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9 de janeiro de 2012

346-O gomil de prata

É um conto deste livro de Fausto Duarte (o de "Auá"...):
Tem este conto que eu trancrevo e mais quatro: Os degredados [dois degredados para a Guiné], Evamaria [uma polaca que quer matar um general alemão], Renúncia [dois ingleses no mar, barco torpedeado, uma história de amor...], Regresso [o regresso à Guiné +para visitar a tumba do alferes Francisco de Freitas Moniz, morto em combate], e Ressureição [uma tragédia banal].  Este parece-me o de mais interesse.
Este conto tem a forma de um conto a um amigo. Que é ele próprio, referido-se no início às críticas a "uma crónica curiosís­sima sobre a Guiné Portuguesa firmada por teu nome".
A obra foi impressa, para a Editorial Inquérito, em 22 de Maio de 1945 no Centro Tipográfico Colonial, Lg. Rafael Bordalo Pinheiro, 27 e 28, em Lisboa. Recordo que a 7 de Maio desse ano se deu a rendição do governo alemão, depois do suicídio de Hitler a 30 de Abril. A obra já estaria escrita, portanto.
O exemplar tem aquele carimbo da Biblioteca Popular de Lisboa. Esta biblioteca foi criada em 1 de Abril de 1918 e extinta, porquê não sei, em 28 de Julho de 2001. O seu espólio relativo a 1911-1950 está na Biblioteca Nacional e o relativo a 1951-2001 na Torre do Tombo.
Sobre Fausto Duarte e a sua obra podem ler o que diz Leopoldo Amado em http://coisasdaguine.blogspot.com/2011/12/311-literatura-colonial-guineense.html.



O GOMIL [jarro para água] DE PRATA
Meu caro amigo:
Não sei quando e onde li uma crónica curiosís­sima sobre a Guiné Portuguesa firmada por teu nome, que de golpe foi descoberto pelos telescópios da crítica no apertado céu literário da nossa terra como estrela de grandeza primeira. Tão grande in­fluência exerceram em mim as cores de que te ser­viste para pintar estranhezas, que à beleza rebusca­da e artificial das paisagens europeias preferi o ver­de primitivo e desordenado de palmeiras e tamarin­dos, a vida singela do indígena enquadrado na mu­ralha alta de hábitos milenários, e o esforço - que dizes ser ignorado -- dos colonos, mancha exótica no grande formigueiro humano que é hoje a África.
Da Guiné, ou melhor das Conquistas, nunca pas­sei do que me ensinaram os compêndios escolares e o acaso de uma ou outra leitura respigada dos jornais. Tal entusiasmo puseste, porém, na pintura dos quadros africanos, tal viveza no colorido das ima­gens, que me abraçou a convicção de que só nas latitudes próximas do equador valeria a pena viver a vida. E no jeito de quem se despede do mundo, do seu «mundo», disse adeus ao Chiado e parti em guisa dos que não morrem sem ter descoberto qual­quer coisa na vida, ainda que seja um princípio fi­losófico ou uma doutrina política.
No barco ronceiro a que nada têm a invejar as primitivas máquinas de Fulton e que navegava cri­vado de luzes em ambos os bordos sinalizados com as cores nacionais - não fossem os submarinos na­zis confundi-lo com a boa preza britânica - depa­rou-se-me uma fauna humana díspar, heterogénea, confusa, dividida por classes que se ignoravam, três castas mais diferenciadas do que as que en­xameiam a Índia. Em todas elas minava, porém, esse desconsolo tão visceralmente português. Vi ali vaidades e despeitos, muita malícia ou antes malignidades mal dissimuladas, e foram-me reve­lados segredos tisnando reputações.
Quando o tédio me levou à proa e vi grupos de gente miseranda entregue ao devaneio, à fantasia de criar a umas centenas de milhas uma terra onde tudo seria extraordinariamente fácil, lembrei-me que ela afinal pouco se diferenciava dos emigrantes de há séculos, dos aventureiros das naus «que iam como carneiros, a monte, nas toldas, expostos ao sereno mortífero das noutes, sem cama para os en­fermos, respirando o ar podre das cobertas»...
