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13 de maio de 2011

166-Já deu para lançar um traque e não ter resposta

(Texto do Daniel de Matos)

Infelizmente, o meu amigo Daniel de Matos, autor desta  linhas, faleceu no dia 13 de Novembro de 2011
24 de Maio

A claridade solar já tinha penetrado pela porta há mais de uma hora e iluminado os degraus de acesso à superfície. À medida que vai acordando, mas sem abandonar a sonolência, o pessoal espreguiça-se. Alguém solta um sonoro traque. Não se ouvem réplicas nem reacções. Lá fora há quem converse constantemente e o furriel Machado, identificando as vozes dos tagarelas, levanta-se e vai acender um cigarro para o pé deles, encostando-se aos bidões de protecção do Obus. A noite, – já não era sem tempo! – correu sem sobressaltos, não fomos bombardeados e conseguimos dormir algumas horas seguidas. O furriel Silva e o alferes Igreja tinham ido à messe ver se havia farnel, missão sem êxito, o pequeno-almoço estava atrasado, voltassem a meio da manhã. Continuávamos sem horários certos para as refeições. A cantina dos soldados abria quando calhava e o alerta para o tacho era dado quando alguém aparecia de marmita e colher nas mãos, a anunciar, “pessoal, hoje a salsicha é com bianda”! E água? – perguntei. Para beber sim, bebemos um copo cada um, mas das torneiras não pinga uma gota, – respondeu o Igreja, – as sanitas estão um nojo, nos balneários nem se pode entrar...

O nosso cabo artilheiro vasculha dentro da mala que tem deitada debaixo da cama, saca de um “transístor” do meio da roupa e das cartas, confirma se já está tudo acordado e põe o rádio a tocar. Escutam-se sons de kora (espécie de harpa mandinga, mas cujo formato é mais parecido com uma viola), depois ngumbé, ritmo nacional guineense, mas não deve ser tocado pelo grupo Cobiana Djazz, impedido de actuar na UDIB de Bissau e cujo vocalista, – José Carlos Schwartz, o Zeca Afonso da Guiné – estará ainda na prisão de “Djiu di Galinha” – a Ilha das Galinhas, onde se situa a espécie de Tarrafal guineense, o Campo de Trabalho no arquipélago dos Bijagós.

Em meados de 1969 vieram transferidos do Campo de Concentração do Tarrafal (Santiago, Cabo Verde) 58 presos políticos guineenses, colocados nas catacumbas construídas na Ilha das Galinhas. O número de detidos tem vindo a crescer nos últimos anos. Apesar de alguns terem morrido, vítimas de espancamentos, o número de novos presos é consideravelmente superior.

Não sei que raio de língua ou dialecto fala o locutor que entre os temas musicais pronuncia uma algaraviada de coisas esquisitas para os nossos ouvidos. O que escuto na telefonia do artilheiro virá da Emissora Nacional ou de postos de rádio dos países mais próximos (ouvimos com maior ou menor dificuldades emissões de onda média do Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné/Conacry, Serra Leoa)?

