Foi na passagem de ano de 1968/1969. Eu estava em Bissau e disseram-me que tinha de ir montar uma emboscada perto do aeroporto, pois suspeitavam de um ataque lá. Deram-me um pelotão de uma companhia que tinha acabado de chegar.
Antes de ir, decidi ir ao Bar de Oficiais do QG beber uma cerveja. Fui ao balcão, pedi uma e fui sentar-me com ela num dos sofás que lá havia. Tentava acalmar-me, pois não me agradara nada ter de ir para o aeroporto armar uma emboscada. Estava em Bissau para curtir, não para isso, já me chegava no mato. No meio destas reflexões chega-se à minha frente um tenente-coronel. Já me tinham dito que ele era o gerente da Messe de Oficiais, chamavam-lhe “O Lavrador”, porque gostava muito de tratar de uma horta que havia na zona da Messe.
- “Não pode estar aí, nosso alferes”, lança-me ele.
Fiquei mesmo espantado. Não estava a ver porquê.
- “Não posso porquê, meu tenente-coronel?”, perguntei-lhe, sem me levantar.
- “Porque o seu camuflado está a sujar o sofá”.
De facto, era tudo gente fina que estava ali naquele bar. Camisas de manga curta e calças nº 2 limpinhas e passadinhas a ferro, impecáveis, sapatos pretos brilhantes. E eu, com o meu querido camuflado, pele da minha carne em muitos dias e noites de mato, com as minhas botas calcurreadoras de zonas de capim e de bolanhas. Ele estava já muito amarelado e debotado pelo uso, tinha até um buraco ou outro, destoava um bocado, é verdade, mas estava limpo, tinha sido lavado, as botas estavam limpas da lama do tarrafe. Levantei-me e vi que o grupo que estava ao balcão nos observava.
- “Não vejo nada sujo”, olhei para as pernas, levantei os braços e olhei para cada um, dei meia volta à esquerda e à direita e observei-me os flancos.
- “Não interessa, assim fardado não pode estar aí”.
Tinham-me mandado para uma emboscada e vinha agora este gajo com estas merdas. Fiquei com vontade de lhe ir ao focinho. Todo eu estava para isso. Um major que estava ao balcão topou isso e chegou-se a nós.
- “Tenha calma, nosso alferes. Meu tenente-coronel, deixe o homem beber a cerveja. Ele vai-se já embora, não é?”.
Não disse nada, bebi o resto da cerveja, pus a garrafa em cima da mesa com força e saí. Disseram-me depois que o major se chamava Carlos Fabião.
Atrás de mim veio um alferes que eu já conhecia, trabalhava no Gabinete de Justiça do QG. Tenho pena de me ter esquecido do nome dele, só sei que era magro, moreno, e tinha uma barbicha à passa-piolho.
- “É pá, se quiseres fazer queixa do gajo o Spinola dá-lhe uma porrada com certeza”.
- “Não faço nada. Quero que o tipo se foda e o Spínola também”, e fui-me embora.
Já com o pelotão em viaturas, a caminho do aeroporto, chegámos ao pé do palácio do Governador. Ao lado estava o edifício da Associação Comercial. Havia lá grande festa, janelas iluminadas, ouvia-se música de dança. Mandei parar.
- “Porque é que paramos, meu alferes?”, pergunta-me o furriel ao pé de mim.
- “Estou com vontade de ir ali e dar cabo daquela merda toda. A gente aqui e os gajos a gozar.”
O furriel abriu os olhos.
- “Mas isso não pode ser. Levávamos um porrada das grandes. Sobretudo para o meu alferes que está prestes a ir embora…”.
- “Está bem, tens razão. Mas daqui a uns meses vais perceber este sentimento. Vamos embora.”
E fomos para o aeroporto. Não houve nada e lá para as cinco da madrugada regressámos.
Fui para os anexos à Messe de Oficiais onde eu dormia e onde dormiam também vários alferes que estavam de passagem ou à espera de embarque de regresso. Apeteceu-me fazer qualquer coisa para acalmar a fúria. Olhei e vi um bidão que estava ali com garrafas de cerveja. É isto.
Agarrei em várias garrafas e comecei a atirá-las para cima dos telhados do anexo. Que gozo! Bum, bum! Em cima dos telhados de zinco, bum, bum! Ri-me á brava a vê-los sair das portas todos alarmados e em cuecas. Que merda é esta?, gritavam.
Viram que era eu e ficaram mais descansados, chamaram-me todos os nomes e voltaram para as camas. Fui também. Estava mais satisfeito, tinha desopilado.
De manhã, o Almeida Campos convidou-me para ir com ele à 5ª REP, ao Bento. Era onde se sabia de tudo, porque por lá passavam quase todos os que vinham ou ainda estavam no mato e contavam coisas, tudo, operações, ataques, mortos. Era o sítio das informações, por isso a 5ª REP, que era a Repartição de Informações do QG. Todos ficavam a saber coisas, todos e também os miúdos e miúdas que entre nós andavam a vender camarão, caju e mancarra ou a engraxar as botas dos mais aprumados. Muita coisa o PAIGC deve ter sabido através deles.
