- “Raio da carne. Mais parece que estou a comer os cornos da vaca”. Era o que me parecia porque era mesmo dura como cornos.
- “Não se queixe, ó Aiveca”, virou-se-me o capitão,.a mastigar, “se não fosse esta vaquita, estávamos agora agarrados à bianda[1] ou àquela dobrada saltitante.”
- “Ainda bem que os gajos trazem umas vacas por aqueles carreiros que armadilhámos. Não ganhávamos nada se fossem só os gajos sem as vacas”. Uma piada à Rodolfo.
Tinha razão. As armadilhas que púnhamos em alguns carreiros da mata, que sabíamos ser utilizados pelos carregadores do PAIGC, a maior parte das vezes rebentavam com as patas das vacas que eles colocavam à frente como arrebenta minas. Quando ouvíamos um estoiro, calculávamos em que carreiro seria, corríamos para lá e encontrávamos normalmente uma vaca sem pata e agonizante. Havia rancho melhorado no dia seguinte.
Era o caso deste nosso almoço. Estávamos no refeitório oficiais, sargentos e praças. Era sempre assim, comíamos em conjunto. Só não estava lá o Salvado, porque tinha saído de manhãzinha para uma emboscada em Ponta Nova.
- “Como bo otcha baka?[2]”, perguntei para as mesas dos soldados.
- “É baka-brutu”[3], soltou o Incanha.
Gerou-se uma confusão. Na mesa ao lado da dele o Akadite protestava..
- “Mas o que é que aconteceu?”, admirou-se o capitão.
- “Estou a ver que o Incanha fez asneira”, levantei-me e fui até às mesas deles.
- “O que é que há?”
O Ocha estava calmo e foi ele que me respondeu.
- “Alfero, Baka-brutu é uma dança[4] que os bijagós mais novos fazem com uma máscara de vaca selvagem, O Akadite é bijagó e não gostou, porque para eles é sinal de coragem. Não tem nada a ver com esta carne dura…”.
- “Ah, é isso…”. Não deu para continuar, porque chegou o Salvado e o seu pelotão. Todos se viraram para os recém-chegados.
Sentaram-se nas mesas. O Salvado foi para a nossa.
- “Então como é que correu isso?”, perguntou-lhe o capitão.
- “Muito bem. Manga de Ronco!”, todo ele se ria
- “Conte lá, homem”.
O Salvado estava radiante.
- “Matámos dez gajos”.
- “O quê!?”, abrimos todos a boca de espanto.
- “Estávamos emboscados ao pé das palmeiras da bolanha da Ponta Nova, perto do sítio referenciado como ponto de passagem. Vimo-los sair da mata, deixámo-los entrar na bolanha, e a seguir foi só disparar”. Estava sorridente.
- “E trouxeram o armamento deles, claro”, preocupou-se o capitão.
- “Trouxemos três catanas[5]”.
- “Só!?”.
E eu e o Rodolfo também nos admirámos.
- “Não nos digas que os gajos vinham desarmados…”
- “É. Os gajos não tinham armas.”
- “Então, porque é que tiveste de matá-los, pá?”, perguntei-lhe com voz séria.
Ficou um bocado embaraçado e desculpou-se.
- “Houve um que começou a disparar, os outros juntaram-se-lhe, sabes como é, e só pararam quando eles já estavam todos esticados na bolanha”.
- “porque é que não os impediste?”
- “Não penses que isso é fácil”.
- “Não é fácil uma merda. Quando se quer é fácil. Outro dia em Sano foi fácil pirares-te e deixar-me sozinho no meio do tiroteio. Porque quiseste, achaste que era o melhor para ti, tiveste cagaço. E agora não, o que quiseste foi armar-te em herói contra gajos desarmados.”
Tinha levantado a voz. Já havia silêncio nas outras mesas, estavam de ouvido à escuta, e o capitão interrompeu-me.
- “Calma aí, pá. Disse-me que eram dez, mas eram só homens?”
