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13 de maio de 2011

158-Como estava Guidage antes de "Os marados de Gadamael" lá chegarem

(Texto de Daniel de Matos)

Infelizmente, o meu amigo Daniel de Matos, autor desta  linhas, faleceu no dia 13 de Novembro de 2011
Antecedentes à nossa chegada

Realmente, o cenário não é dado a optimismos. Sabemos que a 8 de Maio o PAICG começou o cerco. Logo nesse dia Guidaje esteve cinco vezes debaixo de fogo (num total de duas horas de fogacho). Uma coluna escoltada por dois pelotões do exército (um grupo de combate da 1ª CCaç do BCaç 4512, de Nema, e outro da CCaç 14, de Farim) e por fuzileiros da DFE-7, que também partira de Farim, viu uma das suas Berliet accionar uma mina anticarro. Seguiu-se uma emboscada que os encurralou e obrigou a recuar, acabando por terem de pernoitar no mato. A emboscada causou alguns ferimentos e, pelo menos um “fuzo” que estava a socorrer um camarada, viria a perder uma perna. Contam-nos em Farim que o PAIGC dispõe de um forte e bem treinado efectivo a muito poucos quilómetros dali, dentro de Senegal, estimado em seis a sete centenas de guerrilheiros com grande formação e treino militares. Conhecendo a estratégia do IN para isolar/envolver a região, o tenente-coronel António Valadares Correia de Campos, transfere-se neste dia, conjuntamente com o comando do COP3, de Bigene para Guidaje.

Os mesmos homens voltaram no dia seguinte (9 de Maio) a ser sobressaltados com nova emboscada, ainda de maior envergadura! Os camaradas milicianos que em Farim me alojaram no seu quarto (e, creio, que também aos furriéis Machado e Ângelo Silva), contaram durante a noite que o pessoal só tinha aguentado as quatro a cinco horas que esteve debaixo de fogo por ser portador de um abastecimento extraordinário de granadas para morteiretes. Assim, enquanto os pequenos prato-base não se enterraram no solo e os canos dos morteiros não se derreteram nem lhes derreteram as mãos, conseguiram aguentar-se e responder ao fogo. Entretanto, tinham sido reforçados com pessoal a 1ª CCaç do BCaç 4512, de Binta, e mais duas esquadras do DFE-4, vindas de Ganturé. Mas todos estes efectivos não conseguiram evitar pesadas baixas, entre as quais, quatro mortes, cujos corpos haviam de ficar tombados no caminho, uma vintena de feridos, oito deles com gravidade, deixando também na picada quatro viaturas destruídas e não conseguindo, mais uma vez, chegar ao destino. De notar que, no mesmo dia e quase em simultâneo, Guidaje “lerpou” mais quatro vezes, o que demonstra a grande concentração de guerrilheiros que o IN tem na região…

Mais três flagelações se abateram sobre o casario de Guidaje a 10 de Maio. No mesmo dia tenta-se romper o cerco. Uma avultada força, dirigida pelo tenente-coronel António Vaz Antunes (comandante do batalhão de Farim/4512) inicia nova operação que envolve distintas unidades: dois grupos de combate da CCaç 14, de Farim, dois grupos de combate da 38ª de Comandos, uma secção do pelotão de Morteiros 4247, um grupo da Companhia Africana Eventual, de Cuntima, três grupos do BCaç 4512, sendo dois deles de Nema (1ª CCaç) e o terceiro de Jumbembém (2ª CCaç). Mas a coluna também consente um morto (o soldado Manuel Geraldes, precisamente de Jumbembém, cujo corpo foi dilacerado por efeito do rebentamento da mina em que caiu), e dois feridos, que seguiam atrás dele. Logrando ultrapassar todos os impedimentos, nomeadamente as dezenas de abatises, (árvores de grande porte serradas, os troncos tombados atravessando a picada, escassos quilómetros depois de Binta), a coluna consegue chegar ao objectivo, atingindo Guidaje.

(Muitos anos depois, em conversa com o primeiro-cabo guineense Fati, atirador do lança-granadas foguete Instalaza de 8,9 cm, (mais conhecido por bazuca), e que ficou ferido neste combate, tive a oportunidade de aquilatar o volume do fogo inimigo e a incapacidade de reacção ofensiva do pessoal da sua unidade para sair por cima neste combate).

