
São
numerosos os rápidos do rio Corubal. Cusselinta e Saltinho, susceptíveis de
aproveitamento hidráulico segundo algumas opiniões, são os mais importantes do
nosso território. Foi neste último que se construiu, como solução provisória, a
passagem submersível que permite durante alguns meses a ligação entre o Norte
e Sul da província. Um pouco mais
abaixo, onde o rio se estreita, está a construir-se com o grés como alicerce, a
ponte Craveiro Lopes que beneficiará extraordinariamente a rede rodoviária da
zona sul da província para permitir no futuro uma exploração compensadora das
riquezas das circunscrições de Fulacunda e Catió. É de admitir também a sua
provável utilidade para o turismo, logo que seja possível actuar a sério neste
importante sector de propaganda e receita que representa uma grande preocupação
de muitos países e regiões.
O topónimo Corubal, segundo concluiu o comandante Teixeira da Mota,
o mais categorizado Investigador contemporâneo dos assuntos guineenses, é a
deturpação de Colibá o qual, por sua vez, provém da região limítrofe de Coli.
Outras fontes, porém, pretendem que a razão do nome se filia no facto de
«corubal» ser corruptela de curbail, nome com que, nos recuados tempos,
também se designava o âmbar.
Mas um autor antigo põe-nos a notícia transbordante de curiosidade
de que o termo Corubal queria dizer «desavergonhado» numa tradicional expressão
nativa. O rio galgava frequentemente o leito e o seu impetuoso caudal era
useiro e vezeiro na destruição das culturas marginais. O arroz à beira do rio, o algodão, o café, o
tabaco e outras culturas pequenas de tipo experimental, na parte enxuta, por
vezes alagável, quando o Corubal era irreverente, atrevido... E daí, Corubal -
o «desavergonhado»...
ᴥ
Decorria a época do extraordinário Caetano Nosolini,
esse homem que encheu numerosas páginas da história da Guiné na primeira metade
do século XIX, quando era tudo e ainda pioneiro de feitorias e
estabelecimentos agrícolas nas margens do rio caudaloso. Na época do discutido monopólio de Nicolau Macedo com o exclusivo de
comércio e navegação no no. Na época
em que se fazia, lá na foz, quando na baixa-mar, a colheita do âmbar, produto
fossilizado das resinosas marginais que as águas do Corubal arrastaram para o
acumular através dos séculos. Na época, ainda, das contínuas turbulências
entre as tribos fulas, fulas-pretos, mandingas e biafadas em permanentes
escaramuças conhecidas por «Guerras do Forriá», um Forriá que no dizer dos Fulas significa «terra da liberdade»
apesar de acontecer as sucessivas chacinas, os incêndios das povoações, os
roubos de gado e a captura dos vencidos, logo considerados escravos...
Uma época do
Corubal remexido, dos pioneiros e dos belicosos Infali Sancó, Paté Coiada,
Mamadú Paté e Bacar Guidali. Era um
Corubal latejante de presença humana a ombrear com um outro período mais remoto
que Francisco de Lemos Coelho nos descreveu em 1669: «Há no fim da
terra de Guinalá hüa grande aldêa que chamaõ Curubale, que he como feira adonde
vem mercadores de todas as partes a comprar, e vender, e nella se acha sempre o
que se busca, vendesse nella principalmente muitos negros, e roupa, e tintas
com que se tinge a roupa em Guiné de azul», acrescentando quinze anos
depois: «he como feira de toda a terra; sendo que em todas estes reinos há
feira franca de sete em sete dias... mas nessa de Curubale todos os dias de
anno he feira».
A densidade populacional das regiões servidas pelo Corubal,
especialmente o Forriá, é das mais baixas da província. A vida ausentou-se,
cerraram-se os horizontes do comércio, da agricultura e da guerra.
Desapareceram as grandes povoações onde chegavam as caravanas para o comércio
do sal, dos escravos, dos panos e da tinta azul. As enxadas dos ponteiros cavando
o solo humoso e alagável é uma recordação. O cruzar de espadas dos chefes belicosos
não passa hoje dum tema histórico. O sossego é absoluto. Liberdade de expansão
para a flora e fauna. Um retorno à Natureza.
Vem, daqui,
o interesse turístico da região que se estende pelos vales do rio, pelas
savanas, colinas e canais até à lagoa de Cufada e, mais ao sul, à mata de
Cantanhez, reserva de caça. Não há hotéis, não há pousadas nem o quer que seja
de artificial que proporcione comodidades ao turista. Mas pode-se lá chegar,
sem odisseias, sem dificuldades, adoptando o campismo nas sedutoras margens dos
rápidos de Cusselinta e Saltinho ou em viagem com retorno no mesmo dia para
gozar os prazeres da pesca desportiva, as emoções fortes da caça ou as
sensações aliciantes do naturalismo. No rio há variedade de peixes e os
descomunais e pacíficos hipopótamos. Nos mangais a orlar o rio e no arvoredo
próximo é numerosa a fauna aviária. Garças ribeirinhas, pelicanos, maçaricos e
uma imensidade de passarada multicor. No mato aparecem a cabra selvagem, a gazela, o sim-sim, o javali, o
porco-espinho, a onça, o búfalo e, por vezes, o portentoso elefante. São
muitos os patos selvagens, as chocas (perdizes) e as galinhas do mato. Enfim um mundo diferente para os desportistas-metropolitanos que se
decidam a visitar-nos e até para os que vivem na província que não tenham
ainda contactado com o mato, com o verdadeiro mato, tão cioso a ocultar-nos o
seu exotismo e uma vida animal que nos evita e receia.