Comemos uns camarões e bebemos umas canecas. O Almeida Campos tinha sido apontador de obus lá para o sul, já não me lembro onde, e estava à espera de embarque para ir embora.
- “É pá, e se a gente fosse dar uma volta?”, pergunta-me ele.
- “Uma volta aonde?”
- “Para fora de Bissau.”
Não me desagradava. Mas como?
- “Mas precisamos de um jipe para isso”.
- “Eu requisito um jipe ao QG.”
- “E os gajos vão dar-to?”, duvidei.
- “Está descansado que eu conheço lá um sargento”.
E conseguiu-o. Largámos de Bissau, não sem antes metermos uns whiskys no bar da Messe de Oficiais. Chegámos a Nhacra eram horas de almoçar. Parámos numa tasca á beira da estrada para comer. Foi frango de chabéu regado a muito vinho fresquinho.
- “A gente podia ir mais longe”, estávamos bem aviados e eu já estava por tudo.
- “Claro”, disse-me ele, “metemos pela estrada sempre em frente e logo se vê”.
Grande homem, era dos meus!
Fomos pela estrada uma hora, duas horas, não sei, não deu para contar. Nada, não vimos nada pelo caminho, só mato dum lado e doutro, até que chegámos a uma povoação. Muita gente nos olhou admirada quando entrámos.
- “Eu acho que isto é Mansoa”, pareceu-me.
Era. Um grupo de militares veio ter connosco. Cumprimentos, interrogações. Que vieram cá fazer? Nada. Só passear.
Havia um jogo de futebol e fomos até lá para ver. No fim do jogo houve festa com muita cerveja e nós entrámos. Estivemos muito tempo, pensei.
- “Ó Almeida Santos, é melhor irmos embora que se está a fazer tarde.”
- “Tá bem. Mas antes vamos pedir aqui umas cervejas para o caminho.”
Eles deram-nos uma cervejas, e um fuzileiro, ainda agora não sei porque é que ele lá estava, pediu-nos boleia. Foi connosco.
Foi uma viagem de regresso muito alegre. O Almeida Campos foi a conduzir e eu ao pé dele, de pé, sempre a cantar. O fuzileiro ia no banco de trás. Íamos bebendo as cervejas ofertadas.
Já tinha começado a escurecer quando vimos ao longe as luzes do aeroporto. Eu de pé, agarrado ao para brisas e sempre a cantar. Às tantas o Almeida Campos sai da estrada. O jipe andou uns metros e espeta-se contra uma árvore.
Foi uma sensação já vivida, quando fui projectado pelo rebentamento da mina. Foram uns segundos, ou minutos? Não dá para saber, porque é um tempo de nada. Há o choque, ou o rebentamento, e a seguir é o vazio completo, sem pensamento, sem ah! nem oh!, só nos sentimos quando estamos no chão. Foi o que sucedeu. Dei por mim no chão, no meio do capim. Levantei a cabeça e vi o jipe a arder, ao meu lado o fuzileiro gemia, olhei melhor e vi o Almeida Campos sem dizer nada, estendido. Cheguei-me ao pé dele e peguei-lhe na cabeça. Fiquei alarmado pois a mão ficou-me cheia de sangue. O fuzileiro ainda mexe mas este não. Vi umas casas não muito longe. Levantei-me, bati às portas mas ninguém me respondeu. Estava preocupado com o Almeida Santos. Vi umas luzes que se aproximavam vindo do lado do aeroporto.
Era uma patrulha que viu as luzes feitas pelo jipe a arder e vinha ver. Foram eles que nos levaram para o hospital.
O Almeida Campos e o fuzileiro ficaram lá. Este tinha uma costela partida, vinha atrás e batera no banco da frente. O alferes tinha um lanho na cabeça e uma ferida profunda na perna direita. Eu não tinha nada, só a farda chamuscada, e regressei ao anexo da Messe de Oficiais.
No dia seguinte fui ao hospital. O fuzileiro tinha sido transferido para a enfermaria da Marinha. O Almeida Campos estava na cama com uma perna engessada, a cabeça ligada e… uma cerveja na boca. Riu-se para mim.
- “Estás bom, pá?”, perguntou-me.
- “Eu estou, mas tu não pareces.”
- “Estou, sim senhor. Cervejas não faltam”.
Um major, encarregado da peritagem, chamou-me para ir com ele reconstituir o acidente.
- “Ó meu major, nós íamos devagar. Houve qualquer problema com a direcção do jipe.”
Riu-se e mostrou-me o sulco dos pneus fora da estrada, eram uns vinte metros na berma capinada, antes da árvore em que batêramos.
Eu fui apenas testemunha. O meu amigo, que requisitou o jipe e ia a conduzir, que era mais antigo do que eu, levou uma porrada de prisão disciplinar, teve de pagar o jipe e ficou mais uns tempos na Guiné.
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