Dia após dia, hora após hora, Madja Bagi esperou paciente por
este momento.
Nas noites insones, olhos furando a treva densa que escorre pelos prumos da
palhota e inunda o colmo sonoro. Madja Bagi construiu
o plano, estudou-o nos mínimos pormenores. Nas manhãs de sol,
curvado sobre a «bolanha» faiscante, mãos crispadas no arado com que
revolve o lamaçal fecundo, meditou no seu sonho e refreou ai sua ansiedade.
E
agora, bem neste momento, sente que a hora chegou. Ali está, silencioso e quedo, beneficiando da sombra espessa que o cajueiro
derrama. No céu nublado, sem estrela nem palor, correm nuvens em furioso
galope. Longe, para os lados da «lala», qualquer ave noctívaga ensaiou um canto
soturno. E, logo após, o silêncio tombou de novo, pesado e húmido. Um silêncio
feito de mil diferentes rumores, imprecisos e vagos.
Na expectativa do «tornado» que não tardará em vir, o matagal acobardou-se.
Dir-se-ia que a morte campeia e esmaga tudo sob o seu passo gélido. Os
altivos poilões amodorraram c guardam a mudez grave dos grandes momentos. Da
tabanca, que se adivinha além entre bananeiras estéreis, não vem sinal de vida.
Por
momentos, em fugaz visão que logo se esvai no denso negrume que tudo submerge,
Madja Bagi vê a recepção calorosa de que será alvo. Então, Xaála Bari não desatará
aqueles olhares frios que o envenenam. Ensaiará talvez - quem poderá sabê-lo! -
um sorriso doce, um daqueles sorrisos que só Xaála
possui.
Por
isso, só por isso, vale a pena esperar, paciente, o instante que lhe pareceu
longínquo. Talvez até esta noite tempestuosa e negra fosse enviada
pelos deuses, premiando a sua refreada ansiedade, dando razão à sua sede de
grandeza e amor.
Amanhã,
quando na tabanca constar o seu feito audaz e másculo, olhares de inveja e
respeito cairão sobre o seu corpo possante. É impossivel
que Xaála não acompanhasse esse louvor unânime. E
então na próxima lua, com a «bolanha» ondulante e verde, grávida de espigas,
unirão os seus corpos e as suas vidas. Ele não será jamais o trabalhador
isolado, o motor de dois braços que revolvem terras alheias. Terá uma «morança» sua, bem sua, e
outros braços virão emparelhar com os seus rasgando sulcos em lamas fecundas
que darão espigas.
Venderá
o arroz ao sírio baixote e untuoso que tem uma loja infecta ao fundo da vila ou
esperará o «branco» imundo e mal-humorado que passa naquela camioneta que
parece desmantelar-se a cada solavanco?
Agora,
bem neste momento que finalmente chegou, apenas o seu plano, há tanto urdido,
tem forma. O mais, tudo o mais, são rápidas visões, miragens que se sucedem e
se esvaiem por entre o negrume opaco.
Longe,
muito longe, há um rumor estranho, soturno, como que um tombar de cachoeira em
ravina abrupta. Ou como se, por infindável e metálica ponte, rolasse um comboio impossível.
Madja Bagi sabe que o «tornado» se aproxima vertiginosamente. Ouve-se-lhe o
tropel profundo e surdo, como batuque furioso e longínquo; pressente-o na
quietude fictícia do matagal sonoro; calcula o seu caminhar galopante pelo
rumor crescente da folhagem sacudida - e espera.
Madja
Bagi tem os costureiros retesados e, com a mão crispada, aperta o punho do
terçado.
De
súbito, um estrondo caiu do alto, brotou das copas desgalhadas, subiu do solo
ressequido e poeirento, ocupou tudo num ribombar que ensurdecia. O cajueiro
gemeu, varrendo o chão com as ramas desgrenhadas. Como se, qual arco
impossível, disparasse folhas para o alvo que ficaria algures, para lá do
negrume pesado e ruidoso.
Logo após, a chuva tombou em catadupas, morna e compacta. Na tabanca, sob a
ventania raivosa, as bananeiras entrechocavam as folhas enormes, num ruído
sincopado e agreste como gargalhadas dementes.
Madja Bagi correu por entre o capim
ensopado. De salto, ilencioso e elástico como felino, transpôs a
palissada e quedou atento.
O «tornado» abafava tudo. A chuva cantava como arroz velho caindo nas
esteiras. Do matagal, vinham os gemidos de dor das árvores contorcionistas.
Encharcado e transido, Madja Bagi enrijou os músculos, acocorou-se e
ergueu-se repetidas vezes. A cada flexão, progredia no
terreno lamacento e frio. Com um salto maior, de lado, alcançou as bananeiras e
ficou-se agachado, junto aos caules, recebendo as bofetadas rudes das ramas
rasgadas.