Tive, contudo, a boa fortuna de partilhar a mes­ma cabina com o único indivíduo com quem se po­deria conversar a bordo: um comerciante culto, de educação primorosa, apaixonado por cousas de África, que nunca tivera assento em Conselhos de Governo, e soubera com elegância e agilidade espiritual furtar-se às solenidades palacianas. Sua mala guarda-roupa dissera-me, através de alguns rótulos coloridos, por que países viajara pela Euro­pa atacada de loucura. A linha dos ombros mostra­va que sabia vestir uma casaca. Tinha boas manei­ras, o que o distinguia do resto dos passageiros. Desbobinara durante esses longos dias de viagem perante os meus olhos extasiados toda a babelesca confusão que é a Guiné.
Faltavam poucas horas para chegarmos ao termo da nossa viagem, quando descemos pela última vez à cabina. Recolhi à pressa alguns artigos de toilete, afivelei as duas malas e o saco de viagem e, atra­vés da vigia, observei as terras baixas, marginadas de palmeiras. O meu companheiro debruçado sobre uma mala de couro da Rússia estava inteiramente absorvido na contemplação de qualquer cousa que eu não conseguia descortinar. Entre mim e o objecto de sua admiração interpunham-se seus ombros lar­gos, a sua figura esbelta que envergava então um fato branco de corte impecável. Um suspiro breve, quase imperceptível, a sua imobilidade e a atenção concentrada na parte interior da mala, despertaram-­me a curiosidade. Sabia-o céptico, desiludido por alguns anos de África. Êle adivinhou o meu interesse, sentiu o meu olhar sobre a nuca. Fechou a ma­la. Seus dedos procuraram as chaves. Hesitou um instante, e como que decidido por qualquer súbita resolução abriu-a novamente.
- Quer ver?
- ?!
Afastou-se para o lado e suas mãos apresenta­ram-me um gomi! de prata, com incrustações em ouro, cujo brilho e elegância de desenho do mais puro tipo oriental me deslumbraram. Era um objec­to raro, precioso, que o mais exigente coleccionador de antiguidades ambicionaria possuir para regalo dos olhos e da paixão por tudo quanto a beleza e o tempo marcaram de modo indelével.
Desejoso de ver de perto o objecto de sua singu­lar admiração avancei um passo e adiantei a mão direita para o segurar. Logo o seu braço se interpôs. E como eu o olhasse estupefacto, explicou aflito:
- Não lhe toque, por amor de Deus! Você pode­ria ser vítima de uma fatalidade.
- Por que razão? perguntei estranhando a cre­dulidade surpersticiosa em um homem como ele. - Tabu! confessou penalizado José de Castro - assim se chamava o meu companheiro de viagem.
E depois indo ao encontro do meu assombro, das ideas que me assaltavam, propôs:
- Vamos para o deck. Lá em cima lhe contarei a história. Temos tempo. Mas antes disso leia o que aqui está escrito. Cuidado. Não lhe mexa! Faça-me esse favor. Depois compreenderá o motivo. Viu? Repare nestas letras. O quê? Ah! sim ... Não com­preende a caligrafia em uso no século XVII? Eu ex­plico. Aqui em cima, na primeira linha, veja: «Ma­ria de Vilaldo». Da melhor nobreza do tempo. Era mulher de um capitão-mor de Goa. Depois, entre os dois pontos em que esta asa tão admirável pelo fino traço de suas curvas parece querer desprender-se do gornil, uma data: «1603». E em baixo um no­me: «Santa Teresa». Confesso, meu caro amigo, que não é descabida a sua admiração. Sucedeu-me o mesmo. Quando conhecer o drama que se liga a estas letras e números riscados penosamen e com um instrumento de ponta, o seu interesse aumentará.
Batido pelos raios do sol o metal lampejou. José de Castro apressou-se a embrulhá-lo com cautela e delicadezas de namorado em um pano de seda, e, cuidadosamente, fechou a mala. Subimos ao con­vés. O ar que ali se respirava já não tinha a mesma leveza. A terra estava próxima. Estranhei pela pri­meira vez o meu companheiro de viagem. Seus olhos estavam tristes. Confesso que me senti atraído por aquele mistério que suas palavras permitiam entre­ver. Passeámos na coberta durante uns minutos sem trocar palavra. Meus olhos vaguearam ao acaso pela baía. Ao fundo, pintadas de amarelo ou cin­zento, casas insignificantes, sem o mais leve traço de arquitectura tropical como eu sonhara ao ler uma revista estrangeira com fotografias da cidade java­nesa de Batávia. Alguns dongos deslocando-se sob a pressão da remada parecia aflorarem apenas à su­perficie suja do rio que lembrava, pela cor, água estagnada. Um grito lançado de um barco que ia partir trouxe-me o primeiro contacto com o nativo. Seguiu-se-lhe um coro de vozes tocadas de melan­colia. Era assim talvez que os pretos abafavam suas amarguras quando os negreiros ali aportavam e os metiam a bordo para os deixar do outro lado do grande oceano.
