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Rafael Barbosa em 1999. Fotografia de Leopoldo Amado. |
O que disse o jornalista Daniel Reis sobre Rafael Barbosa no "Diário de Lisboa" de 25 de Novembro de 1980
Figura sistematicamente presente, na luz e na sombra dos últimos trinta anos da política guineense, Rafael Barbosa foi libertado pelos golpistas de 14 de Novembro, quando aguardava a leitura da sentença em segundo processo, sob a acusação de conspirar contra o PAIGC.
Já tinha sido condenado à morte em 1977, vendo a sua pena comutada em 15 anos de prisão por decisão de Luís Cabral. A libertação anunciada pelos autores do golpe, mas ao que parece ainda não concretizada totalmente (diz-se que o seu processo seria revisto mas que ele ficaria em liberdade) foi entendida por multa gente como um sinal claro da natureza direitista para que pende o novo regime, por influência de alguns dos seus mentores. E que Rafael Barbosa, como o prova o texto, que publicamos, era informador e colaborador da PIDE.
Um desses mentores, o assessor do Conselho da Revolução para os assuntos jurídicos é, exactamente o ex-procurador Geral da República, dr. Cruz Pinto. O defensor oficioso de Rafael Barbosa, acusou-o em processo de ter apadrinhado e fomentado algumas irregularidades processuais contrastando com a liberdade que lhe foi consentida pela Policia para preparar a defesa e dar um carácter sério ao julgamento. Cruz Pinto foi o homem que mais se bateu pela condenação de Rafael à morte, pena de que aliás é um notório e conhecido defensor.
Ainda há meia dúzia de meses apenas ele próprio mandou seguir um Tribunal para a Ilha de Carache, já acompanhado do pelotão de fuzilamento, para julgar e eliminar seis presos de delito comum que tinham tentado fugir. Sabido isto, soam a falso certos pruridos manifestados, agora, para acusar Luís Cabral, com o mais evidente oportunismo.
Quanto a Rafael Barbosa, parece-nos oportuno no momento em que o novo poder em Bissau se vai definindo, traçar-lhe o retrato completo e relatar a sua trajectória de agente duplo que tanto fornecia Informações à PIDE, para isso sendo remunerado, por vezes, como prestava serviços importantes na luta clandestina do PAIGC.
Os dados recolhidos para este «retrato» resultaram de testemunhos de participantes no processo e personalidades com acesso aos autos, e de pesquisas nos arquivos tendo sido comprovados, inclusive, durante o primeiro julgamento público.
Daniel Reis
Período 1950/59:
Rafael de Paulo Gomes Barbosa, casado, nascido em 3 de Março de 1927, natural de Bissau e descendente de cabo-verdianos, desde o inicio da década de cinquenta tenta organizar a resistência anticolonial criando em Bissau diversos grupos políticos clandestinos.
Em 1959 reúne-se com Amílcar Cabral para a integração desses grupos, que ele dirigia, no PAIGC, o que Rafael Barbosa aceita passando a fazer parte do Partido. Relativamente a essa reunião. Amílcar Cabral disse, no Seminário de Quadros realizado em 1969 em Conakry, que «foi nessa altura também, que o PAIGC conseguiu integrar no seu seio alguns pequenos grupos formados em Bissau e que estavam ligados, como vos disse o Rafael Barbosa».
Nessa altura, data da reunião com Rafael em que estiveram presentes Aristides Pereira e Fernando Fortes, entre outros, Rafael passou a ocupar o cargo de secretário de Controlo.
Segundo Cabral essa reunião «foi decisiva para tudo quanto aconteceu posteriormente na luta pela independência». Rafael Barbosa começa a trabalhar, activamente para o PAIGC, indo para o mato mobilizar pessoas para luta de libertação. É esse trabalho em prol do Partido, nesta faz decisiva, que faz com que Rafael Barbosa passe a ser admirado por todos os militantes do PAIGC.
Período 1962/64:
Em 1962, depois de um trabalho intenso, Rafael é preso pela PIDE nos arredores de Bissau, onde se encontrava em trabalho clandestino. Torturado, é libertado em 1963 para em 64 ser de novo preso. É nessa situação que se encontra até 1969.
Durante esses anos de cativeiro Rafael Barbosa, mesmo na prisão, desenvolve intenso trabalho de mobilização pois conseguiu contactos com o exterior que lhe permitiram continuar a orientar os trabalhos clandestinos. Relativamente a esse trabalho desenvolvido dentro das prisões da PIDE, Cabral dá-nos noticia no Seminário de Quadros dizendo que «nalgumas cidades, durante muito tempo, mesmo em Bissau, a nossa organização trabalhou regularmente, mesmo com Rafael na cadeia. Tínhamos sempre ligações e ainda temos. No calabouço ele fez também algum trabalho".
Durante todo esse período de 1960 a 69 Rafael Barbosa fez passar para o Partido dezenas de militantes alguns dos quais ocupam hoje postos dos mais elevados no PAIGC
Período 1969/74:
Em 1969, Spínola libertou algumas dezenas de presos políticos entre eles Rafael Barbosa. Na altura da libertação e na cerimónia propagandística então realizada, Rafael Barbosa fez um discurso em que a acção de Spínola era elogiada.
