(Publicadas no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Volume IX, Nº 33, Janeiro de 1954. Texto assinado por Amílcar Cabral e sua mulher Maria Helena Cabral. São aqui avançados a obrigatoriedade da realização do Recenseamento, o método utilizado e os escassos meios facultados bem como os objectivos que deviam servir essa medida)
Não constitui objectivo destas notas provar a utilidade ou a inutilidade do empreendimento. A utilidade ou a inutilidade dum Recenseamento Agrícola depende do papel que o mesmo desempenha ou vier desempenhar, como conhecimento, na evolução económica (portanto, social) do meio a que se refere. Isso, porque o Recenseamento Agrícola é um trabalho de base. Base do fomento agrícola duma região, num dado momento da sua evolução agrária. Será tanto mais útil quanto melhor servir a agricultura do povo ou povos a que diz respeito. Um Censo, seja da população, da agricultura, ou da indústria, se não visa a melhoria das condições de vida do povo ou povos a que e refere, não é só um trabalho inútil: é um empreendimento nocivo.
1.
Porque se está executando o Recenseamento Agrícola
Pela reunião de Londres, realizada de 15 a 19 de
Dezembro de 1947, Portugal contraiu o compromisso de levar a efeito o
Recenseamento Agrícola em 1950, nas suas parcelas ultramarinas. A F. A. O. (Organização
das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação) havia já estabelecido as
linhas gerais do Recensearnento. Em Novembro de 1948, o então Encarregado do
Governo da Guiné, nomeou uma Comissão constituída por 4 membro, para estudar e
planear o Recenseamento Agrícola, em cumprimento das determinações do
Ministério do Ultramar. E a Comissão apresentou um relatório no qual apenas esquematizou
os métodos de trabalho a seguir, indicou o pessoal
disponivel e o necessário, e calculou as despesas a efectuar em 1949.
Por razões entre as quais é de se salientar a
dificuldade do empreendimento, o Censo Agrícola não foi executado. Em Dezembro de 1952 foi dotada verba para a sua
efectivação, tendo surgido, naturalmente, a necessidade de transferência dessa
verba para 1953, por não ser possível o Recenseamento naquela altura do ano. A
dotação estipulada para todo o trabalho do Censo Agrícola correspondia à calculada para a despesa a efectuar em
1949.
Em Agosto de 1953, os Serviços Agrícolas e Florestais,
em cumprimento das determinações do Ministério do Ultramar, resolverarn
executar o Recenseamento Agrícola, tendo sido encarregado de planeá-lo e de
dirigir a sua execução, o autor desta nota.
A dificultar o complexo problema do Recenseamento Agrícola
em regiões de economia atrasada, como a Guiné, patentearam-se os seguintes
factores:
a) exiguidade da verba dotada (300 contos); b) falta de pessoal adestrado para tal
trabalho; c) falta de tempo para
efectivar os estudos preliminares e a preparação do pessoal disponível; d) dificuldade de
transporte; e) ausência de
quaisquer elementos de orientação para o trabalho, na parte relativa à
agricultura indígena.
Porque o Recenseamento tinha de ser feito,
efectuaram-se os estudos preliminares que foram possíveis, apresentaram-se as
informações e as propostas relativas à orientação
geral do trabalho (pessoal mínimo indispensável, distribuição das despesas,
transportes, etc.) e esquematizou-se o que se entendia poder ser feito nas
condições de trabalho facultadas. Entre estas, alientou-se a escassez dos
seguintes elementos: disponibilidades, tempo e pessoal.
Eis portanto, os motivos que levaram à execução do
Recenseamento Agrícola:
a) Porque havia que satisfazer um compromisso
contraído no campo internacional;
b) Porque o Ministério do Ultramar e o Governo da
Província determinaram a sua execução ;
c) Porque, para tal, foi dotada uma verba, ainda que
a exiguidade desta e o tempo disponivel implicassem a limitação do objectivo a
atingir.
2.
Objectivo do Recenseamenlo Agrícola
O relatório da Reunião de Londres atrás referida
indica como objectivo do Recensearnento obter, em cada território, um recenseamento
ou uma estimativa dos seguintes elementos:
a) Superfícies totais cultivadas e superfícies consagradas às diferentes culturas;
b) Número e características simples da população;
c) Importância do gado;
d) Produção das principais culturas,
Indica, além disso, que em cada território deve
procurar-se obter um método de trabalho adequado às condições do meio. Assim, sugere,
para os países de economia atrasada, o emprego de métodos de sondagem na investigação
dos elementos essenciais de agricultura indígena, bem como a necessidade de
utilizar os dados do censo populacional na generalização dos elementos colhidos
por sondagem.
Atendendo ao objectivo e sugestão referida, a Comissão
nomeada em 1948, para estudar o assunto, optou pelo método de amostragern. Considerou
como unidades as explorações agrícolas (individuais ou familiares), a quais
seriam agrupadas por tribu. Pretendia inquirir 2.200 explorações indígenas. A
generalização, a toda a área da Guiné, seria feita com base no Censo populacional
de 1950.