José de Castro todo entregue ao seu cuidar nada dizia. Depois, como se a mesma decisão nos co­lhesse de chofre, entrámos para o bar. O criado cor­reu solicito.
- Traga whisky! - ordenou ele.
Acendemos os cigarros. José de Castro ajeitou o vinco das calças, ergueu o rosto, olhou-me de fren­te, e, sorrindo, como que refeito duma penosa im­pressão, falou:
- Há cinco anos um negócio de oleaginosas obri­gou-me a ir até Uracan, uma das ilhas do Arquipé­lago dos Bijagós. Você verá que são estes os indí­genas de hábitos mais curiosos de toda a Guiné. Depois de ultimado o assunto que ali me levara per­corri a ilha a pé. A uma dúzia de quilómetros do porto fui surpreendido pelo ruído do tantã, e logo a seguir se me deparou uma aldeia acogulada de povo. O nativo que me acompanhava e conhecia o dialecto local indagou o que era e trouxe-me a novidade: o chef estava a morrer. Esperava-se a todo o instante o desenlace. Aproximei-me. Quis ver o quadro. Admira-se? Saiba que nunca me re­pugnaram os hábitos deles .
O criado voltara com os copos e a garrafa em cujo rótulo se destacava o nome do fabricante es­cocês: John Walker. Serviu-nos e retirou-se discre­tamente. Fizemos mecanicamente a saüdação habi­tual:
- Chim, chim!
- Chim, chim!
José de Castro pousou o copo. A luz punha reflexos de ouro na preciosa bebida. O aroma do tabaco loiro impregnava o ambiente de um odor agradável. Ouviam-se os passos apressados da marujada que eu distinguia através duma janela com cortinas amarelas presas por cordões de seda.
- Entrei na palhota. Os indígenas não se opuse­ram, continuou José de Castro, pousando novamen­te o copo na mesa e retirando o cigarro do cinzeiro. E vi sobre um miserável catre a figura torturada de um homem de meia idade. Tomei-lhe o pulso entre os dedos e soergui-lhe as pálpebras. Logo adivinhei a extensão do mal. Não se espante, meu caro amigo. A África é a grande rnestra da vida. Aqui, o isolamento e a necessidade dão invejável soma de experiência. Tirei do estojo uma seringa e dei-lhe uma injecção de soro antiofílico. Aquelas           ilhas são verdadeiros ninhos de cobras, Quem andar por lá tem de estar prevenido. Decidi aguardar a evolução do mal. Dois dias depois o nativo sorria, agrade­cido. Falou-me e não entendi. Chamei o criado. Entretanto o chefe Ievantara-se com grande difi­culdade, e de um pote de barro retirou o gomil de prata que você há pouco viu, enrolado em panos su­jos. É curioso ver como aquela gente bem dotada pela natureza, inteligente e sofredora, com um sen­timento claro de independência, viril e sã, não tem a menor noção de higiene. Pois bem, o chefe, como eu dizia, tomara o gomil e pôs-mo na mão. Como me visse atónito disse ao criado que mo oferecia. Era uma coisa que pertencera ao pai, ao avô e por este herdado de outros ascendentes. Sabia que um deles o encontrara enterrado; que pertencera aos brancos ali chegados num grande barco; que toda a sua gente morrera de morte violenta. E porque fora pertença de um homem da raça daquele que o salvara, devolvia-lho, na certeza de que o mal teria com isso o seu fim.
José de Castro sacudiu a cinza do cigarro. Uma ruga ensombrara-lhe a testa.
- Abandonei a palhota e prossegui no meu cami­nho. Andei pela ilha durante uns dias, encontrei restos de uma bombarda, de dois berços – peças curtas que se usavam ao tempo - e com informações imprecisas, detidas pelos anos, procurei descobrir, como um sábio que na posse de um simples osso reconstitui o esqueleto de um animal antediluviano, o fio inicial do enredo. Sim, meu caro. Eu pressen­tia, ou melhor tinha a certeza de que essas letras e números me conduziriam à verdade, rematou ele indicando ao criado os copos vazios.
