CONSULTAS

Para consultas, além da "Caixa de pesquisa" em cima à esquerda podem procurar em "Etiquetas", em baixo do lado direito, ou ver em PÁGINAS, mais abaixo ainda do lado direito, o "Mapa do Blogue"

Este blogue pode ser visto também em

16 de janeiro de 2012

352-O rio Corubal

    DESCENDO pelas montanhas do Fuja Djalom, na Guiné Francesa, o rio Corubal penetra na nossa província pela região fronteiriça de Cadé em percurso longo, ramificado e sinuoso, até à bifurcação com o canal que vem de Bafatá, e entra no Geba, outrora o famoso Rio Grande, onde chegaram no século xv as caravelas de Diogo Gomes e Cadamosto de que nos falam as crónicas das Descobertas.
  São numerosos os rápidos do rio Corubal. Cusse­linta e Saltinho, susceptíveis de aproveitamento hidráulico segundo algumas opiniões, são os mais importantes do nosso território. Foi neste último que se construiu, como solução provisória, a passa­gem submersível que permite durante alguns meses a ligação entre o Norte e Sul da província. Um pouco mais abaixo, onde o rio se estreita, está a construir-se com o grés como alicerce, a ponte Craveiro Lopes que beneficiará extraordinariamente a rede rodoviária da zona sul da província para permitir no futuro uma exploração compensadora das riquezas das circunscrições de Fulacunda e Catió. É de admi­tir também a sua provável utilidade para o turismo, logo que seja possível actuar a sério neste importante sector de propaganda e receita que representa uma grande preocupação de muitos países e regiões. 
  O topónimo Corubal, segundo concluiu o co­mandante Teixeira da Mota, o mais categorizado Investigador contemporâneo dos assuntos guineen­ses, é a deturpação de Colibá o qual, por sua vez, provém da região limítrofe de Coli. Outras fontes, porém, pretendem que a razão do nome se filia no facto de «corubal» ser corruptela de curbail, nome com que, nos recuados tempos, também se designava o âmbar.
Mas um autor antigo põe-nos a notícia transbor­dante de curiosidade de que o termo Corubal queria dizer «desavergonhado» numa tradicional expressão nativa. O rio galgava frequentemente o leito e o seu impetuoso caudal era useiro e vezeiro na destruição das culturas marginais. O arroz à beira do rio, o algodão, o café, o tabaco e outras culturas peque­nas de tipo experimental, na parte enxuta, por vezes alagável, quando o Corubal era irreverente, atre­vido... E daí, Corubal - o «desavergonhado»...