Lentamente, o seu corpo alongou-se até as mãos ratearem os prumos do «congó».
E agora, com o tronco bem colado ao chão pegajoso, todo ele se concentra no
ouvido subtil, numa crispação nervosa. Nada. Nenhum rumor furava o colmo.
Dir-se-ia que toda a tabanca havia desertado em face da tormenta que imperava
ainda, ao perto e ao longe, atirando seus urros para o cabo do mundo.
Então, seus dedos longos e nodosos, habilmente, febrilmente, cavaram em
torno da base do primeiro pilar. Dois golpes rudes, oscilantes, alargaram o
covato. Água lodosa esguichou em volta. Nada mais.
Depois um outro, e outro ainda, sofreram os mesmos empuchões violentos.
Lama líquida saltava e ia diluir-se na enxurrada que rumorejava.
Madja Bagi içou-os, um a um, até desenterrá-los e, com mil cuidados,
deitou-os na valeta.
Algo de insólito rangeu ali, mesmo ali, brotando da boca
daquele buraco negro, agora aberto.
Acocorado, músculos contraídos na eminência do salto, terçado firme na mão
possante, Madja Bagi esperou. Os olhos, furando a treva, tinham uma fixidez
dolorosa.
Cansado da espera, impaciente e audaz, aventurou um braço. Depois de
chofre, todo o seu corpo hercúleo e brônzeo, penetrou no «congó».
Presa a uma estaca cravada, aquela vaca malhada e linda que todos
cobiçavam, parecia esperar. O rnancanha, cioso do seu haver, dormia junto da
estaca.
Incrivelmente hábil e silencioso, Madja Bagi desatou os nós da espia, as
mãos rasando o rosto do mancanha - e tanto, que a expiração lhas aquecia agradavelmente.
O resto foi simples. E rápido. Patas cobertas, afagos, sábios toques,
trouxeram para o matagal o bicho desejado. Rápido. E simples.
O «tornado» passava. Do céu luminoso e translúcido, caía uma quietude
pânica. Aqui
e além, asas raspavam o silêncio.
Pelo trilho subtil, Madja Bagi guiou o animal, forçando a
marcha mais e mais - que a impaciência é forte e o perigo muito.
O sol, quando espreitou por entre os troncos dos poilões, encontrou-o
longe, muito longe já, em plena estrada, cantarolando. E quando a treva de novo
tombou sobre os homens e as coisas, Madja Bagi marchava ainda, infatigável e
feliz.
Uma magnífica ansiedade ocupa, no seu espírito, o lugar da histérica
ansiedade que o dominou. Agora, Madja Bagi não pensa nem sonha - canta.
Todas as suas esperanças, todo o seu orgulho, todo o seu violento
bem-querer, saltam-lhe aos lábios e desfazem-se em melodias bárbaras, guturais,
ruidosas como seixos rolando.
Um outro sol, olhando a pique, avistou-o recolhido, num matagal espesso,
comendo. Bem presa, a vaca malhada, exuberante de carnes, ruminava
tranquilamente. Mas o «tornado» que vergastou as terras, ao tombar da noite,
surpreende-o num atalho que mal se adivinhava no emaranhado do capim viçoso e
sussurrante.
Madja Bagi não sente o ardor das soalheiras impiedosas nem vacila sob o
ímpeto selvagem das tormentas. Segue embalado por um sonho grande. Tão grande
que todo o mundo parece concentrar-se em si, à sua volta. Tudo o mais são coisas indefinidas, sem sentido nem forma, uma
imensa e profunda inutilidade.
Tocando o animal dócil e paciente, Madja Bagi apenas sai do seu súbito
egoísmo para recordar Xaála Bari. Recordar os seus olhos c o seu sorriso. O seu corpo moldado e
brilhante. Toda ela. Ou para, confiante e feliz, idealizar a união dos seus
corpos e dos seus destinos.
... Nas próximas chuvas, caminhando na lama fecunda, colhendo os caules
pejados de espigas... O filho macho que nascerá... Um mundo.
De quando em quando, uns assomos de meiguice piegas
levam-no a afagar a vaca robusta, luzidia e valiosa como «bajuda» intacta.
Outro sol e outro negrume encontraram ainda Madja Bagi em pleno matagal.
Só na manhã seguinte, para lá daquela mancha escura que as mangueiras
derramam pelo céu, avistou os cocurutos das palhotas. Um rumor familiar e vago,
veio, envolto na brisa, esperá-lo na «lala». O animal, cansado e estranho,
espetou as orelhas e mugiu baixo, numa interrogação.