Ao mesmo tempo, e depois do tiroteio trocado por dois pelotões da CCaç 3, que de véspera patrulhava a região de Samoge, vindos no sentido inverso com a intenção de proteger o itinerário a norte, um efectivo da CCaç19 saiu de Guidaje e a curta distância  do mesmo local experimentou cinco contactos com o IN, de que resultaram mais oito mortos e nove feridos para as NT. A situação aqui não foi menos grave porque, rareando as munições para ripostar ao fogo, tiveram de bater em retirada e deixar no mato os corpos de três mortos, não os conseguindo recuperar.

No relatório desta acção, o seu comandante descreve assim a violência do contacto de fogo: "...em relação às NT, o IN estava de frente, dos dois lados da picada, e foi impossível fazer uma reacção conveniente pelo fogo. A primeira sessão pelo fogo causou-nos imediatamente três mortos ( ... ) o IN voltou à carga com maior ímpeto, mas as NT já estavam preparadas para o receber e aqui teve as primeiras baixas. Estando um cabo gravemente ferido com um estilhaço no pescoço, o soldado auxiliar de enfermeiro correu para junto dele a fim de o socorrer. Estando ajoelhado a seu lado foi atingido por uma rajada que lhe provocou a morte. Começavam a escassear as munições e foi dada ordem para fazer fogo de precisão, tanto quanto possível. Quando o fogo parou por escassos segundos um dos furriéis tentou chegar junto dos mortos para recuperar os corpos. Quando se levantava para realizar esta acção, pela terceira vez o IN atacou as nossas posições. Notando a impossibilidade de recuperar os corpos dos mortos e porque a falta de munições era quase total, o comandante viu-se coagido a ordenar a retirada... " (in sítio do BCaç 4512).

A 11 de Maio, os 2º e 4º grupos da 38ª Companhia de Comandos, que no dia 9 se tinha deslocado de Mansoa para Farim integrando uma coluna de abastecimento, avança com a mesma coluna e um pelotão da guarnição de Binta em direcção a Guidaje, levando na frente sapadores que vão analisar as crateras abertas pelas minas rebentadas anteriormente e orientar a picagem a efectuar durante o percurso. A marcha é, por isso, extremamente lenta (cada dois quilómetros demoram cerca de uma hora a percorrer), esperando-se que as minas que vão sendo detectadas na frente da coluna sejam feitas explodir. Deparam-se com um grupo de viaturas desventradas e há também diversos cadáveres pelo chão, muitos já “bicados” por djugudés (abutres, também “jagudis”). Há novas abatises espalhadas a dificultar a progressão. A CCaç 19 sai de Guidaje e vem ao encontro destes homens, mas ao passar por uma ponte é atacada. Não tem grandes condições de reagir e pede apoio aéreo. Passados quarenta minutos chegam dois Fiat G-91 que, no entanto, e apesar dos apelos constantes via rádio, se recusam a abrir fogo porque as forças em presença estarão demasiado próximas. Contam-se muitas baixas neste confronto. Também entre os comandos as coisas não correm bem: ao ouvirem os rebentamentos e o tiroteio da emboscada os homens saltam das viaturas. Um deles, – o primeiro-cabo Filipe, – acciona uma mina A/P e perde um pé. Mais adiante apanham do chão o cadáver dum soldado que também caíra numa mina e ficou irreconhecível, embrulham-no num poncho e levam-no sobre o estrado de um Unimog. No local da emboscada da CCaç 19 o cenário é dantesco, com inúmeros cadáveres espalhados pela picada fora e nas imediações. Ao cabo de mais de 10 horas de marcha, esgotados, atingem Guidaje já no lusco-fusco, refugiam-se nas valas, agachados, e pouco depois o quartel é flagelado, o que aconteceu mais algumas vezes durante essa noite. Já nos primeiros raios solares de 12 de Maio, durante uma flagelação de foguetes 122 e morteiros 82, o soldado comando José Luís Inácio Raimundo é atingido nas valas e morre nesse instante. Finalmente, a coluna de reabastecimento constituída pelos Destacamentos de Fuzileiros Especiais nº (1?) 3 e nº 4 e um grupo de combate da CCaç 3, de Bigene, chega a Guidaje, aonde permanecerá vários dias.

