FERNANDO BAGINHA*
Rafael Barbosa: resistente, preso, herói, traidor, de novo resistente, de novo traidor, de novo preso, amnistiado, preso, condenado à morte, pena comutada, libertado, de novo herói e logo desmentido. Esta sucessão karkiana de situações não tem certamente paralelo.
Rafael Barbosa é, de facto, uma figura central de todo este processo. Fundador, com Amílcar Cabral e outros, do primeiro movimento de independência da Guiné, ele é, sem dúvida, o «homem da libertação» para todos os guineenses a quem o problema se punha, isto é, aos dos meios urbanos e, sobretudo, de Bissau. Preso e deportado, continua, no entanto, a ser apresentado como o símbolo da independência e o Presidente de Honra do Movimento.
É depois da sua prisão que a estrutura do Movimento se transforma em estrutura de Partido, assumindo Amílcar Cabral o cargo de secretário-geral, o que significa assumir o poder real.
Começa a preponderância do sector cabo-verdiano no Partido, continuando sempre Rafael Barbosa a ser apresentado corno «o homem da Guiné».
Dá-se, então, a «traição». Rafael Barbosa, sem que nada o fizesse esperar, é libertado e faz um discurso público, em que adere à -Guiné melhor» de Spínola. O PAIGC declara-o traidor à causa da libertação. Mas, na realidade, tinha começado aqui uma clivagem perigosa: começava a esboçar-se a ideia da possibilidade de uma Guiné independente (ou coisa parecida ..) SEM CABO VERDE.
A Direcção Política do PAIGC não insistiu muito na condenação de Rafael Barbosa, o que se deveu, essencialmente, a dois factos importantes. O primeiro foi a adesão de cabo-verdianos ao PAIGC ter estagnado. Para além do grupo inicial, e do recrutamento feito em Lisboa, não se concretizou a esperança de Cabral: a adesão de cabo-verdianos, e seus descendentes da Casamansa, no Sul do Senegal, onde a colónia crioula era de algumas dezenas de milhares, e que, a verificar-se, teria equilibrado o peso dos guineenses no aparelho do PAIGC. O segundo era o movimento de adesões ser, cada vez mais, proveniente de Bissau, o que queria dizer que aementavam os •• rafaelistas- no seio do Pa(tido.
Pouco tempo antes do assassinato de Amílcar Cabral, o «PAIGC Actualités» (boletim de propaganda editado, em francês, pelo Partido) ainda trazia em primeira página a fotografia de Rafael Barbosa, designado como Presidente do Partido.
No entanto, e dentro do Partido, evitava-se o «assunto Rafael»: mas, qualquer militante originário de Bissau não escondia que, para a Guiné, o símbolo da independência era Rafael Barbosa. E eram os homens vindos de Bissau que, sendo mediamente instruídos (tinham frequentado o liceu), começavam a preencher as funções de quadros médios, o que, em principio, daria controlo do aparelho.
Assim, Quando se dá a conspiração que leva ao assassinato de Amílcar Cabral, os, cada vez mais, minoritários cabo-verdianos vêem-se em oposição aos, cada vez mais, maioritários guineenses.
E, çomo expliquei no artigo anterior, tudo teria ficado «resolvido» se não fosse a intervenção do exército de Sekou Touré.
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O tribunal de guerra que julgou e condenou Rafael Barbosa (1997) |
É por esta altura que o papel de Spínola em ,tudo isto me parece de abordar ..
(Antes, quero fazer um parêntesis: A esquerda. portuguesa adoptou, para seu descanso, até ao 25 de Abril e depois, o esquema geral de «É mau? Foi Pide». Isto permitia explicar tudo o que não se sabia explicar: Assim, e neste caso, Amílcar tinha sido morto e só havia uma explicação: foi a Pide. Este foi, aliás, o sentido do primeiro programa da Rádio Libertação do PAIGC, por mim escrito e lido depois do assassinato. E eu, quando o escrevi e li, já não acreditava nisso! Sabia, tão bem como todos os que estávamos nessa situação, que a Pide não tinha, directamente, nada a ver com o assassinato [Daniela Cabrita Mateus demonstrou que não foi bem assim. Ver o post http://coisasdaguine.blogspot.com/2011/01/42-amilcar-cabral-foi-assassinado-ha-38.html)]. Penso, com isto, não estar a promover a Pide, mas, pelo contrário, estar a retirar-lhe méritos que a esquerda lhe atribuia, acusando-a permanentemente de poderes conspirativos que na realidade não possuíam.
Foi a compreensão desta contradição insuperável que levou Spínola a investir tanto na «recuperação» de Rafael Barbosa e a deixá-lo à vontade, para continuar a conspirar. Porque Spínola sabia que Rafael Barbosa podia fazer os discursos que fizesse, mas, logo que à vontade, não deixaria de recomeçar uma luta pela qual já pagara sete anos de prisão.
Começou, portanto, um certo «LIBERALISMO», no sentido de se permitir saídas colectivas de BIssau, que, de outro modo, seriam impossíveis, atendendo-se ao dispositivo militar que rodeava capital da colónia. S6 assim se entende que chegassem às linhas do PAIGC grupos de 30 e 4{) indivíduos, que vinham de Bissau passando todo este sistema de segurança.
Spínola jogava na agudização da contradição que ele sabia existir: quantos mais guineenses do PAIGC mais rápida seria a desagregação do Partido. Amílcar Cabral também o entendeu e até se encontrou por duas vezes com Spínola, no Senegal. Mas o processo já vinha de longe e já era imparável. Spínola, com a sua «Guiné melhor», conseguiu insinuar a ideia, ao nível dos quadros de guerra, de que sem a unidade Cabo Verde-Guiné algo seria possivel. O que, para Portugal, era inegociável era Cabo Verde.
Isto, acrescentando-se ao cansaço de guerra dos quadros militares do mato (como Osvaldo Vieira e Nino Vieira), preparou rapidamente o caminho para o «golpe de Estado sem Estado» que foi o assassinato de Amílcar Cabral.
Desde então, e até à chegada definitiva de Nino ao poder, tudo foram atrasos de percurso:
• Primeiro, o falhanço do golpe de 1973, por oposição de um dos seus apoiantes: Sekou Touré;
• Segundo, o 25 de Abril em Portugal, com o processo de descolonização, que obrigou todos os intervenientes a estarem de acordo;
• Terceiro, a confirmação no poder de Luís Cabral, beneficiando do processo de descolonização e do apoio dos outros países saídos das ex-colónias, no âmbito do CONP;
• Quarto, o apoio que Luís Cabral sempre teve por parte de Francisco Mendes (Chico Té), primeiro-ministro até ao acidente que o vitimou. Chico Té funcionou como o homem do equilíbrio entre os militares e a direcção cabo-verdiana Se Chico Té fosse vivo estaria, certamente, entre os bodes expiatórios agora encontrados. Estaria no grupo dos que «faziam maldades», como os comandantes Julião e André Gomes.
Um abraço amigo, André Gomes!...
in Jornal "O Ponto" de 18 de Dezembro de 1980
* FERNANDO BAGINHA viveu na Suécia onde trabalhou, durante alguns anos, com o PAIGC. Em 1972 e 1973 foi professor da Escola-Piloto do Partido, na República da Guiné, de que chegou a ser director. Foi também o autor e responsável pelos programas de propaganda dirigidos aos militares portugueses, através das emissões da Rádio Libertação do PAIGC.
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