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29 de janeiro de 2012

373-Planície conquistada

 Assim que rompeu o dia, alvor nado, a gente balanta desceu à planície. Os mais tardios a erguerem o corpo da esteira ou que demo­raram aconchegados ao brasedo, restos da fogueira acesa logo o galo cantou, seguiam o trilho fora na direcção da «laIa», onde outros, em reunião de ânimos, se aprestavam para iniciar a nova fase de aproveitamento da várzea. O rapariguedo, que também madrugou, sai da tabanca para a povoação comercial, ali perto. O sírio ia despachar as últimas toneladas de arroz que ficaram da farta campanha que passou, pois o «chaland» que viera no preamar da noite não devia demorar em levá-lo a Bissau, para o descasque, quando o rio entrasse em vasante. Não podia tardar a lufa, formigueiro humano em fila indiana, balaios à cabeça, cheinhos, varando a «laIa» em trote constante até à ponte de cibes, de onde o despejavam para o porão espaçoso.
Na planície já o «bindé» removia o solo que as primeiras chuvas encharcaram e tornaram fofo. Talhões divididos, postados em linha de ataque, os da lavra lançavam o arado com gana, sempre, sempre para diante. Um cantava. Melopeia enfadonha, entoação de compassos iguais, sempre a mesma música, excepto uma nota que se avivava quando da penetração do «bindé». Deixavam para trás a terra amarelada, revolvida em torrões disformes com a trama do raizedo e um ou outro fragmento arbustivo que a queimada, em cenário grandioso de labaredas e fumaça, deixou tostados na voragem com que galgou o imenso capinzal.
Agora cabia ao Sol esterilizar o raizame e aberta que estava a quadra pluviosa competia à chuva a saturação e dessalga das leivas em poisio, enquanto arrastava do mato a lixarada vegetal - o adubo para a futura e grande «bolanha». Corridos uns dois anos, na época própria, seria a lavra definitiva: valas abertas, camalhões levantados, pequenos ouriques com­postos, estes a servirem de passadiço e traçado a marcar propriedades. Era chegada a vez da transplantação da gramínea, criada em alfobres, tabuleiros verdejantes resguardados pelo arvoredo, obstáculo à ventania e ao Sol forte que cresta quando no auge. Então, em toda a interminável planura, havia de desenvolver-se o arrozal, vasto relvado a esconder a água estagnada que as purgas da barragem consentisse.
Continuava a bruma. O astro das quenturas fora eclipsado pelas nuvens enegrecidas de carga. Voltou a chover, num repente, e logo os da lavra pararam em quietude de espectativa, arados quietos, cabeças erguidas e atiradas para trás visando a atmosfera num diagnóstico meteorológico. Não tardaram em abalada para a tabanca, velozes como gazelas e em algazarra alegre de garotos em festa. Do lado do rio, nas nesgas de capim, a manada iniciou a retirada ante os toques brandos das vergastas dos miúdos, nus, apenas as «malilas» a rodear-lhes a cintura, pulsos e artelhos. Maçaricos e pernaltas que deambulavam nas margens lodosas do rio irromperam em fuga voando baixo, quase tocando a água, para os lados do tarrafe e onde o mar começa. E as garças que antes esvoaçavam de dorso para dorso dos bovinos em faina parasiticida, já tinham desaparecido a resguardar a plumagem branca e mimosa, enfiando para a outra banda do rio, mato aberto salpicado de palmeiras de cibe a destoarem das mambombas e outros arbustos rasteiros. A chuva não pára. Cresce o volume do rio que vasa em força mas já não invade a planície. O flanco da extensa barragem repele-a, rechaça-a, e a torrente caudalosa segue para o mar, talvez contrafeita...
Anos atrás, ainda quando a planície, na culminância das chuvas, tinha de consentir o jugo despótico das águas, renascia na região a antiga ideia da barragem; mas logo que o elemento intruso se escoava para as profundidades do solo e para o leito do rio, em vez de um impulso comum para levantar o dique tão necessário, de construção barata, passa­va-se o tempo a meditar, a meditar somente, até esquecer...
E, assim, de ano para ano.
