(Texto do Daniel de Matos)
Infelizmente, o meu amigo Daniel de Matos, autor desta linhas, faleceu no dia 13 de Novembro de 2011
31 de Maio
Poucas vezes na vida o nascer do sol nos terá sabido tão bem. Desta vez, acho que todos conseguimos dormir profundamente umas quantas horas seguidas e todos acordámos cedo e nos pusemos de pé num único impulso. Falo sobretudo de Os Marados de Gadamael, pois há camaradas que terão como tarefa regressar a Guidaje e ficar mais uns tempos por estas paragens, designadamente as companhias que chegaram anteontem e sem as quais ainda estaríamos sitiados. A missão dos pelotões da CCaç 3518 acabou, “o sibe chegou ao seu destino”, há soldados que se dizem prontos a festejar a próxima noite no Pilão!...
Ainda não eram oito horas e já tínhamos atravessado o rio para a margem esquerda, o motor da jangada até parecia querer pregar-nos uma partida, mas lá se aguentou. Quando arrancamos grita-se “está na mala”, “prego ao fundo, ó condutor”, “putas vão-se lavando que Os Marados vão a caminho” e outros ditos próprios da época e do estado de espírito, que guerra e soldados são assim mesmo em qualquer tempo, em qualquer lugar!
Com essa mesma alegria abrandamos a velocidade na passagem pelo destacamento K3 (antiga tabanca de Saliquinhedim) e, recebida a ordem do comando de Farim, apagamos os sorrisos e aí vamos em direcção ao sul, andamento moderado. Agora vamos todos motorizados e é sempre pelo alcatrão, pelo menos não haverá minas sob os pneus (o que não significa que a estrada não possa estar armadilhada num sítio qualquer).
Seremos, porém, os campeões do infortúnio. A pouquíssimos quilómetros do K3, de súbito, estoira nova emboscada. As primeiras roquetadas despoletam-na e limpam as viaturas da frente: o primeiro Unimog é destruído e o seguinte incendiado. Há um homem que acciona uma mina com o peito. Para se abrigar das balas das Kalashnikov que entretanto começaram a cantar à nossa volta, lança-se para trás de um “baga-baga” (rijo, à prova de bala, construído por formigas térmitas, chama-se morro de salalé, em Angola), e os fragmentos do seu corpo são espalhados por um diâmetro incalculável. Durante largos minutos há tiroteio de armas ligeiras na frente da coluna. Os homens das viaturas não atingidas, entre os quais nos incluímos, saltam para as bermas e tentam também reagir com prontidão. Seguimos sensivelmente a meio e não avistamos os atacantes, embora algumas balas vão zunindo muito próximas. O IN retira-se e há pessoal das NT que tenta a perseguição, mas é mandado parar. A artilharia do destacamento K3 bate a zona do lado direito da estrada durante alguns minutos. Um Unimog passa a toda a velocidade em sentido contrário, na direcção de Farim. Leva feridos. Um deles, sentado no banco de espaldar e amparado por dois camaradas, leva o joelho garrotado, perdeu a perna daí para baixo.
A coluna recua até ao destacamento para se reorganizar. A zona de onde os combatentes do PAIGC lançaram o ataque continua a ser bombardeada pela nossa artilharia. Ao longo da estrada, em frente ao K3, esperamos pelo Allouette que vem evacuar os feridos. Depois do helicóptero carregar as macas e levantar voo a coluna/auto põe-se de novo em andamento. Quando passamos pelas viaturas destruídas, ainda estão a fumegar. Depois do cheiro dos ares de Bironque atingimos Mansabá e avançamos praticamente em linha recta, direitos a Mansoa, sempre na expectativa de novos contactos com o IN, se nada se passou no enfiamento do Mores é porque talvez nos safemos… Safámo-nos!
Com a alegria estampada nos rostos chegamos ao COMBIS, em Brá (não longe do quartel dos comandos e a pouca distância da base aérea e aeroporto de Bissalanca), por volta às 17 horas. Aqui sim, o nosso péssimo aspecto mete dó aos transeuntes, assusta as pessoas com quem nos cruzamos. Olham-nos com ar espantado, como se vissem lobisomem! As próprias caras dos camaradas da nossa companhia se dividem entre a alegria de nos ver e a perplexidade.
O pessoal marado vem ao nosso encontro, sai da caserna, da secretaria e vem-nos abraçar efusivamente, andamos de ombro em ombro, não menos eufóricos. O furriel Quaresma – o vagomestre a cujos manjares devíamos tamanha elegância! – fica admirado por me ver à sua frente:
– Estás vivo? – pergunta-me.