Decorria a época do extraordinário Caetano No­solini, esse homem que encheu numerosas páginas da história da Guiné na primeira metade do sé­culo XIX, quando era tudo e ainda pioneiro de feitorias e estabelecimentos agrícolas nas margens do rio caudaloso. Na época do discutido monopólio de Nicolau Macedo com o exclusivo de comércio e navegação no no. Na época em que se fazia, lá na foz, quando na baixa-mar, a colheita do âmbar, produto fossilizado das resinosas marginais que as águas do Corubal arrastaram para o acumular atra­vés dos séculos. Na época, ainda, das contínuas turbulências entre as tribos fulas, fulas-pretos, man­dingas e biafadas em permanentes escaramuças conhecidas por «Guerras do Forriá», um Forriá que no dizer dos Fulas significa «terra da liberdade» apesar de acontecer as sucessivas chacinas, os incên­dios das povoações, os roubos de gado e a captura dos vencidos, logo considerados escravos...
Uma época do Corubal remexido, dos pioneiros e dos belicosos Infali Sancó, Paté Coiada, Mamadú Paté e Bacar Guidali. Era um Corubal latejante de presença humana a ombrear com um outro período mais remoto que Francisco de Lemos Coelho nos descreveu em 1669: «Há no fim da terra de Guinalá hüa grande aldêa que chamaõ Curubale, que he como feira adonde vem mercadores de todas as partes a comprar, e vender, e nella se acha sempre o que se busca, vendesse nella principalmente muitos negros, e roupa, e tintas com que se tinge a roupa em Guiné de azul», acrescentando quinze anos depois: «he como feira de toda a terra; sendo que em todas estes reinos há feira franca de sete em sete dias... mas nessa de Curubale todos os dias de anno he feira».
A densidade populacional das regiões servidas pelo Corubal, especialmente o Forriá, é das mais baixas da província. A vida ausentou-se, cerraram-se os horizontes do comércio, da agricultura e da guerra. Desapareceram as grandes povoações onde chega­vam as caravanas para o comércio do sal, dos escra­vos, dos panos e da tinta azul. As enxadas dos pon­teiros cavando o solo humoso e alagável é uma recor­dação. O cruzar de espadas dos chefes belicosos não passa hoje dum tema histórico. O sossego é absoluto. Liberdade de expansão para a flora e fauna. Um retorno à Natureza.
Vem, daqui, o interesse turístico da região que se estende pelos vales do rio, pelas savanas, colinas e canais até à lagoa de Cufada e, mais ao sul, à mata de Cantanhez, reserva de caça. Não há hotéis, não há pousadas nem o quer que seja de artificial que proporcione comodidades ao turista. Mas pode-se lá chegar, sem odisseias, sem dificuldades, adoptando o campismo nas sedutoras margens dos rápidos de Cusselinta e Saltinho ou em viagem com retorno no mesmo dia para gozar os prazeres da pesca despor­tiva, as emoções fortes da caça ou as sensações ali­ciantes do naturalismo. No rio há variedade de peixes e os descomunais e pacíficos hipopótamos. Nos mangais a orlar o rio e no arvoredo próximo é numerosa a fauna aviária. Garças ribeirinhas, peli­canos, maçaricos e uma imensidade de passarada multicor. No mato aparecem a cabra selvagem, a gazela, o sim-sim, o javali, o porco-espinho, a onça, o búfalo e, por vezes, o portentoso elefante. São muitos os patos selvagens, as chocas (perdizes) e as galinhas do mato. Enfim um mundo diferente para os desportistas-metropolitanos que se decidam a visi­tar-nos e até para os que vivem na província que não tenham ainda contactado com o mato, com o verdadeiro mato, tão cioso a ocultar-nos o seu exo­tismo e uma vida animal que nos evita e receia.
O mato não é aquela fonte de arrepios ou o manancial de ilusões que nos impingem os livros e os filmes destinados a leitores ou a plateias que se deliciam com aventuras tipo Salgari ou Tarzan... Goza-se nele uma quietude que reconforta, um am­biente silente de oásis como entorpecente que não vicia e que é um refrigério. Os odores silvestres, a abundância do verde, a vida ao ar livre que nos liberta da rotina dos livros de ponto dos despeitos e das competições humanas. O andar perto da vida animal adivinhando existências que se ocultam e que fogem de nós. Os esquilos, os roedores, os répteis, as borboletas e a passarada polícroma. Todo um conjunto que nos arrasta a sentir interesse profundo pela Natureza. E, à noite, a musicalidade dos insec­tos, das aves nocturnas, os ouvidos cheios da orques­tra ininterrupta dos grilos, o ruído surdo das águas dos rápidos e o toque dos tambores nas povoações distantes… Estamos certos que Kipling gostaria de ter vindo ao Corubal...
O próprio fenómeno do macaréu que se regista na bifurcação do rio com o canal e o rio Geba é um aliciante motivo turístico. O fenómeno, semelhante ao «pro roca» dos brasileiros que se regista no Ama­zonas, tem constituído através dos tempos, desde que ali apareceram as caravelas de Diogo Gomes até à actualidade, forte motivo de curiosidade. Só por si, um espectáculo digno de presenciar-se. É uma en­chente a modos de blitz, uma onda avassaladora de águas em turbilhão e grande fragor. Já André Álva­res de Almada, o célebre capitão mercante do tempo do marfim, do ouro e dos escravos, a referenciou com esta saborosa descrição:
«Esta navegação é perigosa por causa da água do Macareo, que é encher este rio lá em cima com três mares somente. Estando a maré vazia, dando três mares, fica preia-mar de todo; e antes de virem estes mares se ouve roncar um grande espaço e mete medo às pessoas que nunca viram isto. E correm as embar­cações grande risco, mas já os pilotos delas sabem as conjunções, e as tomam de maneira que não pe­rigam. Algumas caravelas nossas de até sessenta moios, que algumas vezes lá vão, no passar, quando dá a água do Macareo, usam desta maneira. Têm algumas sonderiças e amarras ostadas umas nas outras, e estão prestes com elas, e o navio surto e a amarra na mão. Tanto que dão aqueles mares e vão largando e vão sobre elas aleiando muito depressa as amarras, e desta maneira passam sem perigo, por­que se estivessem com a amarra abitada não deixa­riam de sossobrarem e passarem trabalho.»


   Conhecemos o rápido de Cusselinta há uma de­zena de anos. Um caçador mandinga acompanhou­-nos como cicerone e pisteiro. Prometera-nos mostrar os hipopótamos. Depois dum banho refrescante na água límpida retida no grés (os crocodilos não estão ali…) o nosso pisteiro quis ir mostrar-nos os bichos, um pouco mais abaixo, onde o rio se estreita. Cami­nhámos marginando o mangaI. Aproveitámos todas as veredas para espreitar as águas quietas do rio. Impaciência, curiosidade... Chegámos a um ponto onde o capim ligado ao mangal estava batido como que assinalando a passagem de coisas descomunais. As pegadas, amplas e fundas, e o excremento fresco, ainda a fumegar, eram uma indicação. Entrámos no espesso do mangaI e subimos pelos troncos mais fortes a procurar o melhor ponto de vigia. O acesso era um tanto difícil. O nosso amigo caçador man­dinga, pisteiro famoso, puxou do seu fotan (apito feito dum pedaço de bambú) e rompeu um silvo cavo, fazendo modulação de sons. Apitou, apitou. E quando já estávamos impacientes, desiludidos, como que logrados, eis que surgem das águas, lá perto da outra margem, duas cabeças de hipopótamos, como proas de submarinos que vêm à superfície... A flauta encantada do nosso pisteiro confirmara a apregoada virtude de fazer aparecer os volumosos mamíferos.
    Empoleirados como símios, notámos que a cara­bina ficara presa pela bandoleira num tronco fora do alcance da mão. Imprevidência de inexperientes. Não convinha fazer-se ruído. Os bichos já nos tinham observado. E daí a fazerem a imersão foi um mo­mento (um momento em que ficámos estáticos...). Nem, ao menos, tivemos a desenvoltura de fazer uso da «Zeiss» que trazíamos dependurada no pescoço, aberta e focada, pronta a fazer o clic...
     Fracassámos no tiro, fracassámos na foto!
    Mas conservamos ainda hoje, a sensação indefinida desses momentos tão felizes, tão belos, vividos mais perto da Natureza.

Alexandre Barbosa
Guinéus - contos, narrativas, crónicas
3ª edição,
Livraria Progresso Editora, 
Lisboa, 
1968


1 comentário:

  1. Bravo camarigo Marques Lopes,há sempre qualquer coisa ainda desconhecida,da nossa estadia na Guiné,gostei muito deste texto. Obrigado e um abraço

    ResponderEliminar