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27 de abril de 2011

127-Jagudi kum' el



Ida para Bigene
Íamos por uma mata serrada depois de Sindima, tinha chovido. Da CCAÇ3 só o meu pelotão estava nesta operação até ao corredor de Sambuiá.
- "Vamos ver se apanhamos alguma coisa. Eles costumam vir de Samoge, no Senegal, e passam por aqui", disse-me o major Correia de Campos. "Você vai à frente, atrás de si vai a 412. ". Tá bem, sabia que aquela era uma companhia de maçaricos, a CART2412. Como me tinham indicado, invertemos um pouco para sudeste e fomos em direcção a Talicó.
Antes de lá chegarmos fomos emboscados  ao pé dum pequeno descampado. Estão ali à esquerda, pensei, e fiquei de pé virado para lá a disparar. De repente levo um encontrão e vou parar ao chão.
- "Eles estão do lado direito!", gritou-me o Ocha, meu  guarda-costas.
- "Obrigado, pá. É a merda dos ouvidos que me enganaram." E fiquei no chão a disparar para o lado certo. Estava fodido, não era a primeira vez que os tímpanos me baralhavam.
Foi um quarto de hora de tiroteio, morteiradas da companhia de trás e roquetadas e morteiradas também deles. Às tantas, homem espantoso, aparece o Correia de Campos, de pistola à cowboy na cintura e pingalim na mão.
- "É pá, está um gajo com RPG ali naquela árvore e o morteiro está ali no lado direito".
Disse-me isto sempre de pé, e eu esticado no chão a ouvi-lo.
- "Já não adianta, os gajos piraram-se", disse-me ele, passados alguns minutos,  quando nos apercebemos que eles tinham parado de disparar . "A companhia vai retirar e vocês vão atrás".
Levantámo-nos e diz-me o Ocha:
- "Está ali um corpo do outro lado".
Disse ao furriel Lindolfo para ir com a secção dele buscá-lo.Voltaram. O Falcão e o Iofna, um de cada lado, traziam o homem, que estava ferido e andava com dificuldade. Era do PAIGC, tinha o fardardamento deles .
- "Então e a arma?", perguntei-lhes.
- "Não havia arma nenhuma", respondeu o Lindolfo
- "Está visto que os gajos levaram a arma e deixaram o ferido", conclui. 
Disse para fazerem uma maca com ramos de árvores para colocar em cima o homem ferido. Fomos andando no encalço da 412., devagar porque o Falcão e o Iofna levavam a maca com o ferido. Os últimos da companhia estavam ao pé do rio de Cunalá, estava visto que o major optara regressar por ali e não por onde viéramos, para evitar emboscadas. Vi que estava um homem estendido ao pé deles. Aproximei-me e vi que tinha o pescoço aberto, um grande rasgo horizontal,  a cabeça parecia querer separar-se do corpo. Estava morto.
- "Como é que foi isto?", perguntei. Respondeu-me um soldado que fora um estilhaço de rocket, rebentara na árvore atrás da qual ele estava.
Dois deles pegaram no morto, nos braços e pernas, e começaram a atravessar o rio. Vi que foram à vontade, sinal que já tinham visto que era atravessável. A companhia, aliás, já estava praticamente toda do outro lado.
O Falcão e o Iofna tinham pousado a maca no chão.
- "Vá lá, alguém que pegue na maca para atravessar  o rio".
Ficaram todos calados e quietos.
- "Então?... Vá lá!"
Continuaram mudos e quedos. Os furriéis olhavam para mim um bocado enrascados.
- "Meu alferes", decidiu-se o Sousa, "eles não querem atravessar o rio com a maca."
- "O quê!?", fiquei genuinamente espantado.
O matulão Clode, no meio deles:
- "Alfero, vem jagudi e kum’el".[1]
Estava feito. Mas isto não era situação nova para mim, esta recusa em ter pena ou piedade de tudo o que fosse inimigo. Tinha de resolver aquilo, não podia ficar ali a discutir com eles nem queria deixar ali o ferido. Virei-me para o furriel Sousa.
- "Ó Sousa, pegue aí à frente que eu pego atrás". Assim fizemos, pusemos a maca aos ombros . "Vamos embora".
Metemo-nos no rio. Os outros vieram atrás.
A água dava pelo peito. Não era fácil, deviam ser uns quarenta metros de largura, mas fomos andando, embora devagar e com dificuldade, sobretudo para "ver" onde púnhamos os pés.
Estávamos a meio e chegam-se o Ocha e o Falcão.
- "Alfero, nós levamos".
- "Ah!", só lhes disse isto. E eles levaram a maca até ao outro lado.
Da margem vimos que havia uma clareira larga onde estava, a cerca de cem metros um helicóptero. Chegámos até lá e vimos ao pé dele o major Correia de Campos e uma enfermeira pára-quedista.
- "Meu major, tenho aqui um homem do PAIGC ferido".
- "Entregue-o à enfermeira".
Dei indicação ao Ocha para tal. Depois disse ao furriel Sousa:
- "Mande formar o pelotão."
O major olhava para mim com curiosidade, mas não disse nada.
Olhei para o pelotão com cara de zangado, tanto que não deu para dizer nada em crioulo:
- "Estou lixado com vocês. Porque acho que vocês são uns grandes filhos da puta, pior para os da vossa raça, muito pior do que são os brancos. E podem ter a certeza que fodo o primeiro que tentar fazer mais alguma igual a esta". 
E não disse mais nada, mandei destroçar. O major estava sério.
- "Mas que é que aconteceu, nosso alferes?"
- "O que sucedeu, meu major, é que estes gajos recusaram-se a atravessar o rio com o ferido. Tive de ser eu e um furriel a carregar com ele."
- "Oh,e você não sabe que eles são assim, homem? Não se chateie. Quando chegar ao quartel pague-lhes umas cervejas e vai ver como ficam todos bem".
A enfermeira chegou-se a nós.
- "Meu major, o homem do PAIGC acaba de morrer. Não aguentou".
- "Que merda! Tanto trabalho...", pensei que disse para mim, mas ela ouviu. Não se manifestou.
- "Bem, vamos embora", disse o major.
O heli partiu e ele foi nele. Durante o regresso a Bigene e, depois, a Barro as coisas foram amainando e já estava tudo normalizado quando lá chegámos.
Mas sei e senti que o que lhes dissera não caíu em vão.



[1] Alferes, os abutre vêm e comem-no. (crioulo)



Regresso de Bigene
Eu e o Ocha, que foi meu guarda-costas. Ele vive agora em Corroios.

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