Efectivos que chegaram na coluna do dia 10, regressaram a Farim a 13? No dia 13, comandados pelo capitão Alves Jesus, os fuzileiros do DFE-4 tentam caminhar para Farim, e daí regressar a Ganturé. Levam consigo viaturas carregadas de populares. Morre o soldado condutor Ludgero Rodrigues da Silva, da CCS do BCaç 4512. Sofrem uma emboscada, permanecem uma hora debaixo de fogo e são obrigados a regressar. No sentido contrário também uma coluna de reabastecimento tinha saído de Farim, mas não logrou avançar além do Cufeu. Passa mais uma noite e, a 14 de Maio, um forte rebentamento atinge com um estilhaço fatal um grumete do DFE-7. Esta manhã poisa no canto mais recuado da parada um “héli”. Transporta um caixão para levar o corpo do infeliz fuzileiro.

Estiveram na Guiné, nos anos da guerra, vinte e seis destacamentos de fuzileiros especiais (dois dos quais, africanos) e onze companhias de fuzileiros navais. No total, estas unidades sofreram oitenta e seis mortos, cinquenta e cinco deles, em combate.

A alvorada seguinte, de terça-feira, começa a clarear. Em abono da verdade, neste tempo, pouco ou nada nos importa saber em que dia da semana estamos! Para quê, se os dias correm todos enjoativa e implacavelmente iguais?

Talvez só os domingos de futebol se safassem, caso pudéssemos ouvir os relatos que a Emissora Oficial da Guiné transmitia em directo: “atenção amigo ouvinte, constituição da equipa do Benfica: José Henrique; Artur, Humberto, Messias e Adolfo; Jaime Graça e Toni; e na linha avançada temos Nené, Jordão, Eusébio e Simões”. E quando o locutor se esganiçava e gritava «golo!» as casernas também explodiam, mas de alegria! De certa vez o escritor António Lobo Antunes (autor que começou a sua carreira literária publicando grandes livros sobre a  guerra colonial) contou mais ou menos isto: um golo do Benfica fazia parar a guerra, interrompia os combates, pois de um lado e de outro das trincheiras, à mesma hora, estava toda a gente a vibrar. Com efeito, muitas pessoas que admirávamos eram oposicionistas do regime e mesmo, encapotada ou clandestinamente, simpatizantes e militantes dos movimentos de libertação nacional. Já se falava de Hilário, um dos melhores defesas de sempre do futebol do Sporting como provável simpatizante da FRELIMO, e, como ele, os benfiquistas Coluna, e até de Eusébio, (figura, no entanto, cujo prestígio foi aproveitado pela propaganda do salazarismo e do marcelismo) e havia outros, por exemplo, no atletismo do SLB, como Barceló de Carvalho (que é o cantor angolano Bonga) velocista e recordista nacional durante vários anos, ou o também recordista nacional e cantor angolano Rui Mingas, cujas cantigas (dois LP’s e vários “singles” gravados desde 1969) não enganavam ninguém nem escondiam a óbvia simpatia pelo MPLA e pelas suas causas. Antes da incorporação no serviço militar obrigatório assisti, com o meu amigo de infância Cipriano Simões, ao lançamento de um dos seus discos, no estúdio da Rádio Renascença, em directo. Suponho que era o “long-play” que incluía o extraordinário tema Monangamba, da autoria do poeta e intelectual António Jacinto, um branco angolano que não regateava as origens do musseque luandense, e que por se meter em “aventuras” apanhou muito mais do que uma dúzia de anos de Tarrafal. Nessa noite (programa “Tempo ZIP”?) eu estava muito longe de imaginar que um par de anos mais tarde teria o privilégio de contar com o António Jacinto como um grande amigo e cuja morte viria a deixar-me profundamente triste e a empobrecer as literaturas de expressão portuguesa. Quanto a Mingas, é nos anos 60/70 uma espécie de cantor oficial da Casa de Estudantes do Império, – ao Arco Cego, em Lisboa, – conhecido “coio” de africanos do chamado reviralho, pejado de amigos dos “terroristas”, mas onde, malgrado a contínua perseguição da PIDE, se divulgam e publicam peças literárias do melhor que existe em língua portuguesa, sobretudo na poesia. O desporto e a cultura criam laços que unem muitos combatentes de ambos os lados da guerra. O comandante N’Dalu (António dos Santos França, que já como ministro e Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Populares de Angola vim também a conhecer pessoalmente), estudou em Coimbra e, antes de fugir do país para ir ter formação militar, suponho que na Argélia e mais tarde em países do leste europeu), granjeou amigos e adeptos a jogar na Académica, onde era conhecido por “França”. Alguém pensou que viria a tornar-se um elemento determinante, mesmo decisivo para a independência de Angola, por comandar e vencer a célebre batalha de Kinfangondo, contra o exército zairense de Mobutu Sese Seko que acompanhava a FNLA e um batalhão de mercenários, quarenta quilómetros a norte de Luanda, nas vésperas do 11 de Novembro de 1975? Por estas e por outras Amílcar Cabral, que considerava ser a luta armada também um acto de cultura, não se cansava de afirmar que a luta de libertação do povo da Guiné e Cabo Verde (e dos povos das outras colónias) não era uma luta contra o povo português, mas contra o regime que oprimia ambos os povos (referindo-se ao fascismo em Lisboa e ao colonialismo em África). E, também por estas e por outras, ao vermos amigos em barricadas opostas, muitos de nós começamos em plena campanha a meditar por que raio andaremos aqui aos tiros uns aos outros?

