ROSA NEGRA
Rosa,
Chamam-te Rosa, minha preta formosa
E na tua negrura
Teus dentes se mostram sorrindo.
Teu corpo baloiça, caminhas dançando,
Minha preta formosa, lasciva e ridente
Vais cheia de vida, vais cheia de esperanças
Em teu corpo correndo a seiva da vida
Tuas carnes gritando
E teus lábios sorrindo...
Mas temo tua sorte na vida que vives,
Na vida que temos...
Amanhã terás filhos, minha preta formosa
E varizes nas pernas e dores no corpo;
Minha preta formosa já não serás Rosa,
Serás uma negra sem vida e sofrente
Ser’as uma negra
E eu temo a tua sorte!
Minha preta formosa não temo a tua sorte,
Que a vida que vives não tarda findar...
Minha preta formosa, amanhã terás filhos
Mas também amanhã...
... amanhã terás vida!
Amílcar Cabral
Para falar de Amílcar Cabral, os espaços (os caracteres!) vão sendo cada vez mais escassos. Pela sua dimensão humana, pela relevância das suas ideias-chave, pelo exemplo de revolucionário, de marxista [...].
Num programa gravado da Antena 2 no dia 5 de Fevereiro de 1999 (http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Tc1350):........
Para falar de Amílcar Cabral, os espaços (os caracteres!) vão sendo cada vez mais escassos. Pela sua dimensão humana, pela relevância das suas ideias-chave, pelo exemplo de revolucionário, de marxista [...].
O homem
Os
vários sentidos do contributo de Amílcar Cabral escoram-se na sua quase
desconcertante simplicidade (1), que coexiste com a enorme
complexidade dos temas sobre que reflectiu e das tarefas que assumiu por
decisão pessoal e pela dinâmica colectiva em que se inseriu.
Não
encontro melhor adjectivo que humanista para essa postura. Essa dimensão humana
ganha toda a expressão quando o dirigente da luta da libertação de dois povos –
de Cabo Verde e da Guiné-Bissau – do jugo colonial português, revela também
sentir como seu o povo português.
A
simples (!) destrinça entre o regime fascista e colonialista de Portugal, contra
quem dirigia a luta, e o povo português que (também) o sofria, é um dos
aspectos mais marcantes da sua personalidade. É uma atitude que merece o apodo
de corajosa pois se faz parte da preparação para a (e da ideologia da) guerra
desumanizar o inimigo, se é fácil suscitar ódios, em contrapartida, mostra uma
enorme (e magoada) lucidez ver – e não o esconder! –, no aparente e próximo
inimigo, a vítima do mesmo poder contra que se trava uma luta de vida ou
morte (2).
E,
sobre o homem, não se pode ainda esquecer, por mais sucinta que seja a
anotação, a referência ao técnico, ao engenheiro agrónomo que, com grande
exigência de rigor científico, fez a sua formação na universidade, em Lisboa,
estudou a erosão dos solos no Alentejo e a morte súbita do cafeeiro em Angola,
fez o recenseamento agrícola da Guiné-Bissau.
Ideias-chave
Pelo
enunciado de ideias-chave, resume-se, telegraficamente mas procurando não se
ser redutor, o mais significativo do pensamento de Amílcar Cabral.
Das
referências ao homem, ao técnico e ao revolucionário, decorre a importância da
ligação entre teoria e prática. O volume I das Obras escolhidas de Amílcar
Cabral (3) tem o título A
arma da teoria – unidade e luta e o II A
prática revolucionária – unidade e luta II, e é feliz e esclarecedora a escolha desses títulos
pois traduz a procura constante em fazer da teoria, do estudo, da reflexão, a
arma para a prática revolucionária.
Outra
ideia-chave é a unidade. Não só a unidade dialéctica – a arma da teoria
indispensável para a prática revolucionária e esta indispensável para aquela –
mas também a inovadora unidade na luta e orgânica entre os povos de Cabo Verde
e da Guiné Bissau, conduzida por um único partido – o PAIGC – Partido Africano
para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde – para se conquistar a
independência de dois países, levando à criação de dois Estados em espaços
nacionais autónomos, com o mesmo partido saído da luta a manter a unidade entre
diferentes... aliás porque apenas entre diferentes pode haver unidade. E a
ideia da unidade “dos povos de Cabo Verde e Guiné-Bissau”, com base em reforço
de complementaridades, inseria-se numa ideia mais larga da unidade africana –
PAI... – e da unidade da luta de libertação dos povos do colonialismo e,
também, da exploração capitalista.
A
estas ideias-chave, junta-se uma outra, só aparentemente menor: a da relevância
do factor cultural. Na chamada “Declaração
da Praia” (4) pode
ler-se: “Na linha do pensamento de
Cabral, (...) quanto menos as bases materiais forem adequadas às relações
sociais a serem criadas, mais devem ser tomados em consideração os elementos
culturais nos processos de transição (...) cada povo deve poder dar a sua
contribuição própria ao património mundial, graças a uma produção cultural
original e dinâmica, verdadeiramente popular e livre de se exprimir
criativamente (e) se o particular se chama cultura e responde deste modo às
exigências da vida quotidiana e da identidade de cada povo, a solidariedade
internacional é também uma exigência do pensamento e da acção”.