Ao gentio bastava-lhe aquela fartura selvagem. Cheio o «fuul», reserva de grãos a garantir-lhe a subsistência, até à colheita seguinte, e feita a inversão do produto em moeda para satisfazer o pagamento das capitações anuais, adquirir umas jardas de tecido, uma manta, alfaias e qualquer bugiganga do seu agrado, e, ainda, amealhados uns tantos «pesos» para umas folhas de tabaco e uns goles de «cana» de quando em quando, nada mais o preocupava. É que contavam com outros recursos que fariam inveja noutros, camponeses como eles mas de outras latitudes, que empenham a vida à terra que, por pobre, esgotada, difícil, só cede ante a química e o vigor dos braços, remunerando-os avaramente. Recursos ali a dois passos, fáceis de colher e espontâneos. A «bolanha», quando alagada, criava barbos, bentanas, camarões para uma pescaria cómoda, o mato, propriedade de todos, punha à disposição uma variedade de frutos silvestres, troncaria, mezinhos... ; a «lala» era um manancial de lama e capim, materiais com que edificavam as suas palhotas; e o mar também concorria com mariscos e sal, toalha de cristal que ficava assente lá no começo da «laIa» a quando das marés mortas. Mas a volúpia pelo álcool, o vício do tabaco e o desejo de posse de qualquer novidade que o comércio lhes punha diante dos olhos, levava-os a desfalcar a reserva de cereal e lá ia o cabaço, uma, duas, infinidades de vezes, encher-se no «fuul», até que roçava no fundo do enorme pote, sacrificando a reserva. Recorriam aos empréstimos nunca negados, umas vezes dinheiro, outras o próprio produto que venderam antes, e ainda a gramínea não estava transplantada na «bolanha» já parte - grande parte - da futura colheita estava comprometida, endividada.
Uma das partes interessadas na barragem - o comércio - assober­bada com o fecho-de-contas da campanha finda e já com os preliminares da seguinte, se não se esquecia, parecia. A outra parte - o indígena - fechava-se numa apertada compreensão do restrito e não dava um passo para melhorar hábitos e nível de vida, trabalhando o indispensável para uma safra à escassa - flagrante herança dos seus avoengos, os primeiros de uma mística pagã de obediência cega a «irãs» e «totens», espantalhos habilmente animados pela «sigué» e pelo feiticeiro da tribo impingindo-os como omnipotentes. Antídoto, a dificultar a acção do civilizado, do cristão!
A sede da Circunscrição chegara o novo administrador. Novato, mas com aura de sabedor e dinâmico, de porte desportivo, de modos simples e cativantes, quando ali foi em visita de reconhecimento da região apro­veitou para, em contactos directos, auscultar opiniões quanto a possibili­dades actuais e das possíveis no futuro. Ali mesmo, em campo raso, sem qualquer aparato, depois de especificar necessidades com convencimento da verdade, numa linguagem simples mas concisa, calou-se para ouvir outros, convidados a depor: representantes do comércio, chefes de tabanca, «cabeças» de morança. Por fim, até um «blufo», cspigadotc, tufos de cabelo retorcidos e a penderem para a testa, também proclamou o seu entusiasmo pelo momento.
Quando a carrinha abalou já ficara selado um entendimento, uma decisão, aceite por todos num aplauso sem artifícios. Fora um verdadeiro empurrão que, sem magoar, sobrecarregando todos por igual, levava a um fim: o Progresso da região. Escoradas na perspectiva de óptimas cam­panhas, melhor compensação ao capital e à dura vida do mato, os comer­ciantes aceitaram de bom grado o seu quinhão de responsabilidades: custear a alimentação dos trabalhadores indígenas enquanto durassem os trabalhos para a conquista da planície e o empréstimo da semente na altura adequada, mas dessa vez em cedência de «bushel» por «bushel». O indígcna dava a mão-de-obra. Cada morança forneceria um trabalhador. De Catió, lá da administração, vinham as alfaias necessárias, gasolina, o camião para transporte de cascalho e de cibes e ainda dois cipaios, um transferido há pouco de Mansoa e com prática dessas coisas de barra­gens e o outro, o fula Bacar, caçador de fama, a quem competia abater no mato e nas «lalas» os antílopes para a «màfé» de todos os dias. E quando ali fosse a carrinha com um administrativo seguir o andamento dos trabalhos, não deixaria de levar um braçado de folhas de tabaco, presente a sair da verba orçada anualmente para premiar indígenas que se distinguissem.