Tal critério implicaria uma generalização muito
lata (a toda a área da Guiné) e uma dispersão de pessoal incompatível com as
condições de trabalho facultada em 1953. Por isso, tentou-se resolver o
problema de maneira diferente, visando sempre os objectivos definidos na
Reunião de Londres de 1947, e atendendo às condições socioeconómicas do meio guineense..
Resumindo, pode afirmar-se que o objectivo do
Recenseamento é a obtenção dos elementos essenciais, qualitativos e
quantitativos, da agricultura indígena e da não indígena, na Guiné.
3.
O caso particular da Guiné.
A agricultura indígena.
Seria
descabido invocar argumentos para demonstrar a inviabilidade dum Recenseamento Agrícola
perfeito nas actuais condições socioeconómicas e culturais da Guiné. Basta
ponderar no atraso em que vivem a populações nativas, para concluir a impossibilidade
de obter directamente, do agricultor indígena, resposta aos inquéritos comuns
ao recenseamento agrícola.
Assim,
o inquérito individual só seria
aplicável ao agricultor não indígena e, mesmo neste caso, teria de limitar-se à
propriedade perfeita. O caso da agricultura indígena foi considerado
detidamente.
O aspecto qualitativo da agricultura indígena vai sendo
conhecido na sua generalidade. Conhecern-se as culturas principais. Sabe-se que
o tipo de exploração agrícola varia de povo para povo. Duma maneira geral, a
terra é um bem colectivo, sendo-o, também, os produtos das plantas e espontâneas.
A propriedade privada incide sobre os produtos obtidos pela agricultura
praticada pelos elementos constituintes da família. A extensão da área
cultivada depende estritamente do número de unidades de trabalho da família.
Todavia, o conhecimento dessas características
gerais, apesar de útil, não bastava para resolver o complexo problema do
conhecimento da agricultura indígena no seu aspecto quantitativo. Esse
conhecimento não podia ser obtido directamente. Duma maneira indirecta tudo
quanto se pudesse obter não passaria
duma estirnativa. Daí o facto de que o Recenseamento Agrícola não pode ultrapassar,
na actualidade, o limite duma estimativa.
Havia, portanto, que estruturar um método que
permitisse obter uma estimativa dos elementos essenciais da agricultura
indígena. Tal método devia gerar-se a partir da realidade da agricultura
guineense, dependendo, evidentemente, das condições de trabalho facultadas.
4.
O processo ulilizado na execução do Recenseamento
Agrícola. Crílica.
Para a agricultura praticada pelo não indígena, será seguido o processo normal de recenseamento. Os impressos correspondentes
ao questionário serão distribuídos aos agricultores não indígenas por intermédio
da autoridade adminisrativa .
A estimativa desejada, para a agricultura
indígena, teria de ser obtida pelo método chamado «de amostragern» Tal método
consiste fundamentalmente em escolher, numa dada área, um número de fracções
representativas da agricultura indígena, investigar tudo quanto seja possível sobre
e as fracções, e, por recapitulação, integração e extrapolação, generalizar o
elemento colhido a toda a área considerada. Para e a generalização é necessário
dispor- se duma ou de várias bases, entre a quais são mais importantes: I) as estatísticas
agrícolas anuais, estabelecidas pelos processos habituais; II) as estatísticas
demográficas estabelecidas pela Administração Civil (Censo da População); III) o número de contribuintes. É indispensável dispor desses elementos
tanto para a fracção estudada como para a área afectada pela generalização, e as
estatisticas têm de ser da mesma natureza.
Na Guiné a única base de que se pode dispor é o Censo
da População realizado anualmente pela autoridade administrativa
Um problema delicado é o da escolha da fracção
representativa sobre a qual incidirá o estudo que deve servir de base à generalização. – O processo comumente
aceite é o seguinte: escolhem-se, em número que permita uma base estatística
satisfatória, povoações que, pelas características da sua agricultura, se
podem considerar representativas duma dada região (povoação-tipo). Efectua-se
um estudo completo dessas povoações nos aspectos social, económico e cultural. Seguidamente
procede-se ao recensearnento agrícola. Os elementos colhidos (resultado de
medições efectuadas por agentes recenseadores adestrados) são sujeitos a uma
recapitulação e, depois de obtidos os índices referentes a cada elemento, são,
por extrapolação, generalizados ao território em estudo, com o auxílio das bases
já referidas.
As actuais condições da Guiné e o meio de trabalho
facultado não permitiram a utilização integral do processo referido.
Para que fosse possível a obtenção duma estimativa dos elementos essenciais da
agricultura indígena, houve que operar uma modificação no processo descrito, em
prejuízo do que tem de essencial. E a necessidade resultou da impossibilidade
material de estudar detalhadamente cada povoação-tipo escolhida, o que é consequência
da escassez de tempo, de verba e de pessoal adestrado.