A
relevância do factor cultural não apaga nem diminui a abordagem dialéctica e a
perspectiva materialista histórica, de onde a ideia-chave da importância
decisiva da libertação das forças produtivas, espartilhadas pelas relações
sociais de produção coloniais e neo-coloniais. Para Cabral, a libertação das
forças produtivas nos países sob o jugo colonial era determinante para a
verdadeira independência dos povos.
Outra
ideia-chave, esta merecedora de referência particular pelo modo como provocou e
“encantou” quem, na década de 60 e começos da de 70, “pensou a revolução”, é a
do suicídio da pequena burguesia. Na impossibilidade de mais fazer que resumir
o essencial, cito o próprio Amílcar Cabral quando escreveu que “esta alternativa – trair a revolução ou
suicidar-se como classe – constitui o dilema da pequena burguesia no quadro
geral da luta de libertação nacional”, no pressuposto, na sua análise numa
perspectiva de luta de classes, da inexistência de uma classe revolucionária
que pudesse, nesses locais, conduzir a luta.
Não
quereria isto dizer que o PAIGC fosse um partido de pequeno-burgueses mas que
os seus dirigentes, na consciência da luta política que travavam, incluíam a de
que contra si, como parte de uma classe, lutavam e que, por isso, a sua opção
de revolucionários serem semelhava um suicídio (como classe!).
Porquê o assassinato?
O
PAIGC levou, com a declaração da independência da Guiné-Bissau a 24 de Setembro
de 1973, a sua tarefa até ao fim de uma etapa. Impedi-lo teria sido uma das
razões do assassinato de Amílcar Cabral que, num relatório já de Janeiro de
1973, escrevia que “a nossa situação é a
de um Estado independente de que uma parte do território nacional, nomeadamente
os centros urbanos, está ocupada por uma potência estrangeira” e definia
como se iria proclamar a independência.
Mas
se o seu assassinato não impediu essa machadada no colonialismo português, já
terá sido determinante para o agravar das dificuldades, e depois abrupto
rompimento, na concretização do projecto de unidade Cabo Verde-Guiné-Bissau (Uma luta, um partido, dois países,
título do recentíssimo livro de Aristides Pereira), que concitava alguma
animosidade – e bem mais do que isso... – por parte de alguns dos que, sem o
desaparecimento de Cabral, não teriam força para o combater. Além de que a
capacidade de Amílcar Cabral, com o seu rigor e exigência do ponto de vista
técnico-científico, seria determinante no equacionar e na resolução de
dificuldades de projecto tão inovador e ambicioso.
Mas
a História (e a política) não é o que poderia ter sido, é... o que é depois do
que foi!
Era Cabral marxista?
O
simpósio internacional, organizado pelo PAICV na capital de Cabo Verde em
Janeiro de 1983, para assinalar o 10º aniversário do assassinato de Amílcar
Cabral e consagrado à sua obra e pensamento, juntou um grande número de
participantes (5) de várias origens,
nacionais, continentais e ideológicas, que, a partir da obra e do pensamento de
Cabral, reflectiram o Mundo, a sua mudança e como a fazer. Do simpósio, suas
comunicações e documentos, editou-se o volume de 705 páginas já citado. Refiro
esta publicação porque nela se encontra um repositório de contributos, alguns
de grande importância a todos os títulos, e ainda porque nela se aborda uma outra
questão que, por vezes, surge quando se fala de Amílcar Cabral: era ele
marxista? Aproveito dois trechos, meros aperitivos para aprofundada
fundamentação da resposta que, a meu ver, só pode ser afirmativa. [leiam a demonstração disso em http://coisasdaguine.blogspot.com/2012/01/359partir-da-realidade-da-nossa-terra.html?spref=fb]
Um,
de Imre Marton, universitário húngaro, afirma que Amílcar Cabral faz parte da “reprodução alargada do pensamento marxista
(que) é, em suma, o devir histórico da identidade do pensamento marxista”,
e acrescenta “como toda a identidade, ela
é confrontada com as mudanças que se operam no tempo e com as especificidades
que encontra no curso da sua extensão no espaço (...) A grandeza de Cabral foi
a de ter sabido detectar e responder às exigências de correntes do devir
histórico da identidade do pensamento marxista. Se ele encontrou respostas
adequadas aos imperativos da luta de libertação nacional a partir de uma
situação singular, a da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, foi porque ele localizou
o mundial e mundializou o local.”(6)
O
outro trecho é da Declaração final do simpósio:
“A época das lutas ainda de modo nenhum
terminou (...) Trata-se muito claramente da gigantesca luta de classes, que
entrou numa fase nova da sua dimensão mundial. Uma burguesia sem fronteiras
conseguiu dotar-se de bases técnicas e jurídicas para a sua dominação (...)