Os balantas ganharam entusiasmo, interesse e a obra começou.
O camião agrupou montanhas de cascalho e grandes pilhas de toros de cibe destinados ao esqueleto da plataforma, enterrados a formarem cruzes sucessivas, desencontradas, a lembrar obstáculo antitanque. Ergueram-se medas de capim. A lama bastava agachar os corpos e enterrar as mãos... Feita a argamassa da lama, capim e cascalho era só atirá-Ia a cobrir O esqueleto, e o imponente paredão ia surgindo. E em três meses, apenas, aquela estrutura majestosa para o meio, já dava ares de desafio a qualquer enxurrada de intuitos invasores. Assim, contidas as águas, ia a planície selvagem e estéril tornar-se em vasta área de cultivo, terreno de sobra para os da região e ainda para outros mais, muitos que fossem, migrados de outros lados onde os terrenos baixos esfalfaram da lavoura conse­cutiva. Desse-se o êxodo, a região poderia sobrelevar-se e disputar a fama de melhor centro produtor a Cabo-Chanque, Cantone, Jabadá...
Com a obra em meio surgiu um acontecimento que os balantas inter­pretaram como dádiva do «irã» - ainda os vestígios dos avoengos -, relegando o protagonista do facto a mero instrumento do fetiche. Manhã cedinho, um dos manjacos que furava nos palmares perto da estrada larga que segue a Catió, chegou à tabanca com os cabaços de seiva fresca e a novidade: um casal de hipopótamos, com filhote, pastava na «lala», um bom bocado além da curva do rio. Bacar, o cipaio investido da função venatória, ainda na palhota do chefe de tabanca, sonolento, conseguiu entender o murmúrio e, num ápice, apareceu com a farda ainda por abotoar e a velha «Kropastschek» segura pelo cano, sobre o ombro, como cajado de cabreiro. Logo o rodeou aquela gente em alvoroço e de apetites aguçados para o possível festim. Em momentos o camião arrancou a ganhar a estrada e lá no cruzamento o cipaio desceu, deu instruções, e vai que fura no atalho que serpeia pelo mato espesso, manjaco atrás. Os que vieram da tabanca como possíveis carregadores teriam de aguardar um sinal do pisteiro, mãos em concha encostadas à boca para sonorização do grito. Penetraram na floresta. Curva ali, descida acolá, tufos de ramagem a vedar a passagem, grossas carcassas de troncos caídos ao través, vítimas da «baga-baga», tudo a camuflar o trilho e a dificultar o trânsito aos intrusos da selva. Mas o manjaco, o pisteiro, conhecia bem o piso, não andasse ele por ali um ror de vezes para se encarra­pitar na palmeira colhendo «chabéu» e extraindo vinho de palma. Adiante, nos troncos baixos, uma cáfila de macacos-cães rompeu em fragorosa rastolhada e a latir desalmadamente. O caçador continua, indiferente, mas olha-os de soslaio por entre a vegetação, contrariado, praguejando em pensamento contra os símios antipáticos e de nádegas repelentes. Bem podiam lançar o alarme aos paquidermes vistos no côn­cavo da «lala». Prestes a sair do mato, parou, repentinamente. Lança a mão livre para trás, espalmada, a indicar ao pisteiro a paragem e silêncio. Pela brecha de um tufo de arbustos lobrigou dois vultos enormes, escuros, imóveis, enquanto o filhote rebolava no charco, brincalhão e inconsciente do perigo que chegava. Bacar agacha-se e penetra na «lala» por onde  o capim era ralo, devagar, cauteloso, evitando o quebrar da palha seca e da folhagem morta atirada do mato pelo vento. Os bicharocos mos­tram-se desconfiados e giram as cabeças descomunais para o lado do inimigo. Mais uns passos, de cócoras, e a «Kropastscheb entra a detonar uma descarga e logo outra. O mais corpulento, decerto o macho, cam­baleia até afocinhar. Soa terceira descarga e o brutamontes cai para o lado, a bufar, enquanto a fêmea e os traquinas, à ilharga, se escapam em corrida precipitada, grunhindo, tomados de terror, desaparecendo sob as águas do rio. O atirador ergue-se, mostra-se, avança uns passos e, pelo seguro, visa o cérebro do animal quase à queima-roupa com um tiro escusado. Só mais um solavanco - o derradeiro - e o sangue escorre em borbotões do orifício aberto pelo projéctil. O pisteiro não tarda a despedir o sinal, som de caverna, em aviso de êxito. Os balantas, atentos às descargas, haviam de precipitar-se pelo atalho, de terçados em punho e em alarido entusiástico. Já ali, as lâminas começaram a rasgar o couro duríssimo, a separar o manto de gordura e volumosos nacos de carne. A cabeça, qual enorme cepo, seria enterrada na lama os dias bastantes para que os vermes limpassem a caveira - mais um troféu de Bacar.
