Tem este conto que eu trancrevo e mais quatro: Os degredados [dois degredados para a Guiné], Evamaria [uma polaca que quer matar um general alemão], Renúncia [dois ingleses no mar, barco torpedeado, uma história de amor...], Regresso [o regresso à Guiné +para visitar a tumba do alferes Francisco de Freitas Moniz, morto em combate], e Ressureição [uma tragédia banal]. Este parece-me o de mais interesse.
Este conto tem a forma de um conto a um amigo. Que é ele próprio, referido-se no início às críticas a "uma crónica curiosíssima sobre a Guiné Portuguesa firmada por teu nome".
A obra foi impressa, para a Editorial Inquérito, em 22 de Maio de 1945 no Centro Tipográfico Colonial, Lg. Rafael Bordalo Pinheiro, 27 e 28, em Lisboa. Recordo que a 7 de Maio desse ano se deu a rendição do governo alemão, depois do suicídio de Hitler a 30 de Abril. A obra já estaria escrita, portanto.
Este conto tem a forma de um conto a um amigo. Que é ele próprio, referido-se no início às críticas a "uma crónica curiosíssima sobre a Guiné Portuguesa firmada por teu nome".
A obra foi impressa, para a Editorial Inquérito, em 22 de Maio de 1945 no Centro Tipográfico Colonial, Lg. Rafael Bordalo Pinheiro, 27 e 28, em Lisboa. Recordo que a 7 de Maio desse ano se deu a rendição do governo alemão, depois do suicídio de Hitler a 30 de Abril. A obra já estaria escrita, portanto.
O exemplar tem aquele carimbo da Biblioteca Popular de Lisboa. Esta biblioteca foi criada em 1 de Abril de 1918 e extinta, porquê não sei, em 28 de Julho de 2001. O seu espólio relativo a 1911-1950 está na Biblioteca Nacional e o relativo a 1951-2001 na Torre do Tombo.
Sobre Fausto Duarte e a sua obra podem ler o que diz Leopoldo Amado em http://coisasdaguine.blogspot.com/2011/12/311-literatura-colonial-guineense.html.
Sobre Fausto Duarte e a sua obra podem ler o que diz Leopoldo Amado em http://coisasdaguine.blogspot.com/2011/12/311-literatura-colonial-guineense.html.
O GOMIL [jarro para água] DE PRATA
Meu caro amigo:
Não sei quando e onde li uma crónica curiosíssima sobre a Guiné Portuguesa
firmada por teu nome, que de golpe foi descoberto pelos telescópios da crítica
no apertado céu literário da nossa terra como estrela de grandeza primeira. Tão
grande influência exerceram em mim as cores de que te serviste para pintar
estranhezas, que à beleza rebuscada e artificial das paisagens europeias preferi
o verde primitivo e desordenado de palmeiras e tamarindos, a vida singela do
indígena enquadrado na muralha alta
de hábitos milenários, e o esforço - que dizes ser ignorado -- dos colonos,
mancha exótica no grande formigueiro
humano que é hoje a África.
Da Guiné, ou melhor das Conquistas, nunca
passei do que me ensinaram os compêndios escolares e o acaso de uma ou outra
leitura respigada dos jornais. Tal entusiasmo puseste, porém, na pintura dos quadros africanos, tal viveza no
colorido das imagens, que me abraçou a convicção de que só nas latitudes
próximas do equador valeria a pena viver a vida. E no jeito de quem se despede
do mundo, do seu «mundo», disse adeus ao Chiado e parti em guisa dos que não
morrem sem ter descoberto qualquer coisa na vida, ainda que seja um princípio
filosófico ou uma doutrina política.
No barco ronceiro a que nada têm a invejar as
primitivas máquinas de Fulton e que navegava crivado de luzes em ambos os
bordos sinalizados com as cores nacionais - não fossem os submarinos nazis
confundi-lo com a boa preza britânica - deparou-se-me uma fauna humana díspar,
heterogénea, confusa, dividida por classes que se ignoravam, três castas mais
diferenciadas do que as que enxameiam a Índia. Em todas elas minava, porém, esse
desconsolo tão visceralmente português. Vi ali vaidades e despeitos, muita
malícia ou antes malignidades mal dissimuladas, e foram-me revelados segredos
tisnando reputações.
Quando o tédio me levou à proa e vi grupos de
gente miseranda entregue ao devaneio, à fantasia
de criar a umas centenas de milhas uma terra onde tudo seria extraordinariamente
fácil, lembrei-me que ela afinal pouco se diferenciava dos emigrantes de há
séculos, dos aventureiros das naus «que iam como carneiros, a monte, nas
toldas, expostos ao sereno mortífero das noutes, sem cama para os enfermos,
respirando o ar podre das cobertas»...
