dos "crimes de guerra".
2. Do lado português, sabe quem combateu que se verificaram "crimes de guerra". Mas é um dos casos paradigmáticos em que o crime nasce na própria guerra. A guerra colonial é uma "guerra injusta" por natureza. É axiomático que a guerra é um instrumento da política. E a guerra colonial era um instrumento de uma política injusta, que visava perpetuar o domínio nas colónias e a ditadura na metrópole. Injusta porque desnecessária (no pensamento de Maquiavel) face aos interesses nacionais e aos valores universais. Injusta ainda porque decidida por um poder ilegítimo (não democrático) e sem justa causa (pensamento de humanistas como S. Tomás de Aquino, Vitória ou Suárez).
Se não houve um derrotado militar, houve claramente um derrotado político. O sistema ditatorial e colonial português foi derrotado em 25 de Abril de 1974. Mas faltou aos vencedores vontade política para julgar pelos seus crimes, quer o sistema, quer os seus principais agentes, os responsáveis políticos e militares, a polícia política, a censura.
3. Perante a incapacidade de julgar a montante, o "crime da guerra", caía-se numa nova injustiça se se julgassem, a jusante, os "crimes na guerra". Houve "crimes de guerra" no seu sentido comum em acções contra o "inimigo", no tratamento de prisioneiros, nas represálias sobre populações. Mas não foi uma acção sistemática. Também houve, apesar do ambiente hostil, actos de heroísmo genuíno, de humanismo, de revolta. Como julgar comportamentos individuais, por vezes nos tais momentos paroxísticos de que fala Fontette, em situações de "stress" incontrolável, perante o dilema da vida ou da morte, em que o instinto de sobrevivência anula os valores humanos se não se julgam as hierarquias e os responsáveis pelo ambiente criado? Aqueles que, a frio, no conforto dos gabinetes, não só geraram as condições em que os crimes germinariam, como tantas vezes os fomentaram, os incentivaram, os enalteceram, chegando a transformar "crimes de guerra" em actos heróicos, para deles se aproveitarem politicamente.
O general francês Massu, lendário comandante na Indochina e na Argélia, acerca do massacre de May Lay, perpetrado por tropas norte-americanas no Vietname, afirmou em entrevista na época: "(…) os responsáveis pelas May Lais são os governantes e não os soldados ( ... ). Os chefes de governo que lançam os seus exércitos na guerra assumem, automaticamente, os riscos de provocarem May Lais (…) Os governos devem ter plena consciência destes fenómenos e assumir a sua inteira responsabilidade, não descarregando sobre o pequeno soldado (...). O que deve ser condenado é a própria guerra".
C.
Penso pelo que expus, que não há espaço nem tempo para julgamentos individuais, quer de "crimes da guerra", quer de "crimes na guerra".
Mas é sempre tempo e lugar para se reconhecer o "crime da guerra", como outros estados têm feito em relação a "guerras injustas" ainda mais remotas, como foi a II Guerra Mundial. E se o Estado português quiser, nobremente, sem complexos, assumir essa atitude, bom será que, em vez de cerimónias serôdias, em que ao abrigo de equívocas homenagens aos combatentes se busca, afinal, a glorificação da guerra colonial e do próprio império colonial, patrocine e tome a iniciativa de uma justa homenagem às vítimas do fascismo e da guerra colonial, com o corajoso pedido de perdão pelos crimes que, no passado recente, foram cometidos contra o povo português e contra os povos das suas antigas colónias.
(l) "The soldier and the state", Harvard University Press, Cambridge, 1957, pág. 70
(2) Jeanin, Pierre - "História das Ideias Políticas" Voi. 3. PEA Mem Martins, 1970, pág. 29
(3) "A minha concepção do Mundo", Brasília Editora, Porto, 1970, pág. 38
(4) Romão Rui Bertrand - "A concepção dialéctica da guerra em Hegel", Logos, n.O 3, Filosofia Aberta - Centro de Estudos e Divulgação, Lisboa, Jun. 1985, Nota 122, pág. 31.
(5) "O racismo", Bertrand, Amadora, 1976, pág. 102 e 103. (6) JEANIN Pierre - obra citada, pág. 29
(*) Major-general, foi membro do Conselho da Revolução, é dirigente da Associação 25 de Abril
Sem comentários:
Enviar um comentário