- “Não. Eram sete homens e três mulheres”.
Estava a beber e pousei com ruído o copo na mesa.
- “Foda-se! Ainda por cima matas mulheres. Herói, sim senhor”.
- “Acabou, Aiveca”. O capitão Alves olhou-me severamente. “E os corpos deles?”
- “Mandámo-los para aquele riacho que vai desaguar no Cacheu”:
Abanei a cabeça em desacordo, mas já não disse nada.
- “Eram oito e meia. Só traziam um garrafão com água.”
- “Era população civil que se deslocava, certamente”.
- “Claro”, disse eu.
O Rodolfo, que tinha estado sério e calado, abriu a boca.
- “Mas, ó meu capitão, se o Spínola sabe que o Salvado matou dez civis é capaz de lhe dar uma porrada.”
- “Porquê?”, perguntei-lhe com um encolher de ombros de incredulidade.
- “É pá, ele acha que a tropa deve proteger a população civil, deve apoiá-la, e não foi o caso, pelo contrário”.
Ri-me.
- “Isso é treta, é psico. Se fosse com o pessoal aqui da tabanca… Agora com o pessoal do mato, se o Salvado dissesse que foi atacado com uma catana ainda lhe dava uma cruz de guerra. Fizeste mal em não dizer, esqueceste-te, assim é que serias mesmo um grande herói, medalhado, até podias ir ao Terreiro do Paço….”
- “Chega!”, cortou o capitão Alves. “Já comeram todos?... Vamos embora”.
Saímos. O capitão foi para a secretaria, o Salvado olhou para mim de trombas e foi em direcção ao quarto dos alferes. Eu e o Rodolfo assentámo-nos ao pé do poilão[8] da secretaria a fumar um cigarro. Ouvia-se o katchu-kaleron[9] a voejar por entre os ramos.
- “Tu não gramas mesmo o Salvado”.
- “E achas que não tenho razão, Rodolfo? Aquele filho da puta deixou-me outro dia sozinho em Sano. Se os gajos tivessem lá um bigrupo, como o major do COP3 pensava, eu estava bem fodido. E agora isto… tão cobarde foi em Sano como agora na Ponta Nova…”
- “Mas ele, no fundo, não é mau gajo. Até foi seminarista.”
Soltei uma gargalhada e curvei-me para baixo a rir. O Rolando olhou-me interrogativamente.
- “Não gostas de seminaristas, é?.”, acabou por dizer.
- “Não é nada disso, não. O que sucede é que eu também fui seminarista, pá.”
Olhou-me espantado.
- “Nunca pensei. Não tens ar disso”.
- “E qual é o ar de um ex-seminarista? O Salvado tem ar de não ser mau gajo e eu tenho? Por isso não me topaste, é isso?. Fica a saber que os ex-seminaristas são como os outros. Uns são filhos da puta e outros não.”
- “Oh, vai à merda. Sabes o que eu quero dizer. Normalmente os ex-seminaristas têm um ar encolhido, pouco aberto. Será, não sei, porque não perderam o ar do seminário, a forma como foram educados. O Salvado tem e tu não tens.”
- “E achas que o ar encolhido e pouco aberto é que o caracteriza como bom gajo? Não te fies muito nos que são assim, podes ter más surpresas às vezes.”
Tinha acabado de fumar o cigarro.
- “Olha vou ali à caserna para ver como estão os do meu pelotão”. E afastei-me do poilão.
[1] Prato guineense de arroz com molho; o arroz cozinhado no geral como arroz branco; comida (crioulo)
[2] O que acham da vaca’? (crioulo)
[3] Vaca selvagem (crioulo)
[4] Baili di baka-brutu.
[5] Terçado, espécie de espada de folha curta e larga, usada para cortar ramos, mas também como arma.
[6] Relatório militar, “relatório de incidente”
[7] Comando Operacional nº 3, situado em Bigene.
[8] Árvore de grande porte da Guiné.
[9] Espécie de pardal de cor amarela
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