Gozando de liberdade vigiada, Rafael Barbosa continua a trabalhar para o Partido como responsável da Zona de Bissau, conhecida por Zona Zero. Entretanto, a PIDE tinha infiltrado agentes seus na rede clandestina de Bissau. Rafael, que desde a primeira hora tinha sido aliciado para colaborar com a PIDE, nomeadamente através dos inspectores major Carvalho Teixeira e Costa Pereira, começa a dar colaboração à PIDE ou, pelo menos, a facilitar-lhe certas informações. No entanto, continuou a coordenar o grupo de Bissau, mantendo contacto com a direcção do Partido, nomeadamente com Amílcar Cabral, por intermédio, entre outros, de Adulay Djari, que era da PIDE, desde 23 de Novembro de 1971.
No seio do sector clandestino há uma certa conspiração contra Rafael Barbosa - luta pela chefia - também fomentada por elementos da PIDE infiltrados na rede, tais como Malam Darame, da ANP, e Duarte Raimundo Cabral, entre outros.
No quadro da colaboração que teve com Spínola, Rafael acompanhou este general a Caboxanque e nessa operação fez um discurso. Isto em Março de 73.
Spínola ordenou ao Batalhão de Engenharia do Exército para conceder seis mil escudos em material de construção para Rafael Barbosa concluir uma pequena casa que tinha construído em Bissau. Posteriormente, ele próprio perguntou à PIDE quais eram as condições de amortização pois tinha intenção de pagar esse dinheiro. Rafael também assistiu ao chamado Congresso do Povo organizado por Spínola em 24 de Maio de 73.
Muitas missões que Rafael destinava a certos militantes na clandestinidade eram do conhecimento da PIDE mas curiosamente essas missões só eram levadas ao conhecimento da PIDE quando realizadas por agentes da PIDE infiltrados na rede clandestina. Assim aconteceu, nomeadamente com missões confiadas a Duarte Raimundo Cabral Adulay Djari.
Colaboração directa com a PIDE
Todas as reuniões feitas por Rafel Barbosa com militantes clandestinos, ou a maior parte delas, chegam ao conhecimento da PIDE por intermédio de informações de António Filipe (Filósofo) e Artur Leão (Arus). Alguns militantes presos denunciavam sistematicamente Rafael Barbosa, enquanto que a PIDE dizia. a todos os militantes presos para não colaborarem com Rafael porque ele era agente da PIDE.
Entretanto houve colaboração de Rafael com a Pide na pesquisa de certas informações e um dos agentes utilizados por ambas as partes era Duarte Raimundo Cabral.
Contudo, a PIDE, essencialmente através de um informador de pseudónimo António, conseguiu conhecer alguns planos de fuga preparados por Rafael, pois esse informador fora destacado pela PIDE, para o controlo das relações de Rafael com a juventude. Foi esse informador que denunciou e levou à prisão por exemplo, o então furriel miliciano Castro Fernandes que fazia parte da rede clandestina.
Por intermédio do informador Fava. a Pide conhece o conteúdo das reuniões de Rafael Barbosa com os militantes e por intermédio do informador Pato a Pide sabe que certos militantes pretendiam pôr bombas na sua delegação em Bissau. Entre estes militantes, que foram denunciados, estão Aliu Djaki Djal6 e José Carlos Schwartz, este último acusado de ter transportado bombas para Bissau. Isto provoca a prisão dos dois militantes clandestinos do PAIGC.
Devido á entrada das bombas em Bissau Rafael voltou a ser preso e entregou alguns desses engenhos. Toda esta a acção da Pide no seio da rede clandestina nos anos 71, 72, e 73, permite a esta policia a detenção do grosso dos activistas dessa rede, que vai sendo desmontada, e que em 73/74 leva de novo Rafael Barbosa à prisão com toda a sua família, incluindo uma filha de 11 anos de idade.
Contudo, Rafael sabe que há elementos da Pide no seio da rede e tende a jogar com isso fornecendo informações à Pide, que já estavam na posse dos elementos infiltrados ou que era muito provável que estes já c0onhecessem por participarem nas reuniões ou em missões concretas.
De facto, por algumas destas actividades, Rafael era compensado com auxílios financeiros da Pide.
Mas na rede clandestina notava-se a formação de uma nova direcção para afastar Rafael Barbos com o fundamento de que a rede anterior já estava descoberta. Nessa luta, não é estranha a influência de Momo Touré, que viria a matar Amílcar Cabral.
Suspeitas de participação na morte de Cabral
uanto à acusação da morte de Cabral não há provas seguras da participação de Rafael mas devido a essa “entourage" suspeita-se da sua participação sem que nada tenha ficado claro. Por isso, dadas as implicações desse facto, no seio do Partido, esta questão acabou por ser, apenas, aflorada na acusação contra Rafael, no primeiro julgamento. Não foi discutida, em tribunal: somente abordada nos termos da acusação.