Tive, contudo, a boa fortuna de partilhar a mesma cabina com o único
indivíduo com quem se poderia conversar a bordo: um comerciante culto, de
educação primorosa, apaixonado por cousas de África, que nunca tivera assento
em Conselhos de Governo, e soubera com elegância e agilidade espiritual furtar-se às solenidades palacianas. Sua mala
guarda-roupa dissera-me, através de alguns rótulos coloridos, por que países
viajara pela Europa atacada de loucura. A linha dos ombros mostrava que sabia
vestir uma casaca. Tinha boas maneiras, o que o distinguia do resto dos
passageiros. Desbobinara durante esses longos dias de viagem perante os meus
olhos extasiados toda a babelesca confusão que é a Guiné.
Faltavam poucas horas para
chegarmos ao termo da nossa viagem, quando descemos pela última vez à cabina. Recolhi à pressa alguns artigos de
toilete, afivelei as duas malas e o saco de viagem e, através da vigia,
observei as terras baixas, marginadas de palmeiras. O meu companheiro debruçado
sobre uma mala de couro da Rússia estava inteiramente absorvido na contemplação
de qualquer cousa que eu não conseguia descortinar. Entre mim e o objecto de
sua admiração interpunham-se seus ombros largos, a sua figura esbelta que
envergava então um fato branco de corte impecável. Um suspiro breve, quase
imperceptível, a sua imobilidade e a atenção concentrada na parte interior da
mala, despertaram-me a curiosidade. Sabia-o céptico, desiludido por alguns
anos de África. Êle adivinhou o meu interesse, sentiu o meu olhar sobre a nuca. Fechou a mala.
Seus dedos procuraram as chaves. Hesitou um instante, e como que decidido por
qualquer súbita resolução abriu-a novamente.
- Quer ver?
- ?!
Afastou-se para o lado e suas mãos apresentaram-me
um gomi! de prata, com incrustações em ouro, cujo brilho e elegância de desenho
do mais puro tipo oriental me deslumbraram. Era um objecto raro, precioso, que
o mais exigente coleccionador de antiguidades ambicionaria possuir para regalo
dos olhos e da paixão por tudo quanto a beleza e o tempo marcaram de modo
indelével.
Desejoso de ver de perto o objecto de sua singular
admiração avancei um passo e adiantei a mão direita para o segurar. Logo o seu
braço se interpôs. E como eu o olhasse estupefacto, explicou aflito:
- Não lhe toque, por amor de Deus! Você poderia
ser vítima de uma fatalidade.
- Por que razão? perguntei estranhando a credulidade surpersticiosa em um
homem como ele. - Tabu! confessou penalizado José de Castro - assim se chamava
o meu companheiro de viagem.
E depois indo ao encontro do meu assombro, das ideas
que me assaltavam, propôs:
- Vamos para o deck. Lá em cima lhe contarei a história. Temos tempo. Mas
antes disso leia o que aqui está escrito. Cuidado. Não lhe mexa! Faça-me esse
favor. Depois compreenderá o motivo. Viu? Repare nestas letras. O quê? Ah! sim
... Não compreende a caligrafia em uso no século XVII? Eu explico. Aqui em
cima, na primeira linha, veja: «Maria
de Vilaldo». Da melhor nobreza do tempo. Era mulher de um capitão-mor de Goa. Depois,
entre os dois pontos em que esta asa tão admirável pelo fino traço de suas
curvas parece querer desprender-se do gornil, uma data: «1603». E em baixo um
nome: «Santa Teresa». Confesso, meu caro amigo, que não é descabida a sua
admiração. Sucedeu-me o mesmo. Quando conhecer o drama que se liga a estas
letras e números riscados penosamen e com um instrumento de ponta, o seu interesse
aumentará.
Batido pelos raios do sol o metal lampejou. José de Castro apressou-se a embrulhá-lo com
cautela e delicadezas de namorado em um pano de seda, e, cuidadosamente, fechou
a mala. Subimos ao convés. O ar que ali se respirava já não tinha a mesma
leveza. A terra estava próxima. Estranhei pela primeira vez o meu companheiro
de viagem. Seus olhos estavam tristes. Confesso que me senti atraído por aquele
mistério que suas palavras permitiam entrever. Passeámos na coberta durante
uns minutos sem trocar palavra. Meus olhos vaguearam ao acaso pela baía. Ao
fundo, pintadas de amarelo ou cinzento, casas insignificantes, sem o mais leve
traço de arquitectura tropical como eu sonhara ao ler uma revista estrangeira
com fotografias da cidade javanesa de Batávia. Alguns dongos deslocando-se sob
a pressão da remada parecia aflorarem apenas à
superficie suja do rio que lembrava, pela cor, água estagnada. Um grito
lançado de um barco que ia partir trouxe-me o primeiro contacto com o nativo. Seguiu-se-lhe
um coro de vozes tocadas de melancolia. Era assim talvez que os pretos
abafavam suas amarguras quando os negreiros ali aportavam e os metiam a bordo
para os deixar do outro lado do grande oceano.