Quanto a música africana, as emissões nacionais transmitem sons guineenses, de preferência instrumentais. Vocalmente, um ou outro tema do grupo Voz da Guiné. De Cabo Verde, sobretudo Bana e Luís de Morais, e também os angolanos Duo Ouro Negro e Lili Tchiumba. A "Rádio Libertação − A Voz do PAIGC, Força, Luz e Guia do Nosso Povo", tem os seus noticiários e passa músicas muito variadas (cheguei a ouvir música portuguesa que é proibida em Portugal). E há o PFA, umas quantas horas por dia, com espaços que procuram distrair a tropa, mas muito distintos entre si. Por vezes chega a ser imbecilizante um “programa” produzido pelo “casal Primeiro Dias e Senhora Tenente”. Havia de tudo, desde espaços de entretenimento inteligente, com o Armando Carvalheda (nosso artilheiro em Gadamael que, felizmente para ele, viria a “mudar de ramo” e a trocar o Obus pelo microfone) – ainda hoje um profissionalão de rádio e uma das vozes mais influentes da RDP/Antena 1, onde é o principal divulgador da música popular portuguesa no seu “palco da rádio”, ao vivo, todas as semanas. Também João Paulo Diniz (que regressado à metrópole passou, penso que a pedido de Otelo, que o conheceria de Bissau, o tema “E Depois do Adeus”, primeiro sinal radiofónico antes da senha “Grândola Vila Morena”. E outros nomes que, de tanto os ouvirmos, ficaram na nossa memória: Faride Magide, julgo que técnico de som que terá estado anos depois em Coimbra, na RDP; e também censores políticos que eram militares, e que faziam os cortes mais absurdos em programas enviados pelas unidades que estavam no mato. Ainda se os cortes fossem originados pela má qualidade do som (eram gravações geralmente efectuadas em cassettes domésticas) compreender-se-ia! Mas não, era censura política pura e dura, às locuções e à música que se incluía nesses programas. Isso sucedeu connosco, gravámos um belo dum programa no meu quarto em Bafatá (meu, e dos furriéis José Alberto Ferreira Durão, mecânico-auto, e Hélder Pereira Calvão, – o nosso “ranger”, isto é, de operações especiais). Quando ouvimos a transmissão do nosso programa “Frequência 3-5-1-8” (participaram também o furriel miliciano de transmissões Domingos Gomes Pinto, o furriel miliciano de minas e armadilhas Ângelo Silva e o furriel miliciano atirador António Guerreiro), no lugar do fado de Coimbra cantado por José Bernardino apareceu uma doce canção d’Os Beatles, o poema “O Rico e o Pobre” (altamente “subversivo”, declamado entusiasticamente pelo homem de transmissões José Elias Gomes de Oliveira), também foi à vida!, saiu tudo alterado, segundo apurámos, por um zeloso guardador do regime, um tal Madeira. E pensar que à testa do PFA estava o capitão miliciano José Manuel Barroso, ligado ao Comércio do Funchal, jornal que, apesar de dar vivas ao marxismo-leninismo-maoismo (para achincalhar a CDE em período dito pré-eleitoral) aparecia nas bancas como sendo de oposição ao regime (o capitão Manuel de Sousa recebia-o algumas vezes e eu permutava com ele o “meu” Notícias da Amadora, O Mundo da Canção e, às vezes, outros recortes de notícias que os meus amigos Acácio Vicente e Fernando Simões me mandavam)…

Embora nesta altura não se registe a presença incómoda de muitos mosquitos, nem as noites se carreguem de frígido cacimbo, pernoitar ao relento não é pêra doce nenhuma. Todavia, o sono só nos verga pelo cansaço. Fumar no escuro é arriscadíssimo (só com mil cuidados para evitar que o morrão do cigarro se veja de longe) e nem uma gota de álcool temos para nos aquecer o corpo e a alma. Resultado: tagarela-se, de preferência baixíssimo, para que ninguém nos oiça para lá do cotovelo seguinte da vala. Uns falam do sonho de um dia chegarem à peluda, dos projectos de vida constantemente adiados; outros de novas recebidas das suas terras (e há quanto tempo se estava sem receber uma carta?); outros ainda contam anedotas avisando previamente os interlocutores que devem rir-se pianinho, para não despertar atenções… Como se sabia que o nosso poiso de origem tinha sido Gadamael, um pára-quedista quis saber se já tínhamos notícias de Guileje. Não tínhamos, claro. Novidades só trazidas de fora! Sem se aperceber que a história ainda desmoralizaria mais qualquer Marado, informou que quartel e aldeia de Guileje tinham sido abandonados e que toda a gente (cerca de duzentos militares e mais de meio milhar de civis) estava agora refugiada em Gadamael, que terá ficado a rebentar pelas costuras!

O pessoal ouve com incredulidade. Será também esta a nossa sorte? Pensando bem, e conhecedores que somos do local, nem nos é difícil imaginar que se Guileje estivesse cercada como nós aqui estamos, pertinho da fronteira, sem a aviação em pleno e com um único acesso ao exterior, o abandono seria lógico e inevitável! Esta opinião é prontamente contraditada por alguém que diz que não senhor, que com ele lá andava tudo no mato a afogar turras ao bochecho. Pois, mas isso é se tiveres água para encher a boca! Em menos de quatro dias, esclareceu o narrador pára-quedista, levaram com três dezenas de bombardeamentos dentro do quartel!
– Chiça, – atalhou um dos soldados madeirenses, – então parece Guidaje! E vejam lá que ainda há pouco mais de um mês haviam feito obras e inaugurado o novo bar do sargentos, que até gira-discos tinha, e agora ficou lá tudo?

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