O resto, vísceras, sangueira e migalhas de carne a envolver os ossos, seriam o quinhão de abutres e hienas.
Chegados à tabanca entre a apoteose do gentio, o chefe, velhote simpático de barbicha branca, destaca-se e atira os braços descarnados aos ombros do cipaio num abraço mal desenhado, agradecendo e felici­tando em nome de todos. Os dois europeus do centro comercial impelidos pela curiosidade de ver o monstro, também lá estavam e não se foram sem arrematar o couro e as presas, moeda para dois garrafões de aguar­dente de cana, tão a propósito para a bacanal em perspectiva.
Nesse dia houve interrupção nos trabalhos da barragem. A impa­ciência dominaria os trabalhadores e, por força, o rendimento teria de ser, senão nulo, quase. O caso merecia ser assinalado com uma folga, aproveitada nos preparativos da orgia. Quando a noite caiu, na sua queda brusca própria dos trópicos, já a tocha de capim ateara fogo à ramagem seca numa fogueira de grandes proporções, ali no meio do terreiro, entre as lojas comerciais. Em redor da coleira, no chão, sobre tapete de palmas de bananeira, quantidade de carne assada em churrasco, à tarde, nos bra­sedos da tabanca. Na varanda térrea de uma das lojas os três comer­ciantes estirados nas cadeiras de lona, e perto, os cipaios sentados em bancos de pau de tagarra. As tabancas fizeram-se representar em globo e não faltaram os manjacos furadores de vinho de palma, colegas do pisteiro. Homens-grandes, os balantas mais idosos, reuniram-se aparte, em frisa, sentados no chão, c os «blufos» e raparigas - a mocidade balanta - vestiram os panos mais vistosos c adornaram-se de pulseiras e colares de contaria, anilhas de latão c braceletes de alumínio. Depois, pela noite fora, o «tamboril» e o «bombolom» rufaram ininterruptamente em orquestra ruidosa, marcando ritmos, guiando coros. Os comerciantes recolheram pelo meio-de-festa, fartos do espectáculo, sujos pela poeira em suspensão, nauseados pelo cheiro da carne esturrada. A bacanal, con­tudo, continuou até ao canto do primeiro galo, já quando da fogueira restava apenas um montão de cinza. Dispersaram então, um a um, os enfartados e exaustos, e os ébrios, a cambalearem...
Refeitas as energias com mais um dia de folga, o tempo perdido foi recuperado trabalhando-se com mais ardor. Mas sempre esperançados em nova proeza de Bacar.
E tudo aquilo por causa de um hipopótamo!...
Desapareceram as nuvens negras de carregadas. Não chovia desde há horas. E de novo os balantas desceram à planície. O «chaland» ia rio abaixo, lentamente, vela murcha a pedir lufada de vento. O rapari­guedo regressava às moranças depois de receber a jorna estipulada pelo sírio. Perto da horta dos civilizados, à sombra da calabaceira, os que antes encheram os balaios de arroz no armazém, saboreavam uma litrada de «cana» com que o sírio os presenteou a modos de suplemento. E a medida negra de ferrugem passava de boca para boca em andança de alcatruz, gole a um, gole a outro, de maneira a chegar para todos. O dia pôs-se lindo, de uma luminosidade que fere a vista e que aquece demasiadamente; e a manada que também voltara ao pasto lá nas nesgas de capim à beira do rio, regressava de novo, desta vez para gozar a sombra na mala dos bissilões.
Alexandre A.  M. Barbosa






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