A longos haustos, Madja Bagi bebia aquele ar lavado e
sonoro que o acariciava.
De súbito estacou. Os tambores haviam rasgado a manhã e batiam, sincopados,
cadências festivas.
Que seria?
Duas palmadas rijas deram pressa ao animal e ele alargou o passo, folgando
a amarra.
O ar andava envolto em gritos hilares, gargalhadas estridentes; sons
desordenados de tambores repetidos.
Às primeiras palhotas, parou. Ninguém. De quando
em quando, gente corria, num desaforo, sem o ver.
Sem o ver ...
E agora, bem no centro do largo, junto ao poilão magestoso e secular, sente
que tudo foi inútil. Uma dor funda, aguda e cáustica, raspa-lhe o peito. Tem a noção que os tambores estão longe, longe, lá
para as bandas onde o mar parece ter fim. E aquela gente, correndo, falando,
dançando, são ténues silhuetas, imprecisas e vagas como copas em manhãs de
bruma.
E aquela dor, fria e funda, doendo mais e mais...
Junto de si, os «homens grandes» tecem-lhe louvores e, de quando cm quando,
palpam-lhe o corpo gelado e trémulo. «Bajudas» roliças e intactas devoram-no
com o olhar incendiado.
Madja Bagi, de olhar perdido, músculos crispados sob a pele de ébano, um nó espesso na garganta ressequida,
apenas tem noção daquela dor funda e surda, como que um punhal entrando,
entrando ...
Agora, em plena festa do casamento de Xaála Bari, sente que tudo ruiu à sua volta. Ódio. Frio.
Quem será esse Curna Naté que a vai levar? Não conhece.
Uma voz qualquer - será a do chefe Impanda? - diz-lhe que
Curna Naté veio de longe, de muito longe, para a levar. É rico.
... A dor é maior. Maior e mais funda...
Com esforço, chamando a si toda a sua força imensa, Madja Bagi correu a
olhar. E vê o feliz entre risos e nuvens de fumo. Perto dali. Xaála Bari, assiste, dengosa, ao
baile das moças.
A crispação que lhe percorreu o corpo, elucidou os velhos. Desde logo,
prudentes, procuram assento junto das palhotas. Levavam no olhar a luz pânica dos
graves momentos.
Madja Bagi, de olhos fitos no feliz rival, sente que algo de indefinido o
submerge e sufoca. É um mal-estar estranho, uma raiva surda, o que quer que
seja de doloroso que o cobre de frio e tolhe os movimentos. E quando o seu
olhar duro, congestionado, faiscante, pousa em Xaála Bari, faz gelar-lhe o
sorriso com que premiava os tocadores.
De súbito, um longo arrepio talvez, ou talvez até um soluço mal contido,
faz sacudir o corpo magnífico de Madja Bagi.
A passo lento, encaminhou-se para Cuma Naté. Os seus músculos possantes, sob a dolorosa contracção,
desenham-se sob a pele.
Um frémito de pavor percorreu as gentes. Crianças nuas, desordenadas,
procuram as mães, em choros soluçados. Os tambores emudecem. Caiu do alto,
sobre os homens e as coisas, um silêncio pesado e frio como uma maldição.
Do alto da sua estatura hercúlea, Madja Bagi olha as gentes. E o seu olhar, firme e cortante,
esmaga-as inexoravelmente.
Contagiado, Cuma Naté ergueu-se trémulo.
A sua mão, pouco firme, prendeu o terçado. Companheiros robustos fizeram-lhe
guarda, enquanto os «grandes» abanavam as cabeças num fatalismo de mau agouro.
Lento, majestoso, Madja Bagi continuava. Da sua mão esquerda saía a amarra
da vaca malhada. E a vaca malhada, dócil e atenta, caminhava ruminando.
Daqui e de além, brotaram os primeiros gritos, logo
abafados pelo silêncio que imperava, Uma leve brisa ciciou na folhagem. Uma asa raspou o céu. Nada mais.
Madja Bagi deixou cair o terçado e, sem uma contracção, rígido e frio,
aproximou-se.
E as gentes viram, bestas de pasmo, Cuma Naté tremer. No
seu olhar baço e parado, no seu rosto coberto de suores frios, desenhou-se o
medo.
Então, quando já nada restava a não ser a pública cobardia
do rival, Madja Bagi sorriu. Um sorriso duro, crispado, agressivo como uma
bofetada.
Sem pressas, estendeu-lhe a corda que prendia o animal.
E quando, atónito e trémulo, Cuma Naté a recebeu, afagou-lhe o ombro com
duas pequenas palmadas - como o faria a um garoto...
Fernando
R. Barragão
Sem comentários:
Enviar um comentário