(Texto do Daniel de Matos)
Infelizmente, o meu amigo Daniel de Matos, autor desta linhas, faleceu no dia 13 de Novembro de 2011
28 de Maio
A desmoralização amplia-se a ritmo galopante. Como se não bastassem as consequências operacionais do cerco e o sentimento de incapacidade absoluta de dar a volta às coisas e furar o bloqueio, é também a logística que começa a falhar. Os pedaços de salsicha, cada vez mais precários, têm sido substituídos por sardinhas de conserva, que chegam ao prato em pasta. A groselha também acabou, tudo rebenta pelas costuras! Desde o ataque de dia 25, que cortou a luz no quartel, os geradores nunca mais tiveram um funcionamento regular (parece que não há gasóleo para os ligar) e passámos a estar sem electricidade (nem a do céu, que a mudança de estação para a época das chuvas faz aparecer nuvens que encobrem o luar). O que vale é que não há nada nos frigoríficos que se estrague!
Por onde andamos, tropeçamos constantemente em destroços, granadas, invólucros de munições, restos de latas de conserva que, os poucos que as tenham, já nem se dão ao trabalho de as pôr no lixo, além de pedaços de tectos de zinco arrancados pelos rebentamentos, restos de móveis inúteis, etc.. Ainda por cima, a água que desde sempre aparecia nas torneiras, talvez uma hora (incerta) por dia, deixou praticamente de aparecer. Ou seja, se nos primeiros dias ainda conseguimos lavar as mãos e a cara muito apressadamente, pois havia sempre outros atrás de nós à espera de fazer o mesmo, agora já nem isso fazemos. No caso do pessoal “marado” faz já catorze dias que temos no corpinho o mesmo camuflado, vestido vinte e quatro horas por dia, quase todos sem ter conseguido tomar um banho. De cabelos desgrenhados e cinzentos da poeira e com barbas por fazer da mesma cor, ainda conseguimos brincar, dizendo que se corrêssemos para um turra desta maneira, ele morreria logo, mas era de susto! E caso aguentasse olhar para o nosso terrível aspecto, sucumbiria à mesma, com o cheiro… Eu cá, se despir o dólmen e o poisar no chão, ele aguenta-se, de certezinha, em pé. O suor acumulado, a volumosa pasta de sangue dos camaradas mortos e feridos que absorveu no abrigo do Obus, confesso que algumas lágrimas em cima, mais a moinha do cacimbo, à noite, o pó poisado durante as deslocações e emboscadas, e ainda a sujidade de terra desde que passei a dormir no chão, tudo isto acumulado dá uma argamassa que nem colete à prova de bala. O curioso é que não me sinto propriamente a cheirar mal, nem sinto que os meus companheiros cheirem mal. Terei perdido o olfacto? Ou, nas nossa narinas, também o hábito faz o monge? Não faço ideia porquê, nem como, mas de repente dei por ter ficado sem os atacadores das duas botas de lona. Das meias verdes, resta-me uma, cujos buracos me estão a provocar bolhas. A do pé direito era um buraco só e desfez-se: achei-a folgada demais, puxei-a e, desprovida da “sola”, saiu inteirinha do pé sem necessidade de descalçar a bota.
29 de Maio
Pelo menos um héli-canhão e logo a seguir dois Allouette III surgem de supetão sobre as casas e, perante o espanto geral, aterram no largo a que chamamos parada. É uma surpresa para nós, obviamente que não para o tenente-coronel, que antes colocara de prevenção o pessoal de armas pesadas, perspectivando-se, assim, que algo estivesse para acontecer. E aconteceu: as aeronaves trazem a bordo o comandante-chefe, – general António de Spínola. Vêm, por certo, em voo rasante à copa das árvores, que a baixa altitude foi o modo encontrado pela FAP para reduzir o risco de se fragilizar perante o moderno equipamento antiaéreo da guerrilha.