– O que te parece? Não sou nenhum fantasma!
Confessa que no jornal da caserna o meu nome integra o rol dos que tinham sucumbido, já quase me tinham cantado a missa do sétimo dia, quem morreu afinal?, no COMBIS ninguém sabia ao certo. Chica, como se as transmissões não funcionassem! Esclareço-o das baixas e pergunto pelo Alexandre Castro, o nosso mangas-de-alpaca, que afinal está de férias na sua Amadora. Ainda assim, vou direito à secretaria, ao primeiro-sargento António Fagundes Neves, para ver se tenho correio. Diz-me “lá se safaram de mais uma” e passa-me um braçado enorme de cartas, jornais e revistas.
Antes do banho, cubro a manta da cama com a correspondência acumulada, que inclui cassetes recebidas dos meus amigos Acácio, Cipriano e Fernando, que em Lisboa faziam o favor de me gravar as últimas novidades, incluindo os discos que eu recebia regularmente de Londres (através da Tandy’s Records) e cuja audição era uma ajuda preciosa para aguentar a difícil passagem do tempo. Leio em diagonal as cartas mais recentes e apercebo-me do que já esperava: uma grande preocupação familiar pelo meu inabitual silêncio e pelo meu estado de saúde. À porta do quarto surge um ordenança que me vem convocar para ir ao segundo-comandante do COMBIS (o comandante está ausente, também de férias). Fui assim mesmo, botas sem meias nem atacadores, as pernas das calças transformadas em badanas, totalmente descosidas da braguilha para baixo. Apresento-me no gabinete do nosso major que me mira de alto a baixo, me pede para lhe contar o que se passou nestes dias e qual o estado do pessoal em termos psicológicos. Faço o meu resumo, mais ou menos cronológico, digo o que penso com algum azedume e entrego-lhe o papelucho que havia rabiscado em Farim, supostamente o croquis dos mortos que tivemos de deixar em Guidaje. Diz-me que por agora posso ir descansar e que no dia seguinte voltará a chamar-me para me pedir um relatório escrito e mais detalhado (o que não virá a acontecer).
Dirijo-me ao banho. Mando as calças para o lixo. Dispo o dólmen. De tão esticado e teso, pego-o pelo colarinho e pouso-o no chão. Fica de pé, como se o enfiasse num cabide de alfaiate! Não há a água quente que me apetecia (como seria bom um longo banho quente, de imersão), porém, a água que escorre do duche é tépida e nem sei quanto tempo fico a desfrutá-la. Enquanto isso, lavo o quico com champô, até desaparecerem as principais manchas de suor e de todos os merdelins. Aproveito para não desfazer a barba e andar assim mais um tempo (desde que começou a crescer-me que a uso crescida, salvo agora, por impedimento do RDM).
Antes do sol se pôr, já eu, o Ângelo e o Cruz tínhamos apanhado boleia para a cidade e estávamos frente ao forte da Amura (perto do cais de Bissau) a tirar fotografias, aguardando pelo furriel famalicense José Lopes Silva, que ficou de se encontrar connosco na 5ª REP (esplanada do Café Bento, conhecido pela abreviatura de “5ª Repartição”) e depois irmos à Cervejaria Solmar petiscar uma valente mariscada! Seguiu-se um alguidar de ostras e uma travessa de camarões no Pelicano e, devido à quantidade de líquidos ingeridos, já não me lembro o que foi o resto!
Fatal como o destino, enquanto caminhamos pelas ruas da capital encontramos sempre alguém conhecido, ou por ter estado connosco na recruta ou na especialidade, por ser conterrâneo, etc., e enquanto esclarecemos perguntas sobre Guidaje recebemos péssimas notícias de uma Gadamael cercada e com inusitado número de baixas. De Guileje também se fala, mas pouco ou nada resta para contar, salvo alguém ter garantido que o major Coutinho e Lima, ex-comandante do COP 5 e que ordenou a retirada em tempo útil de Guileje, andaria agora em Brá a jardinar no quartel, por estar detido preventivamente pela cegueira do governador. Outro alguém contra-diz-que-disse que o major estaria mesmo preso por ordem de Spínola, – e não simplesmente com detenção num quartel, – e que tal gesto provocara uma onda de indignação entre unidades do exército, em particular, as de Gadamael, Guileje e Cacine.
Pois é, a inércia, comodismo, o deixa andar e o porreirismo, pá, costuma ter como consequência disabores.
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