O estudo das características agrícolas das diversas
regiões e dos diversos povos da Guiné, bem como os ensaios sumários realizados
no sentido da experimentação de método de trabalho, mostraram que: I) cada povo
assenta a sua actividade agrícola numa estrutura agrária constante (regime de
propriedade, forma de exploração, cultura e práticas de cultivo); II) a
presença dum dado povo numa dada região depende, geralmente, dos imperativos da
sua estrutura agrária; III) a exploração da terra é feita em regime familiar,
e, raramente, por morança e tabancas ; IV) a extensão da terra cultivada
depende principalmente do número de unidades de trabalho da família; V) a
agricultura duma dada região é a do
povo que a habitam; VI) dentro duma dada região, o tipo de agricultura
dominante é o da do povo mais representado; VII) a agricultura duma povoação
caracteristicamente rural é, genericamente, a da região em que se encontra
integrada; VIII) considerada uma povoação, a agricultura praticada por uma
dada família dum dado povo, é idêntica à praticada pela outra família do mesmo
povo.
Os factos anunciados levaram a concluir que: I) o
método de amostragem é na realidade não só aplicável como o único aplicável nas
actuais condições da Guiné; II) em qualquer região considerada existem povoações-tipo,
isto é, cuja agricultura é representativa da dessa região; III) a área do Posto
Administrativo pode ser considerada como unidade territorial para
generalização dos elemento essenciais da agricultura indígena, obtidos na
povoações-tipo dessa área, desde que seja tomado em cada Posto um número estatisticarnente
satisfatório de povoações-tipo; IV) na
impossibilidade material de estudar detalhadamente cada povoação-tipo, bastaria
estudar, em número estatisticamente satisfatório, a agricultura de vária
famílias dos povos das povoações-tipo escolhidas; V) os índices resultantes desse
estudo, conjugados com os dados do censo da população, permitiriam obter, por
generalização, uma estimativa dos elemento essenciais da agricultura indígena,
para toda unidade territorial, isto é, para cada Posto Administrativo; VI) o
único índice de possível obtenção, face aos meios de trabalho disponíveis, seriam
as médias por família, e por família por povo, de cada elemento essencial estudado.
E eis, em traços largos, o método usado na
execução do Recenseamento Agrícola. Mediante a premente necessidade de se
levar a cabo o empreendimento, mesmo em condições deficientes (de verba, de
tempo e de pessoal) estruturou-se um Plano Geral do Recenseamento Agrícola que
foi superiormente aprovado.
Porque o método da sondagen pode ser aplicado
através de vários processos, houve que determinar qual ou quais os processos
que deviam ser utilizados no Recen eamento. O estudo das características gerais
da agricultura guineense, atrás referido, mostrou ser conveniente o sseguinte
procedimento e tatístico:
a) Divisão da população em subpopulação «ou estratos
tão homogéneos quanto possível, de forma que as sondagens separadas efectuadas
em cada estrato conduzissem a estirnativas afectadas
de pequeno erro» (ROSENFELD, 1953). Daí o ter-se considerado o Posto
Administrativo como unidade territorial de generalização, e, dentro da área de
cada Posto, ter-se feito incidir a sondagem sobre cada povo principal, em separado.
b) Escolha,
em cada Posto Administrativo, de povoações que, pelas suas caracterísricas agrícolas
,podem ser consideradas como representativas da agricultura de toda a área do
Posto (povoações-tipo).
c) Em cada povoação-tipo o número de explorações
agrícolas Iamiliares de cada povo (grupo homogéneo), a inquirir, foi calculado
proporcionalrnente à importância do mesmo povo no conjunto populacional do Posto
a que pertence a povoação-tipo.
d) As
explorações agrícolas familiares, a inquirir em cada povoação-tipo de cada Posto,
e pertencentes a um dado povo, foram escolhidas ao acaso.
Convém notar que o método usado enferma de defeitos. Além
de não estudar integralmente a região considerada, obriga a uma estimativa. Ora
uma estirnativa tem carácter
subjectivo, o que é sempre
prejudicial. Fatalmente, cometem-se erros. A propósito, ROSENFELD (1953)
numa recente publicação da F. A. O., afirma: «O método das sondagens é um processo que toda a gente pratica, desde
sempre... O seu inconveniente reside no facto de apenas fornecer um valor
aproximado das caracteristicas medidas, mas apresenta a vantagem de não medir
os caracteres observados senão sobre um pequeno número de unidades», Além de
que, nos casos como o da Guiné, o único método aplicável é o das sondagens,
infere-se que possibilita uma diminuição considerável dos gastos com o
empreendimento.
A utilização do conjunto de processos referidos,
representa uma tentativa no sentido de restringir ao máximo a possibilidade de
erro neste trabalho que, segundo parece, é o primeiro, no género, a ser
realizado no Ultramar Português.
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Bissau. Janeiro de 1954
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