O general teria vindo certificar-se das condições operacionais, do estado psicológico do pessoal e, sobretudo, controlar a execução das directivas traçadas para outra grande operação que vise pôr fim ao isolamento de Guidaje, que permita evacuar feridos e tratar do reabastecimento de géneros, medicamentos, até mesmo de urnas, para o que der e vier!... E essa operação, cuja parte principal pode iniciar-se hoje, há alguns dias que estará a ser preparada a partir de Farim/Nema e Binta, onde uma concentração imensa das NT se iniciou no dia 26: aí estão a 38ª companhia de comandos (“Os Leopardos”, novamente), um grupo especial de milícias, quatro grupos de combate do BCaç 4512, uma companhia africana e mais duas companhias inteiras, uma de infantaria e outra de cavalaria (a CCav 3420, – Os Progressistas” – comandada pelo capitão Salgueiro Maia, que foi enviada para este tormento já depois de ter a comissão cumprida em Bula e em Mansoa e de estar a aguardar embarque para regressar à metrópole; em vez de seguir para o Cumeré, foi para os Adidos requisitar novas armas).
Não me recordo quanto tempo se deteve o general Spínola nesta passagem por Guidaje. Não deverá ter sido muito, até porque a presença dos helicópteros estaria, decerto, a ser notada do lado de lá da fronteira, as próprias condições do terreno deixavam-nos demasiado expostos no caso de o IN arriscar qualquer investida. Isto, embora ouvíssemos o roncar constante da aviação, lá nas alturas, sobre as nuvens, a impor o seu respeito. Mas recordo-me que todos fomos a correr sacar aerogramas à secretaria, (conhecidos por “bate-estradas”, isentos de “porte e de sobretaxa aérea” nos termos da Portaria 18.545, de 23 de Junho de 1961), pois estava ali uma possibilidade de enviarmos correio às famílias, mentiras escritas à pressa, do tipo “espero que te encontres de boa saúde que eu fico… bem”, quer-se dizer, alvoroçar pais e namoradas com desgraças para quê?!! Para muitos, eram expedidas as primeiras cartas após várias semanas sem receber ou enviar mensagens de e para o exterior. A falta de notícias e de comunicações foi terreno fértil para a propagação do boato. Na parte que me toca, vim a apurar depois do regresso ao COMBIS que na própria companhia havia quem já me tivesse dado como morto; ao invés, em Lisboa, perante o meu prolongado e inabitual silêncio, o meu pai e a minha mulher (casara-me, nem havia dois meses) andam de repartição em repartição tentando saber se algo me terá acontecido. Cedo desistem, mal um primeiro-sargento anafado lhes garantiu que eu não consto na listagem mecanográfica dos óbitos, que sou obrigado pelas NEP a enviar notícias à família e que, se não o fizer, ainda “leva mas é uma porrada”! – Quer que participe? – perguntou a criatura… à vez, esperando pela disponibilidade da esferográfica do cabo artilheiro que foi circulando de mão em mão, lá gatafunhámos meia dúzia de linhas com o remetente SPM 2158 (era o número do Serviço Postal Militar, espécie de código postal da companhia)…
Os Allouette III levantam voo e levam Spínola e comitiva de volta para Bissau. Transportam para o HMB os feridos que mais necessitam de evacuação. “Nossos”, seguem o Igreja e o Bernardo Monteiro, cujo ferimento no joelho não é de grande gravidade, mas faz-se à boleia com um choradinho bem urdido e consegue o lugar.
Por volta das cinco da madrugada os muitos militares concentrados em Binta tinham começado a percorrer o itinerário para Guidaje. A progressão no terreno, como sempre é extremamente cuidadosa e lenta. Ainda assim, às dez horas é accionada pelo soldado-condutor auto rodas António Luís do Couto Toste Parreira (CCaç3414) uma anticarro armadilhada que o desfaz, cega um furriel e provoca dois feridos ligeiros. O pessoal do batalhão de Farim mostra-se particularmente abatido, é também reincidente naquele percurso, onde já muitos camaradas caíram por terra nos combates de 9 deste mês.