José de Castro todo entregue
ao seu cuidar nada dizia. Depois, como se a mesma decisão nos colhesse de
chofre, entrámos para o bar. O criado correu solicito.
- Traga whisky! - ordenou ele.
Acendemos os cigarros. José de
Castro ajeitou o vinco das calças, ergueu o rosto, olhou-me de frente, e,
sorrindo, como que refeito duma penosa impressão, falou:
- Há cinco anos um negócio de
oleaginosas obrigou-me a ir até Uracan, uma das ilhas do Arquipélago dos Bijagós. Você
verá que são estes os indígenas de hábitos mais curiosos de toda a Guiné. Depois
de ultimado o assunto que ali me levara percorri a ilha a pé. A uma dúzia de
quilómetros do porto fui surpreendido
pelo ruído do tantã, e logo a seguir se me deparou uma aldeia acogulada de
povo. O nativo que me acompanhava e conhecia o dialecto local indagou o que era
e trouxe-me a novidade: o chef estava a morrer. Esperava-se a todo o instante o
desenlace. Aproximei-me. Quis ver o quadro. Admira-se? Saiba que nunca me repugnaram
os hábitos deles .
O criado voltara com os copos
e a garrafa em cujo rótulo se destacava o nome do fabricante escocês: John
Walker. Serviu-nos e retirou-se discretamente. Fizemos mecanicamente a
saüdação habitual:
- Chim, chim!
- Chim, chim!
José de Castro pousou o copo. A luz punha reflexos de ouro na preciosa bebida. O aroma do tabaco
loiro impregnava o ambiente de um odor agradável. Ouviam-se os passos
apressados da marujada que eu distinguia através duma janela com cortinas
amarelas presas por cordões de seda.
- Entrei na palhota. Os indígenas não se opuseram, continuou José de
Castro, pousando novamente o copo na mesa e retirando o cigarro do cinzeiro. E
vi sobre um miserável catre a figura torturada de um homem de meia idade. Tomei-lhe o pulso entre os dedos e
soergui-lhe as pálpebras. Logo adivinhei a extensão do mal. Não se espante, meu
caro amigo. A África é a grande rnestra
da vida. Aqui, o isolamento e a necessidade dão invejável soma de experiência. Tirei do estojo uma seringa e dei-lhe uma injecção de soro
antiofílico. Aquelas ilhas são verdadeiros ninhos de cobras, Quem
andar por lá tem de estar prevenido. Decidi aguardar a evolução do mal. Dois
dias depois o nativo sorria, agradecido.
Falou-me e não entendi. Chamei o
criado. Entretanto o chefe Ievantara-se com grande dificuldade, e de um pote de
barro retirou o gomil de prata que você há pouco viu, enrolado em panos sujos.
É curioso ver como aquela gente bem
dotada pela natureza, inteligente e sofredora, com um sentimento claro de
independência, viril e sã, não tem a menor noção de higiene. Pois bem, o chefe,
como eu dizia, tomara o gomil e pôs-mo na mão. Como me visse atónito disse ao
criado que mo oferecia. Era uma coisa que pertencera ao pai, ao avô e por este
herdado de outros ascendentes. Sabia que um deles o encontrara enterrado; que
pertencera aos brancos ali chegados num grande barco; que toda a sua gente
morrera de morte violenta. E porque fora pertença de um homem da raça daquele
que o salvara, devolvia-lho, na certeza de que o mal teria com isso o seu fim.
José de Castro sacudiu a cinza do cigarro. Uma
ruga ensombrara-lhe a testa.
- Abandonei a palhota e prossegui no meu caminho.
Andei pela ilha durante uns dias, encontrei restos de uma bombarda, de dois
berços – peças curtas que se usavam ao tempo - e com informações imprecisas, detidas
pelos anos, procurei descobrir, como um sábio que na posse de um simples osso
reconstitui o esqueleto de um animal antediluviano, o fio inicial do enredo. Sim,
meu caro. Eu pressentia, ou melhor tinha a certeza de que essas letras e
números me conduziriam à verdade, rematou ele indicando
ao criado os copos vazios.