- E soube alguma coisa? - preguntei interessado enquanto o criado nos servia.
- Estou hoje de posse da verdade. Para isso tive de ir a Lisboa.
Ante o meu cenho franzido, a minha expressão interrogativa senão duvidosa, de espanto perante a inesperada informação que dava novo rumo ao caso, êle persistiu:
- Regresso de Lisboa, como vê. Freqüentei bibliotecas, analisei, comparei textos, narrativas de nossos feitos no Oriente, e depois de muito meditar achei a solução do problema. Lembra-se da data e dos nomes? Ainda bem. Estes foram os .principais elementos, o começo do enredo. A leitura casual de ignorados documentos forneceu-me o resto. Quer ouvir?
Fora aumentara a azáfama da chegada. Os pas­sageiros ocupados com a bagagem, com as preo­cupações do desembarque, tinham esquecido o bar. Era o único recanto sossegado a bordo. Tínhamos sorte. Se o «barman» não estivesse ali a agitar o «shaker» o silêncio seria quase absoluto.
- Em 1603, a nau «Santa Teresa», de regresso da Índia, naufragou perto da ilha de Uracan, atraí­da de noite por uma fogueira feita com falsidade por indígenas, à maneira de que praticavam os povos do litoral mediterrânico, mestres na arte do embuste. Julgavam os marinheiros ter na frente gente amiga. Como necessitassem talvez de fazer aguada, aproa­ram na direcção da luz. Não é difícil imaginar o caso. Gente com meses de viagem longa e tormen­tosa, em um barco pequeno, sem o menor conforto. Uma luz no meio da desesperança da rota sem fim. Céu e água. Vários tons de azul. Sol, noites estre­ladas e depois sol novamente. E o mar imenso sem­pre em frente das pupilas ardentes, dos olhos ensaü­dados, a encher a alma de angústia. Aquela luz devia ter representado um alto no sofrimento das pessoas que viajavam na nau.
José de Castro levou o copo aos lábios, mas não bebeu. Estava sob a impressão da evocação do drama cujas cenas lhe afloravam aos lábios com facilidade como se ele o tivesse vivido.
- A bordo devia estar pela certa algum sacer­dote. Era hábito. Ele devia ter abençoado o luzeiro. O capitão da nau e os fidalgos deviam ter interro­gado os mapas para determinarem a posição, saber que porto era aquele. Mas você sabe como eram ao tempo insuficientes as cartas. Um engano nos rumos. Nada mais fácil. Obedecia-se aos ventos e às correntes. Caídos na cilada foram vítimas da abor­dagem e do massacre. Os fidalgos, os soldados da Índia, defenderam as suas vidas, os seus haveres de espada na mão, prontos a matar e a morrer. Apenas se salvou uma mulher. Chamava-se ela: «Maria de Vilaldo». A nau era a «Santa Teresa», e o naufrágio deu-se em uma noite sombria do ano de «1603». Trouxeram-na os indígenas para a terra e ela foi logo cobiçada pelos olhos sensuais do rei. Não é difícil reconstituir a cena. Deslumbrado pela formosura da branca, adorando-a como se se tra­tasse de um ídolo, um dos filhos do régulo matou o pai e fugiu com Maria de Vilaldo numa canoa. Andaram perdidos. O nativo respeitou-a. Sofreram privações, e antes dele aportar à feitoria mais pró­xima onde viviam alguns brancos, Maria de Vilaldo morria. Levou-lhes o cadáver. Os colonos, sem o ouvir, justiçaram-no. Na fuga precipitada a branca deixara cair na praia o gomil de prata que trouxera consigo do Oriente. Inscrevera nele durante as horas de angústia numa palhota indígena, como recordação, os nomes e os números que você leu, concluíu José de Castro bebendo o resto do whisky.
O vapor apitou. Três gemidos longos saudando a terra mordida de sol.
Despedi-me de José de Castro. Quatro meses de­pois soube que um torado, espécie de tufão que varre a Guiné na época pluviosa, o surpreendera próximo da Ilha de Uracan. O barco desaparecera e com ele o exportador de oleaginosas, figura insi­nuante de verdadeiro colono, vítima do mal impor­tado da Ásia através desse objecto de arte oriental que fizera naufragar a «Santa Teresa» e perseguira uma tribo inteira naquela ignorada ilha.
Crê, meu amigo, que desde então os fetiches nunca mais deixaram de me impressionar.

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