O estado de espírito está de tal maneira que um pelotão, que foi incumbido de transportar para Binta (para posterior evacuação) os feridos e o morto na mina anticarro, devendo depois regressar ao local de partida, já não está para isso e os trinta homens entram em desobediência, ficam-se por Binta com os dois Unimog, à espera do desfecho da crise…
Quem comanda, procurando evitar novas minas, decide-se a avançar em corta-mato, rasgando outros trilhos e outra picada, por onde o arvoredo permita a passagem das viaturas. À frente vai o “caterpillar” D6, pronto para derrubar capinzal, árvores e o que apareça pela frente. A grande distância umas das outras, seguem as Berliet só com os condutores a bordo, sempre protegidos por sacos de areia.
Entretanto, a companhia de pára-quedistas que chegou no dia 23 (CCP 121) tinha partido de Guidaje no encalço da coluna, levando consigo os comandos (chefiados pelo capitão Raul Folques, ainda a braços com ferimentos sofridos na investida contra a base de Koumbamory, no Senegal). Para não variar, detectam minas. No entanto, optam por não provocar o rebentamento, preferindo deixá-las balizadas. Ouvem duas rajadas, todavia o som vem de longe e ficou-se por aí, nem se deu por que alguém tenha ripostado. Já perto de atingirem o Cufeu, então sim, rebenta uma emboscada do lado oposto da bolanha, contra o pessoal da coluna que progride no terreno de Binta para cima (as companhias que atrás citei). Um grupo que foi calculado em 120 guerrilheiros desferiu de rompante um ataque impetuoso, batendo a zona da retaguarda da coluna com Morteiros 82. Os combatentes do PAIGC fizeram várias investidas durante mais de uma hora. Alguns homens vergados pelo cansaço, pela insolação e pela sede, (desde madrugada que mais não ingeriram do que um cantil de água,) desmaiaram e geraram obstáculos de novo tipo à progressão.
A longuíssima coluna cruza-se com os pára-quedistas da CCP 121 que já irão pernoitar a Farim (e que amanhã partirão de regresso a Bissau); e encontra-se com os fuzileiros que estavam retidos há dias e que vieram ao encontro da coluna para reforçar as hostes.
Na região de Ujeque o pessoal ainda veria rebentar outra mina debaixo dum Unimog 404. Um soldado milícia, ao saltar para o lado, ficou sem uma perna por pisar outra mina antipessoal. Sofreram mais um curto ataque às dezoito horas, sem consequências, chegando exaustos a Guidaje, cerca das dezanove, quando anoitecia. A extensa coluna atingiu o objectivo mas o preço foi alto: dois mortos (o referido condutor e o soldado atirador Domingos Martins da Silva Lopes, do BCaç 4512), e ainda vários feridos.
Temos entretanto a notícia da morte do soldado Jorge Gonçalves, que agonizava na enfermaria e não resistiu aos ferimentos. É o quarto morto da companhia nesta operação e a sexta vítima mortal dos camaradas que a morteirada surpreendeu no abrigo do Obus.