1 comentário:

  1. Caro A. Marques Lopes

    Este trabalho do Daniel sobre Guidaje, quando da sua publicação no Blogue luisgraca
    foi alvo de grandes elogios mas também de contributos que iam no sentido de melhorar e contribuir para que esse trabalho ficasse mais preciso e rigoroso, à luz de relatos de camaradas que viveram também esses acontecimentos.

    Ao reler agora neste blogue o trabalho, verifico que se mantém os mesmos erros que o autor poderia ter evitado nesta segunda edição, o que lamento porque fiz parte da coluna narrada neste texto e não foi isto que se passou.

    Se me é permitido passo a expor factos.

    -A 1ª coluna do dia 8 / 9 de Maio é constituída apenas por 2 GrComb que não excederiam 50 elementos.

    -1º GrComb da 1ª/Bcaç 4512 de Nema

    -1 GrComb da 14ª Ccaç de Farim

    Fomos socorridos já no limite por cerca de 15 elementos da minha 1ª/Bcaç 4512 de Binta (onde estavam 2 GrComb), que nos ajudaram a retirar com os feridos.

    No local ficaram 4 mortos.

    Não houve reforços de Fuzileiros, que só a 12 entram nestes acontecimentos.

    O Ten Cor Correia de Campos parte para Guidaje na coluna do dia 10 (a segunda por ordem de partida), onde monta o PC.

    O Fuzileiro ferido a que se faz referência é na coluna de 23 Maio.

    No dia 10 a 2ª coluna é assim constituída:

    -1 GrComb (2º) da 1ª /Bcaç 4512 de Nema

    -1 GrComb (2º) da 2ª/ Bcaç 4512 de Jumbembem

    -2 GrComb da 14ª Ccaç de Farim

    -1 GrComb da Ccaç Afr Eventual de Cuntima

    -2 GrComb da 38ª Ccmds

    -1 Secção do Pel Mort 4274 de Farim

    Esta coluna com 15 viaturas sob o comando do Cor António Vaz Antunes Cmdt do Bcaç 4512, chega a Guidaje, sofre um morto por accionamento de mina, da 2ª/Bcaç 4512.

    -Sold Manuel Maria Rodrigues Geraldes, que fica sepultado em Guidaje.

    O que se refere a dia 11 com a Ccmds passa-se a 10.

    Esta coluna regressa a Farim dia 13 Maio.

    Dia 10, 2 GrComb da Ccaç 19 e 2 da Ccaç 3, saem de Guidaje ao encontro da coluna, tem 3 contactos com o IN, de que resultam 5 mortos da Ccaç 19.

    Dia 12, chega a Guidaje a 3ª coluna constituída por elementos dos DEF-1 e 4 mais 1 GrComb da Ccaç 3 de Bigene, e chega sem problemas no mesmo dia a Guidaje.

    Esta coluna ficará em Guidaje durante mais uns dias.

    Quanto à suposta saída de Guidaje com retrocesso para Guidaje, por efeito de emboscada, isso vai acontecer uns dias a seguir mas de forma diferente.

    Espero ter contribuído de forma modesta, para o melhor esclarecimento do trabalho do Daniel Matos.

    Um abraço

    Manuel Marinho

    Ex 1º Cabo do 1º GrComb da 1ª/Bcaç 4512

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