- E soube alguma coisa? - preguntei interessado enquanto o criado nos
servia.
- Estou hoje de posse da verdade. Para isso tive de ir a Lisboa.
Ante o meu cenho franzido, a minha expressão interrogativa senão duvidosa,
de espanto perante a inesperada informação que dava novo rumo ao caso, êle
persistiu:
- Regresso de Lisboa, como vê. Freqüentei bibliotecas, analisei, comparei
textos, narrativas de nossos feitos no Oriente, e depois de muito meditar achei
a solução do problema. Lembra-se da data e dos nomes? Ainda bem. Estes foram os
.principais elementos, o começo do enredo. A leitura casual de ignorados
documentos forneceu-me o resto. Quer ouvir?
Fora aumentara a azáfama da chegada. Os passageiros
ocupados com a bagagem, com as preocupações do desembarque, tinham esquecido o
bar. Era o único recanto sossegado a bordo. Tínhamos sorte. Se o «barman» não
estivesse ali a agitar o «shaker» o silêncio seria quase absoluto.
- Em 1603, a nau «Santa Teresa», de regresso da Índia, naufragou perto da
ilha de Uracan, atraída de noite por uma fogueira feita com falsidade por
indígenas, à maneira de que praticavam os povos do litoral mediterrânico,
mestres na arte do embuste. Julgavam os marinheiros ter na frente gente amiga.
Como necessitassem talvez de fazer aguada, aproaram na direcção da luz. Não é difícil imaginar o caso. Gente com meses
de viagem longa e tormentosa, em um barco pequeno, sem o menor conforto. Uma
luz no meio da desesperança da rota sem fim. Céu e água. Vários tons de azul.
Sol, noites estreladas e depois sol novamente. E o mar imenso sempre em
frente das pupilas ardentes, dos olhos ensaüdados, a encher a alma de
angústia. Aquela luz devia ter representado um alto no sofrimento das pessoas
que viajavam na nau.
José de Castro levou o copo aos lábios, mas não
bebeu. Estava sob a impressão da evocação do drama cujas cenas lhe afloravam aos
lábios com facilidade como se ele o tivesse vivido.
- A bordo devia estar pela certa algum sacerdote. Era
hábito. Ele devia ter abençoado o luzeiro. O capitão da nau e os fidalgos
deviam ter interrogado os mapas para determinarem a posição, saber que porto
era aquele. Mas você sabe como eram ao tempo insuficientes as cartas. Um engano
nos rumos. Nada mais fácil. Obedecia-se aos ventos e às correntes. Caídos na
cilada foram vítimas da abordagem e do massacre. Os fidalgos, os soldados da Índia,
defenderam as suas vidas, os seus haveres de espada na mão, prontos a matar e a
morrer. Apenas se salvou uma mulher. Chamava-se ela: «Maria de Vilaldo». A nau
era a «Santa Teresa», e o naufrágio deu-se em uma noite sombria do ano de «1603». Trouxeram-na os indígenas para
a terra e ela foi logo cobiçada pelos olhos sensuais do rei. Não é difícil
reconstituir a cena. Deslumbrado pela formosura da branca, adorando-a como se
se tratasse de um ídolo, um dos filhos do régulo matou o pai e fugiu com Maria
de Vilaldo numa canoa. Andaram perdidos. O nativo respeitou-a. Sofreram
privações, e antes dele aportar à feitoria mais próxima onde viviam alguns
brancos, Maria de Vilaldo morria. Levou-lhes o cadáver. Os colonos, sem o
ouvir, justiçaram-no. Na fuga precipitada a branca deixara cair na praia o
gomil de prata que trouxera consigo do Oriente. Inscrevera nele durante as
horas de angústia numa palhota indígena, como recordação, os nomes e os números
que você leu, concluíu José de Castro bebendo o resto do whisky.
O vapor apitou.
Três gemidos longos saudando a terra mordida de sol.
Despedi-me de José de Castro.
Quatro meses depois soube que um torado, espécie de tufão que varre a Guiné na
época pluviosa, o surpreendera próximo da Ilha de Uracan. O barco desaparecera
e com ele o exportador de oleaginosas,
figura insinuante de verdadeiro colono, vítima do mal importado da Ásia através
desse objecto de arte oriental que fizera naufragar a «Santa Teresa» e
perseguira uma tribo inteira naquela ignorada ilha.
Crê, meu amigo, que desde
então os fetiches nunca mais deixaram de me impressionar.
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