Ainda o funesto abrigo do Obus, que ficou para sempre nas nossas retinas e cuja memória só desaparecerá quando chegar a vez de nós nos apagarmos. Na sua “Crónica dos Feitos por Guidaje” (publicada no livro “Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril – Depoimentos” (Editorial Notícias) o capitão Salgueiro Maia referiu-se também a esse abrigo (página 71), descrevendo-o da seguinte maneira: “Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo de artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de Morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com sibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, de cor castanha, com 2 mm a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar a volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado, que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde tinha vindo”. Recorde-se, a propósito dos odores, que entre a noite da destruição do abrigo e a chegada do capitão Salgueiro Maia a Guidaje decorreram pelo menos quatro a cinco dias, até porque não deve ter ido direito ao abrigo logo no primeiro dia… No seu texto ou no meu relato há pequenas contradições, traições da memória que pouco interessam hoje em dia. Contudo, referencio-as: pelo que me recordo de ouvir (todos temos uma costela de perito), e pelo que já li algures, terá sido uma granada de Morteiro 120 a perfurar os troncos de sibe que cobriam o tecto e a destruir o abrigo, e não de Morteiro 82; dificilmente haveria 8 colchões dentro do abrigo, pois mal cabiam as 4 camas existentes (sobrepostas duas a duas, em camarata); o número de mortes que é referido (4) é o dos que tiveram morte imediata (Machado, Telo, Ferreira e um soldado africano, havendo a acrescentar o Fernandes e o Talibó Baio, que faleceriam poucas horas depois (mas já no dia 26) e o soldado Gonçalves (a 29); nunca consegui apurar quem era nem como foi enterrado o segundo soldado africano que se tinha refugiado no abrigo. Com efeito, na altura da exumação dos corpos, em 2009, apareceram onze ossadas no “cemitério” cujo croquis só indicava dez, sendo que o décimo-primeiro (identidade desconhecida), segundo os arqueólogos pertenceria a um indivíduo “africano”. Mas a dedução de poder tratar-se do mesmo indivíduo pode ser precipitada.
Pela quantidade de homens recém-chegados, e com a “fomeca” que traziam, foi grande a azáfama em torno do refeitório, onde não cabiam todos ao mesmo tempo, para que lhes fossem servidas as tradicionais salsichas. Aquela grande concentração é um risco enorme, já que uma simples granada que caia no local, pela certa causará uma mortandade! São mandados dispersar pelos quatro cantos de Guidaje onde devem aguardar que alguém os chame. Não têm tecto onde dormir, os edifícios estão deveras danificados ou completamente destruídos, e os camaradas “residentes” (sitiados) já transformaram a generalidade das valas em dormitórios. Porém, aqui a solidariedade não é palavra vã e para todos se inventará um cantinho onde repousem. Toda a gente se “encolhe” por forma a arranjar novos espaços. Não restam colchões disponíveis para ninguém, cada qual desenrasca-se consoante a imaginação.
Cerca das 21 horas, às cinco de cada vez, começam a cair morteiradas bem no centro do quartel. E não parecem umas granadas quaisquer aquelas que se abatem sobre as nossas cabeças: são de Morteiro 81, isto é, das que o IN conseguira sacar das viaturas de reabastecimento que se imobilizaram e perderam na picada de Binta, (sacadas antes do Fiat do capitão José Manuel Pinto Ferreira arrasar o que restava delas e da carga, no passado dia 9)…
Caro Daniel
ResponderEliminarA coluna que sai a 29 Maio é como tu dizes muito extensa e vai permitir a vossa saída de Guidaje a 30, a sua composição é esta:
Pel Sap / Bcaç 4512
1 GrComb 1ª/ Bcaç 4512 (reforçado)
1 GrComb da 2ª / Bcaç 4512
1 GeMil 342 (Olossato)
Ccav 3420
Ccaç 3414 (Cumeré)
38ª Ccmds
Eu vou integrado no meu GrComb (1º/Bcaç 4512 reforçado com elementos do 2º).
De Guidaje saem a CCP-121 que vem até ao Cufeu fazer protecção, e depois segue para Guidaje, regressando a 30, portanto ainda não é nesse dia que seguem para Binta.
O destacamento misto DFE-1 e 4 vem até à clareira de Ujeque fazer protecção, regressam também a 30 a Binta.
O GrComb que referes não ter regressado à coluna depois da evacuação do morto e feridos, é o GrComb da 2ª/Bcaç 4512 de Jumbembem.
Um abraço
Manuel Marinho