Há de facto, algumas ligações entre Rafael Barbosa, Momo Touré, e Aristides Barbosa (estes dois últimos agentes directos da morte de Cabral) durante a clandestinidade e antes destes partirem para as zonas libertadas. Só que não é claro se o processo de fuga destes dois tem a participação de Rafael, assim como não se sabe se este último aprovou, ou não, a saída de Aristides e Mamo para Conakry. Não se conhece, claramente, o conteúdo, dos contactos entre eles, depois dos primeiros terem partido.
Rafael Barbosa na sua actividade clandestina infiltrou militantes no seio dos comandos africanos e deles tirou informações de planos militares, que transmite ao PAIGC.
São militantes nos comandos o furriel miliciano Saeg (irmão de um criminoso de guerra do mesmo nome), Zamora Barbosa e outros.
Rafael chega a avisar o PAIGC de uma conta aberta em Nova Iorque pelo governo colonial, numa altura em que Cabral ia à ONU. Fez o aviso por suspeitar que essa conta seria para pagar agentes destinados a liquidar Cabral. Para além dessa informação há outras também importantes, nomeadamente a presença em Bissau de militares dissidentes do regime de Conakry.
Foí para Morés, com a Intenção de ali arranjar algumas bombas, no seio dos guerrilheiros e regressar com elas a Bissau para as entregar à Pide e assim obter a libertação da sua família. Nessa altura, é preso em Morés pelo PAIGC e desde então, data recente esteve sempre preso à ordem da Segurança Nacional e Ordem Pública.
Antes disso faz-se notar que todos os contactos de Rafael em Bissau eram vigiados estreitamente pela Pide. Deu também antes do 25 de Abril, e antes de ser preso, em Morés, uma entrevista filmada a um Jornalista francês, entrevista preparada pelos serviços de acção psicológica do Exército e na qual esteve acompanhado por um oficial português.
Nessa entrevista, apesar da ambiguidade das declarações, Rafael Barbosa criticava o PAIGC.
Preso em 1974, como dissemos, em Morés e depois da entrada da Direcção do PAIGC em Bissau, é levado para Bolama onde fica instalado numa casa guardada por soldados do PAIGC enquanto se faz a instrução do processo.
Procurador-geral apadrinha irregularidades
O processo começa a ser instruído e curiosamente, as principais peças que servem de: base à acusação tinham sido fornecidas pelo próprio Rafael Barbosa ao PAIGC. Com efeito, Rafael enviava regularmente, havia muito tempo, vários documentos sobre a. sua actividade incluindo um diárioo. Foi. esse material, junto com depoimentos de militantes da rede clandestina que serviu de base à acusação.
Em Setembro de 76, começa o Ju~gamento que dura até Fevereiro de 1977 com algumas interrupções. O interesse pelo caso de Rafael Barbosa fez com que centenas de pessoas acompanhassem o julgamento público indo ao tribunal. No primeiro dia, um sábado, as pessoas não cabiam na sala e tiveram de ficar na rua à chuva. Foram distribuídos panfletos.
Depois passaram-se a fazer as audiências no cinema da base aérea, em Blssalanca, para onde se continuavam a deslocar algumas dezenas de pessoas.
Algumas testemunhas de Rafael Barbosa chegaram a ser presas pela Segurança antes de comparecerem em juízo, facto que foi denunciado pelo defensor oficioso, o advogado popular dr. WIadimir de Brito. Este, aliás, aceitara a defesa de Rafael Barbosa por lhe ter sido salientada a importância nacional de o acusado ter todas as garantias de defesa.
O defensor oficioso protestaria até contra vícios vários e graves do julgamento, alguns dos quais foram da responsabilidade do procurador-geral da República, Cruz Pinto (hoje assessor civil do Conselho da Revolução, que libertou Rafael Barbosa) nomeadamente o desigual tratamento das testemunhas de acusação e defesa, sendo estas últimas muitas vezes presas no decurso do julgamento sem quaisquer fundamentos legais.
Rafael Barbosa foi julgado e condenado à morte. Pediu a graça do Presidente do Conselho de Estado e a sentença foi-lhe comutada para 15 anos de prisão. É de notar que nos termos da Lei de Justiça Militar na base da qual foi acusado e julgado a pena máxima de prisão é de 10 anos pelo que só por manifesto abuso do Poder e ilegalidade lhe são aplicados 15 anos de prisão, com pleno conhecimento e participação do procurador-geral.
Há a destacar, finalmente; o facto de Rafael Barbosa ter recebido diversas cartas de Amílcar Cabral, a última das quais datada de 18 de Janeiro de 73, portanto dois dias antes da sua morte, cartas de certo modo amistosas e contendo conselhos e directivas para a actividade clandestina.
Mesmo depois da morte de Amílcar Cabral, ainda recebeu uma carta de Luís Cabral, datada de 24.de Fevereiro de 73 na qual o ex-presidente o tratava por camarada, o que leva a crer que a Direcção do PAIGC não acreditava na versão segundo a qual Rafael Barbosa teria tido responsabilidades na morte de Cabral. Essas cartas foram juntas ao processo e lidas no julgamento.
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