Essas lutas não se revestem de um carácter linear. Elas são atingidas por
contradições muitas vezes dolorosas, devidas a factores internos de classes ou
culturas, bem como a factores externos de dominação económica e política e, às
vezes, mesmo militar. Amílcar Cabral, que foi um dos autores do despertar das
consciências populares, e dos dirigentes das lutas de libertação, também deu um
impulso novo à reflexão teórica. É missão dos intelectuais prosseguir essa
tarefa de um pensamento ligado à prática e de práticas fecundadas pelo
pensamento.”
Notas
(1) Para cuja
caracterização o que Manuel Alegre conta em Continuar Cabral,
Grafedito/Prelo-Estampa, 1984 dispensa grandes exposições: “...de repente ele
virou-se para mim e disse: ‘Sabes o que me apetecia? Apetecia-me ser ponta
esquerda do Benfica ou chefe de orquestra do Morro’”.
(2) Num livro de
Miguel Urbano Rodrigues, O tempo e o espaço em que vivi - 1, Campo das Letras,
2002, há páginas dedicadas a encontros com Amílcar Cabral em que tal se
reflecte de forma impressiva: “Emocionou-me ouvi-lo, numa antevisão do futuro
próximo, lamentar um absurdo. (...) Antes de disparado o primeiro tiro já lhe
doía a inevitabilidade da guerra. Sofria pela juventude que iria morrer nos
campos de batalha. A sua gente teria de morrer para que a História avançasse; os
portugueses, esses seriam triturados pela máquina do colonialismo, como carne
para canhão de uma causa condenada. ‘É terrível, angustiante, sabermos que isso
vai acontecer’ – não esqueço as suas palavras – ‘e não podermos deter a máquina
da morte, accionada pela irracionalidade do colonialismo mais retrógrado de
todos os colonialismos’”.
(4) Declaração
final, aprovada pelos participantes no Simpósio Internacional Amílcar Cabral a
20 de Janeiro de 1983, em Continuar Cabral.
Almada Duarte e dezenas de quadros.
Convidados estrangeiros: Leopold
Senghor, Lúcio Lara, Alda Espírito Santo, O. Martichine, Basil Davidson, Ario
L. de Azevedo, Jean Suret-Canale, R. Chilcote, J. Medeiros Ferreira,
Nzongola-Ntalaja, Manuel Alegre, François Houtart e G. Lemercinier, M.
Glisenti, Mário de Andrade, Luis Moita, Bernard Magubane, Sérgio Ribeiro, M.
Diawara, Babacar Sine, Solodovnikov, Yves Benoit, I. Wallerstein, P.
Pierson-Mathy, L. Luzzato, Imre Marton, S. Bosgra, Jean Ziegler, Sylvia Hill,
K. Roth, Álvaro Mateus, Pascoal Mocumbi, T. Ngakoutou, E. Apronti, O.
Dzuverovic, Kim San Koun, A. I. Sow, N. Kamati, D. Cindi, Jorge Manfugas, G.
Chaliand, S. Malley (ordem apresentada pelos organizadores de acordo com as
comunicações e distribuição por temas).
(6) “L’apport
d’Amilcar Cabral à une universalisation concrète de la pensée revolutionnaire,
marxiste”.
«O Militante» - N.º 262 Janeiro/Fevereiro de 2003 (http://pcp.pt/publica/militant/262/p35.htm)
Num programa gravado da Antena 2 no dia 5 de Fevereiro de 1999 (http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=Tc1350):........
Fernando Rosas - Acha que a morte do Amílcar Cabral prejudicou a política do
Spínola para a Guiné?
Carlos Fabião - Se fosse do Spínola para a Guiné! Foi a toda a África, na
minha opinião. Foi a toda a África. Era um homem, por exemplo, o Amílcar Cabral
era um homem extraordinariamente culto, extraordinariamente capaz de levar as
pessoas, de influenciar. Dizia-me o Zé Araújo, já falecido, que o único homem
que o Agostinho Neto, era teimoso que se fartava, e o único homem que ele ouvia
e aceitava era o Amílcar Cabral. Ao nível de África também o Amílcar Cabral era
um indivíduo ouvido, era um líder africano. [Fernando Rosas - Uma referência,
claro.] Tinha grandes ligações a nós e todo o
seu discurso foi sempre um discurso de entendimento connosco e nunca de ataque
a nós. Ele tem aquela frase que aliás os tipos do PAIGC me disseram que ele
durante a guerra disse, durante a guerra terá dito, contou-me também o Zé
Araújo e outros, terá dito, Vocês hão-de ver que quando vier a paz os
portugueses são os únicos indivíduos com quem a gente se vai entender. É claro
ele tem muita ligação a Portugal, não é verdade. Ele estava casado com uma
portuguesa. Estudou em Lisboa. [Fernando Rosas - Fez os estudos cá,
etc.] Está ligado aos outros indivíduos e
movimentos pela Casa dos Estudantes do Império na altura.
...
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