O mato não é aquela fonte de arrepios ou o manancial de ilusões que nos
impingem os livros e os filmes destinados a leitores ou a plateias que se
deliciam com aventuras tipo Salgari ou Tarzan... Goza-se
nele uma quietude que reconforta, um ambiente silente de oásis como
entorpecente que não vicia e que é um refrigério. Os odores silvestres, a
abundância do verde, a vida ao ar livre que nos liberta da rotina dos livros de
ponto dos despeitos e das competições humanas. O andar perto da vida animal
adivinhando existências que se ocultam e que fogem de nós. Os esquilos, os roedores, os répteis, as
borboletas e a passarada polícroma. Todo um conjunto
que nos arrasta a sentir interesse profundo pela Natureza. E, à noite, a musicalidade dos insectos, das aves
nocturnas, os ouvidos cheios da orquestra ininterrupta dos grilos, o ruído
surdo das águas dos rápidos e o toque dos tambores nas povoações distantes… Estamos
certos que Kipling gostaria de ter vindo ao Corubal...
O próprio
fenómeno do macaréu que se regista na bifurcação do rio com o canal e o rio
Geba é um aliciante motivo turístico. O fenómeno, semelhante ao «pro roca» dos
brasileiros que se regista no Amazonas, tem constituído através dos tempos,
desde que ali apareceram as caravelas de Diogo Gomes até à actualidade, forte
motivo de curiosidade. Só por si, um espectáculo digno de presenciar-se. É uma enchente a modos de blitz, uma
onda avassaladora de águas em turbilhão e grande fragor. Já André Álvares de
Almada, o célebre capitão mercante do tempo do marfim, do ouro e dos
escravos, a referenciou com esta saborosa descrição:
«Esta
navegação é perigosa por causa da água do Macareo, que é encher este rio lá em
cima com três mares somente. Estando
a maré vazia, dando três mares, fica preia-mar de todo; e antes de virem estes mares
se ouve roncar um grande espaço e mete medo às pessoas que nunca viram isto. E correm as embarcações grande risco, mas já os pilotos delas sabem
as conjunções, e as tomam de maneira que não perigam. Algumas caravelas nossas
de até sessenta moios, que algumas vezes lá vão, no passar, quando dá a água do
Macareo, usam desta maneira. Têm algumas sonderiças e amarras ostadas umas nas
outras, e estão prestes com elas, e o navio surto e a amarra na mão. Tanto que
dão aqueles mares e vão largando e vão sobre elas aleiando muito depressa as
amarras, e desta maneira passam sem perigo, porque se estivessem com a amarra
abitada não deixariam de sossobrarem e passarem trabalho.»
ᴥ
Conhecemos o rápido de Cusselinta há uma dezena de anos. Um caçador mandinga acompanhou-nos como cicerone e pisteiro.
Prometera-nos mostrar os hipopótamos. Depois dum banho refrescante na água límpida retida no grés (os crocodilos
não estão ali…) o nosso pisteiro quis ir mostrar-nos os bichos, um pouco mais
abaixo, onde o rio se estreita. Caminhámos marginando
o mangaI. Aproveitámos todas as veredas para espreitar as águas quietas do rio.
Impaciência, curiosidade... Chegámos a um ponto onde o capim ligado ao mangal
estava batido como que assinalando a passagem de coisas descomunais. As
pegadas, amplas e fundas, e o excremento fresco, ainda a fumegar, eram uma
indicação. Entrámos no espesso do mangaI e subimos pelos troncos mais fortes a
procurar o melhor ponto de vigia. O acesso era um tanto difícil. O nosso amigo
caçador mandinga, pisteiro famoso, puxou do seu fotan (apito feito dum pedaço de bambú) e rompeu um silvo
cavo, fazendo modulação de sons. Apitou, apitou. E quando já estávamos impacientes, desiludidos, como que logrados, eis que
surgem das águas, lá perto da outra margem, duas cabeças de hipopótamos, como
proas de submarinos que vêm à superfície...
A flauta encantada do nosso pisteiro confirmara a
apregoada virtude de fazer aparecer os volumosos mamíferos.
Empoleirados
como símios, notámos que a carabina ficara presa pela bandoleira num tronco fora
do alcance da mão. Imprevidência de inexperientes. Não convinha fazer-se ruído.
Os bichos já nos tinham observado. E
daí a fazerem a imersão foi um momento (um momento em que ficámos estáticos...).
Nem, ao menos, tivemos a desenvoltura de fazer uso da «Zeiss» que trazíamos
dependurada no pescoço, aberta e focada, pronta a fazer o clic...
Fracassámos no tiro, fracassámos na foto!
Mas conservamos ainda hoje, a sensação indefinida desses momentos tão felizes, tão belos, vividos mais perto da Natureza.
Alexandre Barbosa,
Guinéus - contos, narrativas, crónicas,
3ª edição,
Livraria Progresso Editora,
Lisboa,
1968
Guinéus - contos, narrativas, crónicas,
3ª edição,
Livraria Progresso Editora,
Lisboa,
1968
Bravo camarigo Marques Lopes,há sempre qualquer coisa ainda desconhecida,da nossa estadia na Guiné,gostei muito deste texto. Obrigado e um abraço
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